por Laura Araújo
Cortes orçamentários acumulados nos últimos anos elevam-se a R$ 83 bilhões; a possibilidade da produção científica do país voltar a crescer depende da política
“E agora, Brasil? As bolsas minguaram, as pesquisas diminuíram; há menos mestres, poucos doutores. Quer estudar no exterior, mas oportunidade não há mais. E agora, Brasil?”: quem sabe não seria assim que Carlos Drummond de Andrade descreveria a situação da ciência brasileira em 2022? Quem sabe, não recorreria também a sua certeza de que “tinha uma pedra no meio do caminho”? Se quisesse fazê-lo, o poeta mineiro estaria amparado por uma série de dados para sua releitura dos poemas “E agora, José?” e “No meio do caminho”.
Os cortes no orçamento federal para educação, ciência e tecnologia, que desde 2016 totalizam R$ 83 bilhões, começaram em meados da década passada, entre a fase final da segunda gestão da presidente Dilma Rousseff (PT), já sob o ataque intenso que desaguaria num absurdo processo de impeachment, e o governo de Michel Temer (MDB). Depois de 2016, alegadas razões econômicas, mas, de fato, principalmente decisões políticas determinaram, ano após ano, menor disponibilidade de recursos financeiros para as universidades públicas, institutos de pesquisa e agências de fomento – que atendem também instituições privadas comprometidas com a pesquisa científica.
Os contingenciamentos atingiram em cheio as verbas de custeio das universidades federais, aquelas indispensáveis a seu funcionamento rotineiro e à manutenção da infraestrutura, administradas pelo Ministério da Educação (MEC), mas também todos os outros segmentos fundamentais do ecossistema que sustenta a pesquisa científica em qualquer lugar do mundo.
Assim, bolsas, que permitem a estudantes, desde a graduação até o pós-doutoramento, dedicar grande parte de seu tempo à pesquisa científica, e auxílios indispensáveis a projetos de pesquisa. às vezes de longo prazo, foram duramente atingidos tanto pelos cortes no MEC, a que está ligada a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), quanto no Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), a que se vincula o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). O bloqueio ilegal ao Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT), administrado pela Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), empresa pública na alçada do MCTI, constitui um capítulo à parte nesse cabo de guerra entre o governo federal, de um lado, as universidades e a comunidade científica, de outro.
Só neste ano, não fosse a corajosa resistência do lado aparentemente mais fraco, teria sido levado a efeito um corte total de R$ 5,7 bilhões do setor. Detalhando, para as universidades e institutos federais haveria, em junho, um corte de R$3,2 bilhões anunciado em maio (equivalentes a 14,5% da parte do ensino superior no orçamento do MEC), valor que logo recuou para R$1,6 bilhão. Com a reação decisiva das universidades do país inteiro, apoiadas por outras instituições, o corte terminou sendo fixado pelo governo em R$ 434,5 milhões. Para o MCTI, o contingenciamento anunciado em maio fora de R$ 2,5 bilhões do FNDCT, totalizando naquele momento uma retirada de R$ 4,1 bilhão no orçamento previsto para educação, ciência e tecnologia. Registre-se que cerca de R$ 2 bilhões do fundo permanecem ainda contingenciados.
A sanha de um governo marcado por interesses muito distantes, para não dizer opostos a uma política séria de investimentos em educação, ciência e tecnologia, frente aos recursos do setor, entretanto, é inquebrantável. Dessa forma, neste mês de outubro, dia 4, mal terminara o primeiro turno das eleições majoritárias, o decreto 11.216 alterou o de número 10.961 para estabelecer um novo contingenciamento de R$ 328,5 milhões no orçamento do MEC. Somado ao montante já bloqueado, esse novo bloqueio “perfaz um total de R$ 763 milhões em valores que foram retirados das universidades federais do orçamento que havia sido aprovado para este ano”, comunicou em nota a Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes).
A reação foi imediata. Em Salvador, estudantes da Universidade Federal da Bahia (UFBA) saíram em marcha pelo centro da cidade. Em Brasília, alunos do Instituto Federal (IFDF) e da Universidade de Brasília (UnB) realizaram ato contra o sequestro orçamentário em campi da Asa Norte. Também houve protestos na universidade federais da Paraíba (UFPB), em João Pessoa, de Alagoas (UFAL), em Maceió, e do Amazonas (UFAM), em Manaus, entre outras. Reitorias emitiram notas criticando a decisão do governo federa, tomada às vésperas do segundo turno da eleição presidencial, e a União Nacional dos Estudantes (UNE) convocou uma grande manifestação nacional para 18 de outubro. A rápida reação fez o governo voltar atrás poucos dias depois. Talvez tenha percebido o tiro no pé que o bloqueio representaria para seu candidato à reeleição, em momento de campanha que conduz com extrema agressividade e componentes francamente sórdidos.
