Manifestações de rua em defesa da democracia foram impulsionadas por convocação de artistas

Manifestantes protestam contra a PEC da Blindagem e PL da Anistia na orla de Copacabana (foto: Tânia Rêgo / Agência Brasil)
Talvez cientistas políticos e outros dedicados estudiosos do campo das humanidades ainda tenham muito a investigar e refletir sobre a força especial que o campo das artes agrega às grandes mobilizações de caráter político. E é possível que aí se compreenda a fundo como um curto vídeo, de apenas 47 segundos, do compositor e cantor Caetano Veloso postado na quinta-feira, 18 de setembro, foi a ponta de lança para transformar uma manifestação que estava sendo convocada às pressas por movimentos sociais, organizações trabalhistas e partidos de esquerda, e que ainda na véspera se esboçava timidamente, na festa de multidões que explodiu no domingo, 21 de setembro, pelo país afora – e indo até além dele.
A razão da cobrança de Caetano por uma resposta vigorosa da sociedade brasileira — ao menos da parte dela comprometida com a defesa da democracia — era a chamada PEC da impunidade ou, mais cruamente, PEC da bandidagem, aprovada na Câmara dos Deputados na madrugada da quarta-feira, 17, e mais a urgência na votação assegurada, também na Câmara, ao projeto de lei de anistia aos golpistas do 8 de janeiro.
A proposta de emenda à constituição número 3/2021, a tal PEC enfim derrubada por inconstitucionalidade em parecer unânime da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado – e por isso definitivamente arquivada, na quarta-feira, 24, graças à pressão bem construída da opinião pública – previa que crimes de todo tipo praticados por parlamentares só poderiam ser julgados pelo Supremo Tribunal Federal (STF) após licença votada e aprovada pelo próprio Congresso. E o delirante projeto de lei (PL) da anistia mirava o perdão para a organização criminosa liderada por Jair Bolsonaro já condenada a penas consideráveis pelo STF em 11 de setembro, além de suas pretensões de beneficiar todos os demais envolvidos na tentativa de golpe de estado que se desdobrou de junho de 2021 a 8 de janeiro de 2023.
Fato é que em apenas quatro dias a mobilização contra pautas indecentes em curso no Congresso acumulou força suficiente para levar centenas de milhares de pessoas às ruas nas 27 capitais de estado ou distrito, em dezenas de cidades de portes diversos espalhadas pelo país e até mesmo a alcançar pequenos grupos de brasileiros em Londres, Paris e Berlim. Como isso se deu?
Há que se considerar, para responder a tal pergunta, o trabalho da empresária e produtora Paula Lavigne (em articulação com a Mídia Ninja) que, após pôr no ar o vídeo de Caetano Veloso, acionou sua extensíssima rede de artistas em todo o país, principalmente no ambiente da música, convocando-os à efetiva participação nos atos do domingo – e a esse respeito ela falou bastante, por exemplo, em entrevista publicada pela Folha de S. Paulo na quarta-feira, 24 de setembro.
A partir dessa ação multiplicaram-se os chamados à população para tomar as ruas, num crescendo vertiginoso de mensagens postadas nas redes sociais por personagens conhecidas de todos os quadrantes da cena cultural, enquanto se definiam os shows que dariam o tom das poderosas manifestações populares contra a desfaçatez das propostas da Câmara. E se Copacabana, inebriante, entrou em cena com as mais altas referências da grande música popular brasileira estendendo nosso presente, via os octogenários e geniais Chico Buarque, Caetano Veloso e Gilberto Gil, até os tempos da heroica resistência democrática/cultural dos últimos anos1960 e iniciais 1970, por sua vez, Brasília responderia com a vibração de Chico César, e Salvador, com a energia intensa de Daniela Mercury.
Houve muito mais pelo país afora. E até a capital paulista, onde a condução do ato estava concentrada nos movimentos sociais articulados pelas frentes Brasil Popular e Povo sem Medo e a organização da manifestação tinha como principal suporte as poderosas máquinas das centrais sindicais e dos partidos de esquerda, lá para as tantas, após o vídeo de Caetano Veloso, correu atrás da desejada vertente musical. Assim, Marina Lima e Otto, entre outros, estampavam no fim de semana os cartazes da convocação “São Paulo nas ruas” e, no domingo, apresentações dos músicos se alternaram aos discursos das lideranças políticas no palco sobre o caminhão em frente ao Museu de Arte de São Paulo (MASP), numa apinhada Avenida Paulista.
A destacar que o famoso rapper Emicida, lenço palestino posto na nuca com pontas caindo sobre o peito, em vez de música, fez ali, sem esgotar os dois minutos que tinha à disposição, uma fala eloquente e radicalmente política. “Nunca se esqueçam, essa cidade é nossa! A rua é nós, São Paulo!”, bradou. Recebeu de volta a reação vibrante da multidão. Prosseguiu nessa trilha: “Tomemos as ruas quantas vezes forem necessárias pra defender nossos direitos, pra defender nosso povo, pra defender nossa origem, pra defender nossa gente, pra defender nosso país, pra defender nosso futuro, pra defender nossa esperança, pra defender um amanhã decente, pra defender dignidade, pra defender salário, pra defender agricultura, pra defender cultura, pra defender ecologia, pra defender o planeta…” Foi em frente lançando uma pergunta ao público: “o Brasil é crucial para salvar o planeta, certo irmão?” Ovacionado, concluiu com as palavras de ordem “Sudão livre, Congo livre, Palestina livre, e Brasil livre da PEC da bandidagem”.

