Raspou um graveto no outro. Raspou de novo, com mais força. Continuou raspando, com
paciência e persistência. Sentiu esquentar. Um tiquinho mais. Vermelhidão. Uma fagulha.
Algumas. Deu um pulo para trás, assustado. Segurou firme. Fogo na ponta do galhinho. Saiu
correndo para mostrar para os amigos, entusiasmado. Iluminou a caverna. Afastou o perigo
dos animais predadores. Passou a poder cozinhar a carne da caça. Espantou o frio. Fez fogueira
para sentar em volta, numa roda, e contar histórias. Deixou de viver na escuridão. Que é
sossego. Silêncio. Introspecção. Descanso. Mas é também insegurança. Medo. Desconfiança.
Que ameaças a noite escura esconde? Quem está aí? Que barulho é esse? Pai, pode acender a
luz? Tive um pesadelo. Estou com medo dos monstros.
Depois daquela tempestade assustadora da segunda-feira, dia 15 de maio, que derrubou
árvores, fios elétricos, paredes e telhados e deixou rastro de destruição pelo bairro, ficamos
sem luz em casa por 40 horas. A primeira noite foi tranquila. Resignação. Até certa graça
charmosa. Velas e luminárias com baterias foram acionadas. Malabarismos mil para carregar
os celulares, garantia de comunicação com o mundo lá fora. Paciência. O temporal foi
arrasador mesmo. Vamos aguardar. Mas, inevitável, no dia seguinte o mau humor bateu forte.
Pai, não tem nada para fazer. Sem televisão, sem videogame, sem computador. Não dá nem
para ler direito. E o banho é gelado! Ou de canequinha e balde. Não dá. Subir e descer cinco
andares de escada é um saco. A comida começou a estragar na geladeira. Precisamos armar
esquema de emergência para preservar os alimentos. O pior foi aguentar o descaso e a falta de
respeito da Eletropaulo, que fornecia absolutamente nenhuma previsão sobre a volta de
energia. Uma gravação limitava-se a dizer ‘estamos trabalhando’. Pensei em sair raspando
gravetos e espalhando tochas pelos quartos, sala, cozinha. Não adiantaria. Estamos
eletricamente conectados e dependentes das tomadas. Quando a luz voltou, parecia gol do
Santos em final de campeonato na Vila Belmiro lotada. Urros e comemorações ouvidos de
todos os cantos.
Alívio. Computadores, tablets, videogames e celulares voltaram a funcionar freneticamente.
Explosão de luzes. Precisávamos recuperar o tempo perdido. Sinais da modernidade. Ou da
pós-modernidade. Já não sei mais em que tempos vivemos. Holoceno? Antropoceno? Nova
Idade das Trevas? Nosso tempo é a urgência. O imediato. A aceleração. O tudo aqui e agora.
Imediatamente. O exagero luminoso nos cega. Não nos deixa descansar. Nem dormir. Estamos
permanentemente conectados nos mil atrativos de dispositivos móveis e nas infinitas tarefas
que precisamos cumprir. Para ontem. Invadimos madrugadas com só mais um joguinho, só
essa mensagem, só mais uma passadinha pelo facebook. Não desligamos. Na Folha de São
Paulo de 24 de maio, Camila Hirotsu, especialista em sono do departamento de psicobiologia
da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), faz o alerta: “ficar no celular, tablet ou
computador antes de dormir atrasa em mais de duas horas o pico de produção de melatonina,
hormônio que melhora o sono e pode ajudar a prevenir alguns tipos de câncer, como os de
mama e de próstata. O hábito ainda reduz em 50% a produção desse hormônio e aumenta a
sensação de sonolência na manhã seguinte”. Multiplique essa rotina por sete dias por semana.
Trinta dias por mês. 365 dias por ano.
Melhor desligar o notebook. Já é tarde. Lá fora, na rua, a escuridão da madrugada rivaliza com
clarões que pipocam das janelas dos vizinhos. Estão acordados. Também não consigo dormir.
Não é culpa do computador. Não dessa vez. Passei o dia horrorizado e atormentado com a
história da jovem no Rio de Janeiro que foi estuprada por trinta homens. Trinta. No mesmo
dia, um ator que já se divertiu ao confessar e fazer apologia de estupro em emissora de TV,
rede nacional (e foi aplaudido), foi recebido em audiência oficial pelo ministro da Educação,
para defender o 'fim do ensino do comunismo nas escolas'.
Vejo um mundo tão escuro. Tenho medo. Não são os monstros. É o ser humano. Alguém pode
acender a luz?