Um semi apagão em curso
Desse tão atacado ecossistema de pesquisa pode sair de vacinas e remédios a inovações em inteligência artificial, além de pesquisas em áreas como direito, meio ambiente, economia, ciência política e planejamento urbano, por exemplo. Mas ele está sob risco. “Há hoje um semi apagão na formação de recursos humanos no Brasil devido ao desinvestimento no ensino superior, sobretudo público. O Brasil perdeu condições de se desenvolver na engenharia, nas profissões ditas do futuro. Tem havido menos pesquisa, e o desenvolvimento econômico depende extraordinariamente do desenvolvimento científico”, sintetiza Renato Janine Ribeiro, presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC).
Pesquisa científica se relaciona diretamente com desenvolvimento socioeconômico, mas levá-la ao cenário desejável do ponto de vista econômico, isto é, com recursos suficientes para financiar pesquisadores, desenvolver novos projetos e manter equipamentos funcionando, passa pela política. E o Brasil tem falhado nos últimos anos na vontade política para aplicar corretamente os recursos, alertam os especialistas. “O principal desafio, mas não o único, é superar situação de emergência científica e educacional. A educação é o pré-requisito e o maior desafio para o desenvolvimento do nosso país, tanto do ponto de vista da cidadania como do ponto de vista do mundo do trabalho e do seu desenvolvimento integral, com justiça social”, sintetiza Valder Steffen, reitor da Universidade Federal de Uberlândia (UFU) e presidente da Comissão de Ciência & Tecnologia e Empreendedorismo da Andifes.
Observados os parâmetros e indicadores usuais para avaliar a situação da pesquisa no Brasil, o que primeiro salta aos olhos é, de fato, a redução do investimento no setor. “Houve uma redução substancial do orçamento do MCTI, do CNPq, da Capes, do Ministério da Educação. Todas as fontes de financiamento da pesquisa e da formação de nível superior foram seriamente prejudicadas”, contabiliza Janine.
Os dados contabilizados pelo Observatório do Conhecimento, rede de associações e sindicatos de professores de várias universidades brasileiras, revelam que, contra os R$ 27,8 bilhões aplicados em pesquisa e desenvolvimento em 2014, último ano do primeiro mandato de Dilma Rousseff, o investimento caiu para apenas R$ 10,5 bilhões – apenas 38% do primeiro valor – em 2021, terceiro ano do governo Bolsonaro. O CNPq teve uma queda de 49,7% em seu orçamento nesse período.
Janine destaca duas consequências principais dos cortes orçamentários em educação e ciência. “Em primeiro lugar, o Brasil perdeu condições de formar pessoas qualificadas no ensino superior e pós-graduação, são fatores essenciais para se ter mão de obra de maior qualidade, no ensino e em todas as áreas do conhecimento. Por outro lado, recuamos na pesquisa porque a formação de mestres e doutores, seus quadros essenciais, caiu em cerca de 15% nesses anos”, diz.
Steffen reforça essa visão, observando que “são dezenas de editais, ações e encomendas públicas sob responsabilidade de órgãos como MCTI, Finep e CNPq, assim como de organizações sociais vinculadas ao MCTI. afetadas por essas ações”. Destaca que algumas, “inaceitáveis em um espaço democrático de direito, geram prejuízos ao conjunto da ciência brasileira e afetam as empresas e a competitividade externa do país”. A isso há que se acrescentar “os desmontes de grupos de pesquisa e a interrupção de atividades científicas e acadêmicas da maior relevância para o presente e para o futuro do País”.
Por dentro das universidades
Wagner Alves Carvalho, pró-reitor de pesquisa da Universidade Federal do ABC (UFABC), em São Paulo, ao falar sobre os impactos dos cortes sentidos na instituição, conta que muitos projetos de pesquisa de prazo mais longo precisaram ser interrompidos nos últimos anos. “Existe uma sequência nas investigações que é comprometida quando se tem limitação dos recursos, e com isso há a desmobilização de toda a cadeia de investigação que estava sendo planejada”. E para Steffen, da Andifes, esses prejuízos só vão se agravar se o orçamento das universidades e dos institutos federais não for recomposto urgentemente. “Na sequência, toda a cadeia de financiamento da ciência, tecnologia e inovação precisa ser cuidadosamente atendida em termos orçamentários e financeiros compatíveis com as necessidades do país”, observa.
As universidades têm trabalhado remanejando recursos e pagando o que é mais urgente, mas a situação real de cada instituição tem suas particularidades. Em junho, a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), por exemplo, anunciou que não tinha recursos para funcionar no segundo semestre do ano porque o orçamento de 2022 caíra do do valor previsto de R$ 329 milhões para R$ 306 milhões, afetando o pagamento até de contas básicas, como água e luz.
