Uma revelação surpreendente do Espírito Santo (uma breve introdução)
O texto de Patrícia Pavesi, antropóloga, professora titular da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), me apresentou a um Espírito Santo de cuja existência eu jamais havia realmente suspeitado – abissal ignorância, admito. O tolo orgulho e a arrogância estúpida associados a uma identidade imaginada de descendentes de imigrantes alemães, pomeranos e italianos, em lugar de simples brasileiros com a genética fincada nos povos afros e originários, a par de alguma contribuição europeia, como “os outros”, sempre me pareceram sentimentos mais disseminados em Santa Catarina, Paraná e São Paulo – a despeito de ser matéria prima nacional o racismo estrutural que constitui o cerne mesmo do que, desde o começo do século XIX, se tem chamado sociedade brasileira.
O Espírito Santo, em meu desconhecimento, estaria mais próximo das formações sociais do Rio, de Minas e da Bahia. Teria mais a ver, em minha memória, com o Festival de Verão de Guarapari, de fevereiro de 1971, um sonhado woodstock tupiniquim (para o qual fui convidada como jornalista e, infelizmente, não fui), do que com os horrores do caso Araceli, em maio de 1973. O artigo de Pavesi, entretanto, lavrado no horror e na dor da hora, ante o crime estarrecedor do atirador de Aracruz, em 25 de novembro, trabalhado sobre o sentido desse ato brutal em oposição à explosão da beleza mais pura no gol de Richarlison, um outro jovem capixaba, na estreia do Brasil na copa do Catar, revelou cruamente as feias e sujas entranhas das estruturas sociais que desenham esse Espírito Santo que eu não via.
A força, a carga reveladora do texto sobre um estado da federação pouco visibilizado, em termos antropológicos e sociológicos, me levou à decisão de publicá-lo no Ciência na Rua tão logo fôssemos autorizados pela autora. Assim, segue o artigo na íntegra, com meus agradecimentos aos ex-reitores João Carlos Salles, da Universidade Federal da Bahia (UFBA), e Reinaldo Centoducate, da UFES, que me ajudaram a chegar rapidamente a Patrícia Pavesi. (Mariluce Moura)
por Patricia Pavesi
Numa mesma semana, num dia um jovem capixaba tem desempenho exemplar no futebol e, no dia seguinte, um jovem capixaba invade duas escolas atirando, ferindo e matando pessoas.
Não sou especialista em estudos sobre juventudes, sei que no Espírito Santo temos colegas melhor preparados para fazer uma análise mais criteriosa destas trajetórias, mas me arrisco a fazer um breve comentário, como antropóloga que nasceu na capital insular do estado, Vitória (mais conhecida como Alcatraz) e conhece tanto por ofício, como por experiência pessoal o que é ser jovem nas terras Santo-Espírito.
Os eventos recentes, a alegria com os gols do jovem Richarlison na Copa do Mundo de Futebol e a consternação com a tragédia de Aracruz, desencadeada também por um jovem, são bastante oportunos para uma conversa sobre o que é ser jovem, mulher, negro, indígena e ter identidade de gênero não heteronormativa no ES.
Dois jovens do interior mais ao norte do ES, duas trajetórias completamente distintas e intimamente conectadas.
Dois jovens de cidades pequenas, marcadas por urbanidades periféricas, grandes projetos desenvolvimentistas, linhas de exclusão social e xenofobia acentuadas.
O estado do Espírito Santo tem uma história de formação sociopolítica e cultural peculiar. Não vou contá-la aqui, só elencar elementos emblemáticos de seu processo de constituição cultural, dentre eles, feminicídio, negrocídio, “trabalha e confia” e “síndrome de descendência italiana e alemã”.
Esses elementos interconectados podem nos ajudar a entender os eventos significativos recentes.
Ainda que centenas de páginas de pesquisa historiográfica e antropológica atestem que o ES não nasceu com a chegada dos imigrantes europeus, a crença local de que foram eles que, cortando mato, “matando onças“, “trabalhando e confiando” na agricultura familiar, construíram o estado, é a regra.
Quem cresce no ES sabe desde a infância que, em qualquer interação social entre desconhecidos, na prestação de serviços, locação de imóveis e tantas outras situações, a primeira pergunta feita pelo “nativo” é: – qual a sua ascendência? De qual família você vem?
Além de festas e grupos de “dança” regionais, inúmeros rituais e dispositivos religiosos, estatais e comerciais retroalimentam, na maior parte das cidades, o orgulho e a celebração constante da origem europeia, reafirmando uma profunda autoidentificação com o ideário da família, suas raízes e tradições (incluindo o aprendizado das “línguas maternas”, a reivindicação de dupla cidadania e a conquista do tão valioso “passaporto”, inclusive por quem sequer pretende sair do país).
