*Texto originalmente publicado no Edgardigital, veículo de divulgação da UFBA, edição 78
Maio de 1968, na França, foi um grande movimento de contestação dirigido a todo tipo de autoritarismo. Mas foi também a moça sorrindo, o casal abraçado no meio da passeata.
Maio de 1968 foi uma grande insurreição de estudantes, à qual aderiram intelectuais e trabalhadores, contra as repressões ao comportamento civil materializadas no Estado, então gerido pelo general Charles de Gaulle. Mas foi também a picareta na mão do estudante, e mais o trator do trabalhador, colocados a serviço da causa singela de remover paralelepípedos para revelar a praia.
Foi o inesquecível postulado da imaginação no poder por sobre todos os dogmas ideológicos, mas foi também a intervenção sorrateira no muro – “não ao leste, não ao oeste” -, na estátua – “liberem a expressão” -, no anúncio publicitário – “CRS=SS”, assemelhando a polícia francesa à polícia fascista.
Foi uma mensagem de pacifismo às tantas guerras do pós-guerra, mas foi também o rapaz atingido na cabeça, o medo do estudante correndo ao divisar a barreira policial.
Maio de 1968 foi um evento histórico que, 50 anos depois, costuma ser recordado pelas grandes bandeiras que sintetizou, mas que poucas vezes evoca em nosso imaginário cada um dos zilhares de pequenos gestos descoordenados de expressão de rebeldia, que só depois, reunidos, ganhariam significados maiores.
É justamente um olhar “miúdo” sobre o Maio de 1968, da lavra do fotógrafo independente francês Phillipe Gras (1942-2007), o que o visitante irá encontrar na exposição “Au coeur de Mai 68” (No coração de Maio de 68), em cartaz no saguão da Aliança Francesa, na Ladeira da Barra, até o dia 14 de maio.
Trata-se de um conjunto de 43 reproduções de fotos do autor que nunca haviam sido expostas antes (33 estão na Aliança da Barra, e 10 no hotel Ibis, no Rio Vermelho, numa espécie de “teaser” da exposição). A exposição acontece simultaneamente na sede do 13º Arrondissement, em Paris, e nas várias sedes da Aliança Francesa mundo a fora. A curadoria da exposição na Bahia é da professora do Instituto de Letras da UFBA, Ana Lígia Leite e Aguiar.
Philippe Gras foi um fotógrafo independente que, “ao longo da carreira, procurou voltar sua câmera a trabalhos, temas e artistas nos quais acreditava, e com quem nutriu um profundo relacionamento”, segundo informa o site oficial sobre sua obra. “Ele também apontou sua câmera para os fenômenos sociais que eram importantes para ele”, diz ainda o site, e “nunca caiu em nenhum tipo de elitismo, muito pelo contrário”.
Não é exagero, a tirar pelas fotografias expostas na Aliança Francesa. O conjunto de imagens permite imaginar o fotógrafo se desdobrando para registrar tanto conflitos de rua com a polícia, quanto palestras de intelectuais (como Jean Paul Sartre e Aimé Cesaire); para capturar pichações e intervenções pitorescas, sem perder acontecimentos inimagináveis, como um trator removendo paralelepípedos no meio da rua.
Essa iconografia é “uma linha de fuga” em relação à macronarrativa sobre o “épico” mês de contestação, segundo a curadora da exposição. Ali, Gras “conta, à sua maneira, como ele percebeu e flagrou momentos de tensão”, afirma Ana Lígia, que enfatiza, para além das cenas de luta tradicionalmente evocadas, certa “leveza” e “reflexividade” capturadas pelo olhar do autor.
“A fotografia de Phillippe Gras não é supermidiatizada. Ela mostra que a história também pode ser contada através de ‘migalhas’”, observa a professora Ana Lígia, sugerindo uma aproximação com a chamada “micro-história”, gênero historiográfico inaugurado pelo historiador italiano Carlo Ginzburg, que se propõe a deslocar o foco narrativo dos chamados “grandes eventos” para o olhar de determinados sujeitos ou grupos.
Imaginação sequestrada
Professora de literatura brasileira, Ana Lígia não foi convidada pela Aliança Francesa para assumir a curadoria da mostra por ser propriamente uma especialista na história do Maio de 1968, mas por conta de uma pesquisa que desenvolve acercada iconografia produzida por um famoso “olhar contestador” da história da cultura brasileira: o do cineasta baiano Glauber Rocha. Talvez por isso, mais do que uma mera seleção e ordenação das imagens, Ana Lígia fez da exposição uma espécie de manifesto.
“Nas imagens de Gras, há um apelo sedutor, um convite-pergunta, uma afronta via imagem a nos dizer que jovens e trabalhadores lutavam por tudo aquilo por que supostamente deveríamos permanecer lutando, ainda hoje. (…) O desejo é que a força desses gestos pudesse retornar ao presente, como que nos capturando pelo pescoço para esse algo mais urgente: ir às ruas, entender que os em nada favorecidos pelas políticas públicas somos nós, conclamar todos ao viver juntos; mas que isso não acontecesse daqui a uma semana ou amanhã, mas que fosse aqui, agora, ontem”, diz ela, no texto de apresentação da mostra.
A exposição, ela afirma, é “uma filigrana, um grão de areia” em meio à profusão de material sobre o Maio de 1968 – cuja circulação tende a aumentar ao longo deste mês de efeméride – e tem a intenção, explicita, de dizer que “estudantes, trabalhadores e intelectuais não estão separados”, numa clara contraposição “a essa classe média que detesta pobre”.
Nesse sentido, pode-se dizer que tem havido, nas publicações comemorativas ao Maio de 1968 ao longo das últimas cinco décadas, certa tendência à “despolitização” do evento: noticiário e propaganda tradicionalmente tendem a destacar a mera “rebeldia” da juventude francesa, escamoteando a participação dos trabalhadores no movimento e buscando vender ao público uma sensação de que o caráter contestatório daquele mês histórico resumiu-se à catarse de ‘protestar por protestar’, em torno de um supostamente quimérico direito de “desejar o impossível”, conforme discutem as historiadoras Fabiana Fredrigo e Laura de Oliveira no artigo “História e Memória em torno de 1968: do poder sem imaginação à imaginação no poder” .
Ao apontar a necessidade de desconstruir um olhar ‘mitificado’ em torno do Maio de 1968, as historiadoras problematizam a tendência à despolitização das palavras de ordem “sonhadoras” daqueles dias épicos – algumas das quais flagradas por Gras – , que, somada à ênfase no recrudescimento da repressão conservadora em decorrência daqueles protestos (como, no caso brasileiro, a instauração do AI-5, em dezembro de 1968), conduz a uma espécie de atavismo: “Ao olharmos os anos 60 com os óculos do mito, habituamo-nos, simultaneamente, à caricatura e ao fardo de viver num mundo em que nada parece ser possível de ser transformado. Então, desacreditamos da possibilidade da imaginação, entregamo-nos ao niilismo e ao desengajamento”, concluem.
Em suma: se o Maio de 68 ainda pode ser estopim de uma onda latente de ação transformadora, como acredita a professora Ana Lígia, ou se seguirá sendo o souvenir empoeirado de uma imaginação fracassada, só o tempo dirá. Para já, convém refletir sobre tudo isso diante das fotografias de Phillippe Gras.