Artigo de Marcio Sommer Bittencourt e Otavio Ranzani, publicado originalmente pela Agência Bori
Depois de meses trancados, estamos exaustos. Quase a desistir, tivemos um possível alento quando disseram que a imunidade de rebanho, também chamada de imunidade coletiva, pode estar mais perto do que imaginávamos. Com o rebanho imune, poderíamos voltar ao normal?
O conceito de imunidade de rebanho é usado em programas de vacinação para definir um valor acima do qual os não vacinados têm proteção indireta levando ao controle da doença, mesmo não sendo possível vacinar a todos. Embora reservado para doenças com vacina efetiva, atingir este limiar foi proposto como possível saída no combate à covid-19. No início da pandemia alguns autores sugeriram que ao redor de 70% da população seria infectada para termos o rebanho protegido. Com uma estimativa conservadora de letalidade de 0,5%, perderíamos mais de 700 mil vidas no Brasil, algo que poucos considerariam razoável.
Porém estudo recente sugere que a imunidade coletiva ocorreria após 30% a 50% de infectados. Como em algumas cidades temos anticorpos em 20% da população, a luz no fim do túnel estaria mais próxima. Esta redução no limiar é conhecida por quem pesquisa doenças infecciosas, e acontece pois a população é heterogênea. Algumas pessoas têm maior chance de pegar o vírus enquanto outros tem maior capacidade de transmissão. Depois que os mais susceptíveis forem infectados e os que mais transmitem não tiverem tantos contatos próximos susceptíveis, fica mais difícil para o vírus infectar outros indivíduos, atingindo a imunidade coletiva antes que em populações homogêneas.
Infelizmente esta realidade não é tão dourada. Primeiro, poucos lugares do Brasil tem níveis de anticorpos tão altos. A maioria das cidades tem menos de 10% de infectados depois de três meses de pandemia. Mesmo com olhar otimista, nos faltariam 20%. Como já morreram mais de 70 mil brasileiros e brasileiras, perderíamos ainda outros 140 a 280 mil até a imunidade. E vale lembrar que nem certeza temos de que os números são corretos, pois os autores destacam a incerteza dos cálculos por não conhecermos o suficiente a doença. Nem mesmo considerando imunidade celular, que não medimos na população, a ideia de rebanho faria sentido.
Outro argumento de quem vê imunidade de rebanho como saída é a ideia de que ela é um número fixo definido pelo vírus. Sendo imutável, o mesmo número de pessoas irá se infectar e morrer e todo o esforço e custo do distanciamento e mesmo lockdown seriam inúteis. Se perderemos 300 mil brasileiros de qualquer forma, por que ficar em casa? Esta visão determinista da pandemia é tão errada quanto a ideia de que a imunidade de rebanho é definida por um número fixo. Ela é mais complexa, pois depende da taxa de transmissão do vírus, e esta não depende apenas do vírus, mas também de nós. Ela depende de como interagimos entre nós, quantas pessoas encontramos, quanto tempo passamos juntos, a que distancia, se usamos máscaras ou lavamos as mãos com frequência. Mantendo estas medidas de distanciamento físico e bloqueio de transmissão do vírus, a taxa de transmissão se reduz e o efeito de imunidade coletiva chega mais cedo.
Ainda assim, atingir a imunidade de rebanho não significa vencer a guerra. Como ela está ligada à taxa de transmissão, se revertermos as mudanças feitas para conter o vírus, a transmissão volta a subir e os níveis para atingi-la voltam a ficar mais distantes. Por isso, apesar de imaginarmos que lugares com queda importante da transmissão, como Manaus e Rio de Janeiro, já tenham atingido o limiar de rebanho, este pode ser temporário e dependente de um controle estrito das medidas de distanciamento e bloqueio. Uma reabertura descontrolada pode tornar esta imunidade apenas um sonho passageiro e a imunidade coletiva vira mais uma vez um objetivo distante.
A imunidade de rebanho real é uma escolha da sociedade e depende do comportamento de cada um. Se escolhermos a mudança de hábitos persistente, venceremos o vírus com um rebanho com menos vítimas e mais protegido. Se preferirmos deixar tudo à própria sorte, a epidemia não terminará mais cedo, mas custará mais vidas. Cada vez que você escolhe lavar as mãos, usar máscara, ficar mais distante ou sair menos de casa, você escolhe proteger toda a sociedade. No final, com essas ações escolheremos o rebanho em que vivemos, e por consequência escolhemos a nossa imunidade coletiva.
Marcio Sommer Bittencourt é médico, doutor em Cardiologia pela USP, pesquisador do Centro de Pesquisa Clínica e Epidemiológica do Hospital Universitário da USP e professor da Faculdade Israelita de Ciências da Saúde Albert Einstein.
Otavio Ranzani é médico, doutor em Pneumologia pela USP, e pesquisador na USP e no Instituto de Saúde Global de Barcelona.