- Os ataques de cardumes de piranhas, frequentemente presentes no imaginário popular, são raríssimos, mostra estudo da Unesp e da Universidade de Taubaté
- Conforme dados de 2012 a 2022 em 13 estados do Brasil, a probabilidade de uma mordida de piranha gerar consequências graves é de 0,68% — 1 caso a cada 147
- Manchetes e opiniões profissionais indevidas em matérias jornalísticas reforçam a falsa fama, tirando a atenção da contribuição humana para os acidentes
As piranhas são precedidas por sua reputação: temíveis peixes assassinos, autores de ataques violentos retratados em filmes de Hollywood. Na realidade, os ataques de cardumes são raríssimos e não comprovados — mas a percepção negativa dos peixes é corroborada pela cobertura midiática no Brasil, tirando a atenção do impacto ambiental provocado pelo próprio ser humano, que contribui para as mordidas.
Pesquisadores da Universidade Estadual Paulista (Unesp) e da Universidade de Taubaté relatam as manchetes como exageradas, dando atenção indevida às ocorrências, que, na realidade, são raras e costumam ser influenciadas pela ação antrópica (ou seja, humana), como o descarte de restos orgânicos em lagos e represas, somada ao comportamento protetor de ovos dos machos. A análise foi publicada na Revista da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical.
O teor da cobertura midiática foi avaliado por meio de notícias veiculadas entre 2012 e 2022, considerando somente os estados com mais de 20 indivíduos feridos reportados no período. Dos 13 estados incluídos no estudo, Tocantins teve 309 ocorrências relatadas, sendo mordidas únicas, causadas pela água represada e alimentos descartados no local. Em seguida, Roraima e São Paulo tiveram 140 e 78 ferimentos, respectivamente, pelos mesmos motivos. Em Alagoas, foram 68 ferimentos relatados, com associados à época de reprodução das piranhas, e no Paraná, foram 40 mordidas únicas — novamente, causadas pela água represada e descarte de alimentos.
As mordidas de piranha geralmente causam ferimentos leves a moderados, como pequenas perdas de pele e, mais raramente, de tecido muscular ou ósseo. Em uma década, dos 711 casos registrados no Brasil, a maioria (82%) envolveu mordidas únicas nas mãos ou pés, resultando apenas em perda de pele. Apenas 0,7% dos casos foram considerados sérios, com perda de tecido muscular e, ocasionalmente, ósseo. Houve um único caso (0,14%) de morte isolada, onde a vítima foi encontrada com ferimentos compatíveis com mordida de piranha. Curiosamente, 17% dos pacientes não tiveram seus ferimentos detalhados pela mídia.
Informações locais apontam que quase 30% dos ataques (318 casos) ocorreram durante a época de reprodução das piranhas, enquanto 26% foram causados pelo descarte inadequado de alimentos na água e 15% pela formação de represas para usinas hidrelétricas.
O uso do termo “ataques” também contribui para a vilanização do peixe, e as reportagens ignoram que as espécies Pygocentrus nattereri (piranha-vermelha) e Serrasalmus maculatus (piranha-amarela), associadas aos ferimentos, podem se alimentar de outros animais em decomposição, com peixes vivos e inteiros ou fragmentos de escamas, nadadeiras e músculos sendo o principal em sua dieta.
A sazonalidade dos acidentes não foi totalmente explicada nas reportagens, com muitos relatos sem especificação de datas, e frequentemente, não havia evidências de que os indivíduos que opinaram nas reportagens seriam, realmente, especialistas. Vidal Haddad Júnior e Patrícia Tatiane Gomes, autores do estudo, descrevem que “os resultados apontam também para a desinformação de alguns órgãos de imprensa, que nem sempre procuram as pessoas certas para opinar sobre os surtos de mordidas, o que agrava o problema”.
“Sempre é uma surpresa ver as manchetes exageradas e o destaque indevido dado a essas mordidas. Imagino que como vemos em tantas situações com outros animais, o peixe que é considerado um assassino sanguinário deve ser visto como mais um fio na teia da natureza e que desempenha um papel importante”, conclui Haddad Júnior.




