Quando éramos jovens (e a crônica começa num tom nostálgico), vinte anos, cheios de energias, contávamos os centavos e usávamos as modestas economias para descer a Serra e aproveitar alguns dias das férias de janeiro jogando bola, dia e noite, incluindo madrugadas, nas praias de São Vicente. O primeiro encontro reuniu seis moleques. O time cresceu. Chegamos a ter doze marmanjos (mais as mochilas, os mantimentos, os colchões) ocupando um apartamento de quarto e sala. Ninguém se importava. Era diversão garantida. O evento virou tradição. Teve seis edições consecutivas, até meados dos 1990. Muita história para contar. Quem sabe um dia ainda escreva um livro sobre aquelas peripécias juvenis. Os inadequados compromissos das vidas adultas profissionais interromperam a brincadeira. Vinte e cinco anos depois, jubileu de prata, articulados num grupo de zapzap, achamos que tinha chegado o momento de acertar as agendas para patrocinar um reencontro comemorativo. Acho que havia mesmo demanda reprimida, porque a adesão foi imediata e total. Para dar conta das ranhetices e esquisitices de agora doze quarentões cheios de vontades e de manias, preferimos o aconchego de um confortável sítio no interior de São Paulo. O ponto alto da festa, nem poderia ser diferente, foi um futebol malemolente de campo. Ainda bem que não tinha torcida (foi registrado em vídeo, mas jamais as imagens serão tornadas públicas. Servirão apenas para piadas internas. Tomaremos cuidado com delações e vazamentos). Porque sobraram tombos, escorregões, encontrões, ombradas, pernadas, gols de bico, toques de canela, um calcanhar batendo no outro, bolas no mato, reclamações, resmungos e piques em que éramos sempre facilmente vencidos pela velocidade da bola. O que era para ser uma brincadeira de dez minutos transformou-se numa pelada de quase uma hora. Dolorido foi perceber que as cabeças ainda pensam e imaginam as jogadas, mas os corpos já não são mais capazes de obedecer tão simples comandos. Quem dera tivéssemos ainda os vinte de São Vicente. Fecham-se as cortinas, termina o espetáculo. Já tinha boleiro se arrastando em campo. Ao final da peleja, desabamos no gramado, exaustos. Foi difícil criar coragem para voltar para a beira da piscina.
Se o complexo esportivo de Araçoiaba da Serra tivesse sido requisitado pelo Comitê Olímpico Internacional para ser uma das arenas que abrigarão as disputas futebolísticas de agosto, a plateia (que aí sim marcaria presença) certamente se deliciaria com um espetáculo bem menos atabalhoado e marcado por lances de outra natureza estética. Os pernas de pau que lá desfilaram seriam substituídos por boleiros de verdade. Evidente que falamos de talentos especiais, habilidades natas e muito esforço e treinamento. Há um forte componente de arte e improviso nos movimentos desses gênios da bola. Mas não é só sensibilidade. Há muito de razão. É a ciência quem também ajuda a explicar a extraordinária capacidade de atuação dos ditos atletas de alto rendimento. Neymar, inquestionavelmente um dos melhores do mundo, foi desenhado pelas tocantes e inalcançáveis pinceladas de um Michelangelo – e foi ainda forjado pelos cálculos e as equações precisas de um Einstein. Não é exagero. Cientistas japoneses que usaram ressonância magnética para mapear o cérebro do craque brasileiro e o compararam a cérebros de três jogadores espanhóis da segunda divisão, dois nadadores e um atleta amador constataram que o ex-santista tem “os atalhos do futebol gravados pelos neurônios. Por isso, aciona uma área do cérebro bem menor que a dos concorrentes e executa os movimentos de maneira automática e natural, que libera espaço no cérebro para que possa pensar e agir durante o jogo”, como detalha reportagem publicada pelo caderno especial “Rio 2016” da Folha de São Paulo de 02 de junho. Outra matéria da mesma edição conta que “em um maratonista, o ventrículo esquerdo pode aumentar até 20% e as paredes do coração ficam mais espessas, permitindo que seja bombeado mais sangue a cada batida. O pulmão de um atleta de alto rendimento é também mais eficiente, maximizando a capacidade respiratória. Nos músculos esqueléticos desses astros, as mitocôndrias dobram de tamanho e se multiplicam, auxiliando na geração de energia”.
Na nossa inocente pelada olímpica particular, entre tombos e súplicas de ‘pessoal, acho que já está na hora de acabar’, descobrimos na prática e muito rapidamente que nossos corações ameaçavam pular pela boca a qualquer momento, que nossos pulmões já não mais ofereciam sequer o suprimento mínimo de oxigênio de que precisávamos, que a quantidade de mitocôndrias em nossos músculos deve ser significativamente reduzida e que nossos cérebros, depois de cinco minutos de bola rolando, só conseguiam produzir imagens turvas e desconexas, quase alucinações. Passamos o resto da tarde arriados e sentados ao redor de uma mesa, dando risada e jogando conversa fora. O copo está vazio. Quem vai buscar cerveja? Às dez da noite, batemos uma feijoada. Completa. Típica alimentação de atleta. Alguns mais destemidos ainda arriscaram mais uma pratada generosa da iguaria quando já era madrugada. Dormimos felizes. No domingo, todos os músculos do corpo doíam. E não era uma dor qualquer. Nos movíamos em câmera lenta. Levantar a caneca do café já era uma tarefa hercúlea. Na despedida, ficou combinado que não esperaremos outros vinte e cinco anos para promover mais uma edição da festa futebolística dos amigos de São Vicente. O encontro voltará a ser anual. Deve existir algum estudo científico que comprove que estar com pessoas queridas faz um bem danado para a saúde, a alma e a cabeça. O desempenho no futebol? Tende a piorar a cada ano, reconheço. Está valendo. Já na modalidade ‘camaradagens das antigas’, somos fortes candidatos à medalha de ouro. Favoritaços.