Manifestantes na Avenida Paulista (foto: Paulo Pinto / Agência Brasil)
A relação entre as muitas manifestações nas ruas e o enterro da PEC da impunidade na quarta-feira, 24, pelo Senado, é direta, assim como se dá entre elas e o enfraquecimento do ardor anistiante de golpistas ainda insepulto na Câmara. Entretanto, será necessário talvez conceder mais tempo ao exame e à reflexão sobre os elos por acaso existentes entre esses fatos e o brilho inquestionável da performance de Lula na ONU, somados o discurso memorável na abertura da 80ª Assembleia Geral na terça-feira, 23 de setembro, uma declaração poderosa, no dia seguinte, em evento sobre a defesa da democracia e, na sequência, mais uma fala incisiva em encontro sobre o clima.
Quanto à possível relação entre tudo isso e a histórica condenação pelo Supremo STF, em 11 de setembro, da organização criminosa liderada por Jair Bolsonaro, por tentativa de golpe de Estado e abolição violenta do estado de direito, entre outros crimes, há que se ter tempo adequado também para compreendê-la.
A rigor, trata-se de pensar nas peças que desenham o estágio atual da democracia no país, em meio às turbulências de um mundo marcado por expansão da extrema direita e de fascismos, guerras, genocídios, implosão das relações internacionais e crise do capitalismo — e talvez esta expressão seja a que, de fato, contém todas as anteriores. Estamos diante de algo novo na democracia brasileira, essa mesma que nos últimos 40 anos temos sempre qualificado como incipiente?
Enquanto não temos resposta, observemos apenas que a sequência de fundamentais eventos políticos vividos neste setembro é vertiginosa: à expectativa do início do julgamento sem precedentes dos réus da tentativa de golpe de estado, de 2 a 4 de setembro, seguiu-se, em 7 de setembro, nas ruas, as manifestações de bolsonaristas, grandes ainda, e as manifestações de tamanho modesto do campo da esquerda, em defesa da democracia e das pautas de avanço social.
Em 9 de setembro, aconteceu o voto robusto e detalhado do ministro relator Alexandre de Moraes pela condenação dos réus. No mesmo dia o ministro Flávio Dino deu o seu voto acompanhando o relator. Dia 10, uma espécie de gigantesco balde de água fria foi despejado quase incessantemente por 13 horas sobre parcelas da população plugadas na TV Justiça: o palavrório incessante e incongruente do ministro Luiz Fux terminaria com o voto de absolvição dos réus, à exceção do delator Mauro Cid.
A democracia brasileira foi dormir nauseada. Mas na sessão iniciada por volta das 14h de 11 de setembro, o voto da ministra Carmem Lucia, em encontro primoroso de conteúdo e forma, que não temeu avançar por uma dimensão poética ao lembrar que votava pelo Brasil que lhe doía, curou a ressaca ainda em meio à tarde de 11 de setembro, pouco depois das 16h: os réus estavam a partir dali condenados. O voto do ministro Cristiano Zanin, presidente da 1ª Turma do STF, também acompanhando o relator, levou a condenação ao placar de 4 a 1. No começo da noite daquela quinta-feira, com a sessão prestigiada pelo presidente do STF, ministro Luís Roberto Barroso, e pelo decano ministro Gilmar Mendes, o país começou a saber o tamanho das penas dos réus, a começar pelos 27 anos e 3 meses de prisão para Bolsonaro.
O ritmo intenso de setembro, na semana seguinte, seria marcado inicialmente pelo Congresso, e especialmente pela Câmara dos Deputados, com as tentativas da direita e da extrema direita relativas à anistia dos golpistas e à blindagem de crimes dos parlamentares. No meio da semana cresceria a reação do campo democrático até as manifestações de 21 de setembro. Em seguida, praticamente fechariam o mês a mobilização dos bolsonaristas na Câmara, a derrubada da PEC da bandidagem no Senado, Lula brilhando na ONU, crescendo no cenário internacional, a par da longa e ficcional fala do presidente dos Estados Unidos e mais a maioria das delegações abandonando, no dia seguinte, o plenário da 80ª Assembleia em protesto contra a presença e a fala do comandante supremo do genocídio na Faixa de Gaza.
No front interno, o mês termina ainda com tentativas de uma certa manobra na Câmara para redução de penas dos golpistas. Enquanto isso, para seguir pensando a fundo sobre a democracia brasileira e o mundo, fica aqui a sugestão de leitura muito agradável de entrevistas recentes de duas mulheres: a da cientista política Maria Hermínia Tavares na revista Pesquisa Fapesp (https://revistapesquisa.fapesp.br/cientista-politica-defende-que-o-debate-entre-opinioes-divergentes-e-ainda-possivel-na-sociedade/) e a da filósofa Marilena Chauí no “Ilustríssima” da Folha de S. Paulo (https://share.google/fpp4Ci4g3TrOy2T34).