A situação na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e na UFABC também não é fácil, segundo seus pró-reitores de pesquisa. “O que as universidades têm feito, e a UFABC em particular, é tentado remanejar recursos dentro do orçamento e readequar os gastos de maneira a garantir as despesas essenciais, inclusive na pesquisa”, conta Carvalho. Nesse sistema, a instituição tem um orçamento destinado exclusivamente a pesquisa. “Fica longe do que seria ideal, mas a ideia é suprir o mínimo necessário para dar continuidade às atividades”, diz. Lia Rita Bittencourt, pró-reitora de Pós-Graduação e Pesquisa da Unifesp, diz que “o corte orçamentário está sendo desastroso e as universidades lutam para sobreviver. As demandas são muitas, mas continuamos mantendo a excelência das pesquisas graças aos esforços de pesquisadores, técnicos e alunos”.
À primeira vista a solução pode parecer simples – e rápida. Basta que as universidades tenham dinheiro para que voltem a funcionar a contento. Entretanto, “um dano desses não se recompõe em um ano. Os cortes não aconteceram só no Ministério da Educação, mas também no FNDCT”, observa Janine Ribeiro. Uma nova política é ingrediente fundamental na tentativa de reverter o atual panorama. “Mudanças são urgentes na priorização das políticas públicas, com distribuição orçamentária adequada, combate contínuo à corrupção e desvio de verbas públicas, e valorização dos resultados científicos apontados pelas universidades que respondem às demandas da sociedade. Tudo isso só se dará com as escolhas conscientes dos nossos governantes e diálogo amplo, inclusivo e democrático com toda sociedade”, sintetiza a pró-reitora da Unifesp.
Carvalho entende que é preciso recuperar, a visão de longo prazo na política, sem a qual a ciência não avança. Ele cita o caso das vacinas contra a Covid-19, que deveram seu rápido desenvolvimento à existência prévia de uma gigantesca estrutura de pesquisa. Se há alguns anos o senso comum poderia duvidar da importância de se estudar a reprodução de novos vírus respiratórios e nossas defesas contra eles, depois da pandemia ficou um pouco mais claro que os resultados concretos que uma sociedade requer da ciência, como vacinas ou alimentos, não surgem de uma hora para outra. Trata-se, ao contrário, dos resultados de anos e anos de investigações. “Se não houvesse uma sequência de investimentos de grupos de pesquisa atuando no longo prazo, não teríamos o resultado quando precisamos”, observa. A construção do conhecimento se dá num crescente “e se ela é interrompida, toda a cadeia é paralisada”, diz o professor.
Por isso mesmo, diz que o futuro do Brasil está em jogo. “Se não for revertido o descaso com a educação e ciência, o colapso de grandes instituições produtoras de pesquisas de alto nível pode ocorrer”. Segundo ela, alunos de pós-graduação e jovens pesquisadores já não se sentem estimulados a seguir carreira universitária no Brasil, e os que seguem estão migrando para países onde as condições de pesquisa são melhores. “Ou seja, estamos perdendo cérebros”.
Janine levanta que uma quebra geral no orçamento público brasileiro tornará um desafio gigantesco conseguir dinheiro para a pesquisa. O presidente da SBPC lembra que a simples existência da Emenda Constitucional (EC) 114/2021, apelidada PEC do Calote, colocou mais um ponto de tensão sobre a educação. “São R$ 93 bilhões de precatórios que deverão ser pagos pelo governo em 2023. Precisa ter dinheiro para isso e também para recompor o que se perdeu no CNPq, na Capes, na saúde etc. As questões se somam e é difícil saber o que será prioridade e com que recursos.”, diz.
Urgente para o pró-reitor de pesquisa da UFABC é a reversão dos contingenciamentos, o cumprimento do que já está legalmente definido. Se ocorrer essa sinalização positiva, será possível recobrar o vigor da pesquisa. “A estrutura de pesquisa do país é significativamente sólida, com grupo de pesquisadores de reconhecimento internacional”, observa. Ultrapassadas as barreiras mais urgentes e recuperar os investimentos congelados,” precisaríamos de um novo contrato social”, diz a pró-reitora da Unifesp. “Precisamos de um projeto político mais proativo, orientado a missões para enfrentar os problemas, com os ambientais ou de saúde, por exemplo. Ter mais assertividade, mais transparência para a solução para os grandes problemas da sociedade”, enfatiza Bittencourt.
Para Carvalho, será preciso fortalecer as redes de comunicação institucionais, inclusive com o governo. “Seria fundamental que os canais de comunicação entre pesquisadores e universidades pudessem ser retomados com a área de gestão governamental. São discussões que precisam acontecer para que a administração central identifique prioridades nas demandas”, esclarece. “Parcerias também serão bem-vindas, inclusive em escala internacional, além de redes de pesquisas internacionais entre países desenvolvidos e em desenvolvimento, o que trará interesse e busca de soluções para os problemas brasileiros”, diz.
Steffen lembra que a partir de 2023 haverá um novo Congresso que exigirá um trabalho conjunto, articulado e intenso das universidades junto aos parlamentares comprometidos com o desenvolvimento científico e tecnológico do Brasil. Sem isso será muito difícil quebrar as resistências dos agentes políticos. Em paralelo é preciso falar com a sociedade, sensibilizá-la a respeito do descaso e da irresponsabilidade em relação a educação, ciência e tecnologia que matam o futuro do país.