Essa autopercepção do “descendente” de europeus é, como tantas outras, uma “identidade imaginada” (haja vista os casos de famílias que se apresentam como italianas que, na verdade, têm sua origem em outros países da Europa e sequer conhecem as histórias de seus supostos ancestrais). Por sua vez, ela é reafirmada também por novíssimos marcadores demográficos, como “cidadão de bem” e “patriota”, nos quais o “trabalhador honesto” se reconhece.
Tais marcadores ganham relevo ao custo do apagamento de identidades negras e indígenas. Essas identidades são fortemente segmentadas e geram “distinção” por meio de uma meticulosa classificação de graus de descendência, não por sobrenomes, mas pela cor da pele.
Nas escolas do ES, 23 de maio é celebrado como o “Dia da Colonização do Solo- Espírito-Santense”, uma clara referência não apenas à antiga Capitania do Espírito Santo, mas sobretudo ao pequeno agricultor descendente ou “meeiro”, o “colono”. Nessas mesmas escolas, profissionais comprometidos e críticos recebem ameaças diárias simplesmente por exercerem o seu ofício: desnudar a história, problematizar poderes opressores constituídos, não julgar preferências sexuais. Importante registrar que, os mesmos que ameaçam professores de história, sociologia, filosofia e artes, neste mesmo espaço, aplaudem performances docentes levianas e cínicas, emulando insígnias nazistas.
O lema “Trabalha e Confia” que ocupa o centro da bandeira do ES é praticamente uma epígrafe de uma espécie de “ethos” compartilhado por diferentes segmentos da sociedade capixaba. Põe em relevo a crença de que, com trabalho duro, a vitória virá. Seja para o “descendente”, seja para o preto “limpinho”, desde que não afronte ou ameace as grandes famílias de sobrenomes estrangeiros aportuguesados, com letras trocadas em registros cartoriais.
No “combo” da descendência, além do racismo, opera o machismo descarado. E, ouso dizer que, este está na base da alta taxa de feminicídios verificadas no estado ao longo de décadas. Não nos esqueçamos que foi no ES que uma menina de 10 anos quase foi obrigada a levar adiante um gestação, por conta da “defesa SELETIVA da vida” por legiões de conservadores antiaborto.
Ser preto, indígena e mulher no ES é um eterno desafio e luta diária para não virar inscrição em estatísticas. Especialmente nas cidades como Aracruz, onde aconteceu o massacre, e Nova Venécia, onde Richarlison cresceu.
As duas cidades são representações exemplares da história econômica do ES, marcada pela sucessiva implementação de projetos desenvolvimentistas, baseados no extrativismo, traduzido na linguagem dos negócios como “vocação para o comércio exterior” .
O litoral de Aracruz, cidade do Jovem Atirador, foi a porta de entrada de parte dos imigrantes europeus das regiões norte e noroeste do ES. Muito antes disso, já era habitada por comunidades indígenas flagrantemente encurraladas por uma muralha de eucaliptos e empreendimentos transnacionais de grande porte. Uma cidade “meio” do interior, “meio” da Região Metropolitana, com um abismo social entre pequenos agricultores, comunidades indígenas, “peões” de chão de fábrica e uma pequena elite de famílias tradicionais e “estrangeiros” (engenheiros, tecnólogos, químicos em mobilidade profissional que atuam nas grandes empresas estrangeiras que lá operam). Estes últimos constituem pequenas “ilhas de progresso”, dentre elas, o bairro onde está localizada uma das escolas atacadas (a privada, diga-se de passagem).
Nova Venécia, cidade do Richarlison, como o próprio nome sugere, é uma localidade com presença expressiva de descendentes longínquos de italianos, além de pomeranos e alemães, assim como todas as cidades do sul, região serrana, noroeste e parte do norte do ES. É uma das cidades em que se pode encontrar jazidas do famoso granito capixaba e de outros minerais valiosos, assim como Itarana, de onde foram extraídas as pedras preciosas usadas na confecção de um broche para ornar o colo da rainha Elizabeth II.
São as mesmas terras capixabas nas quais trabalhadores pobres atuam em condições insalubres, em pedreiras – uma região em que se misturam os sotaques mineiro, baiano e das “germanas”/”chermanas”, como genericamente são chamados os descendentes de alemães e austríacos em todo o ES. São marcadas também por grandes projetos de desenvolvimento baseados no extrativismo, que a exemplo das comunidades indígenas de Aracruz, encurralam e “im-prensam” (categoria nativa) comunidades quilombolas e trabalhadores sem-terra. Vale a pena lembrar que o Zé Rainha, liderança emblemática do MST [Movimento Sem Terra], viveu e enfrentou experiências de violência no campo ao norte do ES, em sua cidade, não muito distante de Nova Venécia.
É região também conhecida pela “exportação de matadores” para o Norte e o Centro-Oeste do Brasil. Aqueles mesmos que matam e colocam a culpa nas onças que, segundo narrativas locais, atacam em regiões onde sequer existem matas.
