Mas que história é essa? Você fez Humanas, formou-se em Jornalismo, escapou sabiamente das análises combinatórias e dos movimentos uniformemente variados, é amante da Literatura e… diz que gosta muito, muito mesmo de Ciências? Das Exatas? Das Biológicas? Da Matemática? Que loucura é essa? Como pode… Explica aí.
Sempre que me fazem essas perguntas – e às vezes são bastante incisivas, quase como se eu fosse um traidor da classe dos humanoides que vendem miçangas em Búzios -, começo dizendo que o mundo não precisa ser tão estanque ou compartimentado, saberes fragmentados em guetos distantes. Reconheço imediatamente meu encantamento pelas Ciências – todas elas – porque, no conjunto da obra, o que o conhecimento científico faz é contar uma fantástica história, que começou há 14 bilhões de anos. É uma narrativa mesmo, com personagens, enredos, tramas, diálogos, conflitos, clímax. Só não sabemos ainda qual será o final – mistério que torna a história ainda mais instigante. Quem não gosta de sentar numa roda, uma fogueira no centro, e passar a noite jogando conversa fora? Nosso apreço pelas narrativas é ancestral.
Se o interlocutor ainda assim não se convence com esse argumento lúdico e reforça o ‘não dá, Humanas não combina com Exatas’ , coloco à mesa razões de natureza mais racional. Conhecer as ciências com mais propriedade é uma das entradas que nos encaminha ao entendimento também mais preciso de quem somos e de onde viemos. As três origens.
Já me peguei brisando – palavra que minha filha adora usar – e desenhando mentalmente como teriam sido aqueles instantes iniciais de nascimento do universo, o parto, logo após o Big Bang. Será que os estrondos provocados pelas explosões de energia eram parecidos com baterias de fogos de artifício que são acionadas quando os times de futebol entram em campo, em dia de final de campeonato? Ou seriam mais ritmados e harmônicos, uma bateria de escola de samba a desfilar pelo infinito da Marquês de Sapucaí estelar, algo mais próximo de poeira cósmica martelando bumbos e cuícas, espécie de Olodum das galáxias descendo as ladeiras do Pelourinho, rumo à Via Láctea? Começamos a nascer ali. Deve ter sido um espetáculo deslumbrante aquela energia e os estilhaços todos dançando e vagando caoticamente pelo espaço sem fim, até que os ânimos se acalmaram, a empolgação tornou-se mais comedida e certa ordem finalmente instalou-se no Universo.
Fico imaginando também – é muito divertido, tente! – se a vida aqui na Terra (a segunda origem) veio de fora para dentro, generosamente carregada e ofertada por rabos de cometa que aqui despencaram, ou se os elementos que nadavam na água abundante e fervente de nossos oceanos primitivos (verdadeiras sopas de letrinhas químicas) resolveram, de forma autônoma e soberana, por aqui mesmo, que seria muito mais gostoso e agradável viver em grupos e comunidades do que sozinhos. Moléculas, seres pluricelulares, moluscos, águas-vivas, vertebrados… até que aquele minúsculo arranjo de ligações transformou-se em dinossauros, no temido Tiranossauro rex. Pensar ainda que aqueles bichões imponentes foram extintos por um malfadado cometa que se chocou contra o planeta há 65 milhões (não, os dinos não vivem no centro da Terra. Pura ironia o que escrevi na crônica da semana passada).
A gente aparece nessa linha do tempo há apenas seis milhões de anos, descendo das árvores como sujeitos peludos, cabeçudos, mudos e assustados com as novidades e os desafios da natureza. Ainda precisávamos de pernas e braços para andar. Como sapiens, temos uns 200 mil anos. Um espirro, bebês nessa história temporalmente gigantesca. É extraordinário saber que, por singularidades e impulsos biológicos e culturais, nosso cérebro, em suas micro-explosões de impulsos elétricos, como num Big Bang em escala reduzida e particular, deixou de ser apenas amontoado de neurônios para alcançar também a dimensão da mente. Consciência, raciocínio e memória humanas. A terceira origem. Como já escreveu Gabriel García Márquez, ‘somos aquilo que lembramos’.
É incrível como consigo lembrar com riqueza de detalhes dos jogos de futebol disputados com os primos no quintal inclinado da casa dos avós, depois dos almoços de domingo, quando tinha apenas seis anos (querem a narração, com pormenores?), mas sou obrigado cada vez mais a anotar as tarefas da semana numa agenda. Difícil mesmo é depois lembrar de consultar a agenda. Neste segundo semestre letivo, já esqueci por três vezes o pendrive com slides e textos das aulas espetado em computadores das salas de aula da universidade. Divertida mente, essa nossa.
Devo confessar, antes de terminar e de me despedir (até a próxima semana, pessoal), que o tema das origens, também por outras razões, agora nada agradáveis ou alvissareiras, tem me cutucado bastante nos meses recentes. Um furacão de retrocessos está passando pelo país, deixando rastro de profundos estragos. O que nos cabe, por enquanto, é resistir. Com dignidade e bravura. Vai chegar a hora de (re)começar. De novo. Vou contar contigo?