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Ataques a uma autonomia historicamente construída
Política científica

por | 2 set 2020

Projeto de Lei 529 põe em risco a autonomia e o financiamento do sistema público de ciência tecnologia e inovação em São Paulo

Obras do prédio da História e Geografia do campus do Butantã da USP, em 1964, com a reitoria ao fundo (Foto: CCS/JUSP)

O Executivo do estado de São Paulo conseguiu provocar quase um terremoto na comunidade científica paulista, ao apresentar à Assembleia Legislativa para tramitação em caráter de urgência, em 13 de agosto passado, o Projeto de Lei 529 (PL529/2020). Embora em suas mais de 60 páginas a proposta contenha material abundante para provocar a ira de inúmeros segmentos da população, a ponto de um texto do site Jornalistas Livres chegar a chamá-lo de “o projeto de Dória para o fim de São Paulo”.

A reação é mais que compreensível. Uma vez aprovado o texto legal, alegadamente motivado pelos pesados efeitos econômicos da covid-19 que já teriam produzido um rombo de R$ 10 bilhões nas contas do estado, seu artigo 14 iria consumar uma furiosa investida contra a fundamental parte pública do sistema paulista de ciência, tecnologia e inovação. Neste ano mesmo, o PL 529 seria responsável por levar de volta à Conta Única do Tesouro Estadual cerca de R$ 1 bilhão das universidades de São Paulo (USP), Estadual de Campinas (Unicamp), Estadual Paulista (Unesp) e mais Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). Isso porque o artigo em questão prevê que o superávit financeiro das autarquias e das fundações deve ser transferido no final de cada exercício a essa conta.

Ora, tudo indica que nesse particular faltou ao Executivo paulista tanto a compreensão de que as universidades estaduais já atravessam dificuldades no atual momento quanto a percepção de que não há superávit financeiro em atividades contínuas de apoio à pesquisa científica e tecnológica – no máximo, existem reservas financeiras que necessariamente transitam de um ano para outro, dando suporte a estudos de prazo longo.

Talvez tenha faltado ao governo estadual, sobretudo, um entendimento claro da autonomia das universidades estaduais e da agência estadual de fomento à pesquisa – uma autonomia que vem sendo legal e efetivamente construída há muitas décadas e que inclui claramente, ressalte-se, sua dimensão da gestão financeira – e, especialmente, de seu papel central na força singular do sistema público de CT&I de São Paulo.

Parece difícil, mas é possível que, mesmo tendo à frente um governador que concedeu mais de uma centena de entrevistas defendendo ardorosamente a centralidade das evidências científicas nas decisões de políticas públicas para controlar a epidemia de covid-19, o Executivo paulista não compreenda exatamente a gigantesca contribuição do sistema público estadual de ciência, tecnologia e inovação para a posição de liderança que São Paulo ocupa no país. Esse destaque está umbilicalmente vinculado a sua capacidade de produzir conhecimento científico, além de inovação propulsionada também por esse conhecimento.

A propósito, em estudo recente* examinei “a força de um modelo de criação, experimentação e transmissão de conhecimento científico concebido e estruturado na década de 1930, a partir de um arranjo político, econômico e cultural específico do estado de São Paulo, cuja primeira grande realização é a criação da Universidade de São Paulo, a USP, em 1934”.

Dizia ali que, “se institutos de pesquisa nascidos no século XIX, como o Biológico e o IPT, entre outros, já falam de uma dinâmica econômica sustentada também por produção de conhecimento científico e inovação tecnológica, é a USP que vai dar originalmente a mais densa substância a um projeto consciente e deliberado de hegemonia econômica, educacional e cultural traçado pelas elites burguesas paulistas para o estado, em momento de forte oposição ao novo projeto político nacional anunciado pelo governo Vargas, em 1930, a que se seguirá um movimento de reacomodação, três anos mais tarde”.

Lembrava que, a essa pedra fundamental na organização do sistema paulista de ciência e tecnologia no século XX, seguiram-se, do lado estatal, dado que o sistema envolve também uma parte privada, pilares como a Fapesp, a Unicamp e a Unesp. Particularmente sobre a Fapesp, referia-me aos intensos debates dos anos 1940 entre parlamentares que, mesmo ligados a diferentes partidos e a visões político-ideológicas muito distintas, conseguiram chegar a um consenso para incluir a criação da fundação na Constituição estadual de 1947. É já no texto constitucional que está previsto o repasse regular de um percentual (0,5%) das receitas tributárias do estado para manutenção e operação da Fapesp. Outro texto constitucional, o de 1989, elevaria esse percentual para 1% das receitas tributárias do estado.

Uma negociação parlamentar intensa levaria, em 1960, à aprovação da lei 5.918 de criação da Fapesp, sancionada pelo governador Carlos Alberto de Carvalho Pinto (1910-1987) em 18 de outubro daquele ano, e ao funcionamento efetivo da Fundação a partir de 1962. A lei assegurava a livre administração, leia-se, inteira autonomia, dos recursos repassados pelo estado à instituição.
Quanto à “autonomia de gestão didático-científica, administrativa, financeira e patrimonial” das universidades estaduais paulistas, vale aqui ressaltar que ela foi legalmente assegurada por ato do governador Orestes Quércia em fevereiro de 1989 (decreto estadual 29.598), que também vinculou o repasse de 8,4% do ICMS às instituições – percentual alterado, em 1995, para 9,57% do ICMS.

Ora, tudo isso parece importar pouco no PL 529, com justificativa assinada pelos secretários Henrique Meirelles, da Fazenda e Planejamento, e Mauro Ricardo Machado Costa, de Projetos, Orçamento e Gestão. Daí a reação vigorosa da comunidade científica paulista ao projeto, inclusive da Academia de Ciências do Estado de São Paulo (Aciesp), que conseguiu em apenas dois dias reunir mais de 60 mil assinaturas para o documento que enviaria a cada deputado da Assembleia Legislativa paulista.

“É importante salientar que as universidades já estão enfrentando sérios problemas financeiros devido à grave crise em função da pandemia”, dizia, para em seguida observar que “os fundos da Fapesp não constituem superávit, mas sim reservas financeiras para projetos de pesquisa científica em andamento que, pela sua natureza, são de longa duração, ultrapassando o ano de exercício”.
Assinado pela presidente da academia, Vanderlan Bolzani, pelo vice-presidente, Paulo Artaxo, e pelo diretor executivo, Adriano Andricopulo, todos cientistas destacados, o texto da Aciesp observa ainda que a aprovação do projeto causaria “prejuízos irreparáveis a todas as atividades científicas do estado de São Paulo”, com destaque para os desafios atuais, “incluindo, a primeira identificação e sequenciamento do novo coronavírus no País, desenvolvimento e produção de respiradores de baixo custo, pesquisas de testes de diagnósticos e de novas alternativas terapêuticas, entre muitos outros progressos significativos”.

A academia paulista lembra que, “a ciência é atividade essencial, tanto para o enfrentamento dos desafios atuais, quanto para o futuro desenvolvimento econômico do estado e do País”. Reitera que, “de fato, o estado de São Paulo sempre se destacou no cenário econômico e científico mundial por causa do seu excelente sistema de universidades e da atuação exemplar da Fapesp no financiamento de pesquisas básicas e aplicadas”. E pede a cada parlamentar “a colaboração no sentido de assegurar que esse grave empecilho ao progresso científico do Estado de São Paulo seja bloqueado”.

Na verdade, a comunidade científica paulista não tem podido cochilar nos últimos anos para as investidas contra a autonomia das instituições do sistema de CT&I do estado. Ainda entre 2018 e 2019, os três reitores das universidades estaduais tiveram que se manifestar pública e firmemente, primeiro, contra planos de cobrança de mensalidades aos estudantes e, em seguida, em defesa das instituições numa CPI levada a cabo na Assembleia Legislativa – que terminou se transformando num momento vibrante de afirmação de sua excelência (ver, a propósito, https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2020/02/cpi-das-universidades-resultados-e-licoes.shtml).

Os deputados estaduais têm todo o mês de setembro para auscultar a sociedade, ouvir os representantes das instituições atingidas, enfim, examinar a sério a PL 529 que, a essa altura, já recebeu cerca de 700 emendas ao texto original. Poucos dias após a divulgação do PL, a própria base do governo na Alesp já admitia rever alguns pontos, “Podemos corrigir o texto das universidades, que ficou errado”, declarou o deputado Carlão Pignatari ao Estadão. Espera-se que os segmentos prejudicados façam pressão e que os parlamentares entendam o que está em jogo.

* Relatório de estágio pós-doutoral no Labjor-Unicamp – “As bases políticas de um experimento editorial: revista Pesquisa Fapesp”

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