O “Jovem Atirador” é filho de um homem que se apresenta em seus perfis de redes sociais digitais como tenente e psicanalista, outro combo frankensteineano de identidades locais.
O ES abrigou e nutriu uma das organizações criminosas de extermínio mais atrozes do Brasil, a Scuderie Le Cocq, acusada de 30 assassinatos políticos e quase 1.500 homicídios anuais, saldo que o transformou no segundo estado mais violento do Brasil e as cidades da Grande Vitória nas mais violentas do mundo.
Ainda que nem todos os trabalhadores das polícias do ES possam ou devam ser acusados de atos violentos, todo um processo de formação e aperfeiçoamento da categoria (um investimento em nível nacional, não apenas local) foi empreendido nas duas últimas décadas, no sentido de qualificar os agentes de segurança pública, inclusive por meio de cursos de graduação e pós-graduação.
Há de se notar que, neste mesmo período, os cursos de psicanálise se multiplicaram na Grande Vitória, acolhendo perfis inicialmente impensados para o campo, como policiais de média patente e, também, muitos pastores de confissões pentecostais.
Nesta onda de formação do “policial esclarecido” e do “pastor terapeuta”, muitas lideranças emergiram, vindo a ocupar inclusive, progressivamente, cargos políticos. Uma nova geração de policiais e servidores do sistema judiciário foi formada e se apresenta como segmento importante no perfil da população do ES, ora tensionando poderes tradicionais antidemocráticos, ora vestindo novas roupagens, mais soft, menos autoritária, mas não menos fascistas.
A própria crise de segurança pública do ES de 2017, está intimamente relacionada a tais processos. O movimento de aquartelamento de 17 dias além de outros desdobramentos, foi uma verdadeira declaração por extenso das relações patriarcais nas quais as mulheres do ES estão embrenhadas e que criaram, por meio de compromissos morais, as condições para que esposas de PMs acampassem em frente aos quartéis, com ritos não muito diferentes dos que estão acontecendo em todo o Brasil pós-eleição presidencial (orando, cantando o hino nacional, empunhando bandeiras).
Longe de diminuir o protagonismo dessas mulheres, que ao seu modo fazem escolhas e desenvolvem inúmeras formas de resistência, é notório neste episódio, em muitos aspectos, o aparelhamento de corpos e afetos femininos para fins fascistas.
Também, não conheço a trajetória da família do Jovem de Aracruz, não posso julgar seus pais a priori, mas entendo que suas identidades, inclusive profissionais, podem estar conectadas de alguma maneira, com os processos que até agora descrevi. Mas vale ressaltar que o pai do jovem atirador publicou, antes do atentado, uma postagem “recomendando” o livro nazista Mein kampf de Adolf Hitler.
Richarlison por outro lado, é filho de um ex-marteleiro de uma pedreira da Vila Pavão. Cresceu num bairro popular de uma cidade do interior. Como qualquer jovem em sua condição no ES, enfrentou toda a sorte de preconceitos por não ocupar uma posição privilegiada na paleta de “50 tons de branco” criada pelos capixabas, chegando a ser classificado por vizinhos como potencial marginal.
Apesar da trajetória repleta de desafios e oportunidades suprimidas, consegue galgar mobilidade social por meio do futebol, encenando o Brazilian dream, escapando da Brazilian horror story.
Richarlison, como até agora sugere a sua conduta profissional, representa uma nova geração de atletas com posicionamento político crítico. Em tempos extremos, de forma corajosa, desafiando inclusive alguns patrocinadores, defendeu a ciência, as vacinas, questionou queimadas na Amazônia e o preconceito racial. Apoia financeiramente, direta e indiretamente, diferentes projetos sociais e tem bastante clareza de que é um outlier na curva de oportunidades dos jovens brasileiros.
Diferentemente do jovem de Aracruz, seu contato com armas de fogo não aconteceu dentro de casa, de forma didática. Nas palavras do próprio jogador:
“Uma vez eu estava voltando da escolinha de futebol com meus amigos e um cara achou que estávamos vendendo drogas na área. Apontou a arma para a minha cabeça e me ameaçou, mas graças a Deus tive tranquilidade para explicar que estava voltando do futebol e que não vendia nem usava drogas. Eles queriam atirar em mim, mas o futebol literalmente salvou minha vida. Ele me soltou, mas fiquei com muito medo porque sempre acontecia. É mais fácil falar sobre isso agora, mas foi algo que marcou muito a minha infância e me incentivou a trilhar um caminho bem diferente do que alguns amigos fizeram, porque não tiveram a mesma sorte que eu”, disse Richarlison…. (Fonte: Uol)
A relação com armas de fogo pode ser tomada como metáfora e evento paradigmático na definição das trajetórias desses dois jovens: um do lado de quem atira e outro de quem é atingido. Obviamente não dá para comparar as duas trajetórias, procurando bandidos e mocinhos. Mas, nem o nome do Jovem Atirador sabemos até agora. É claro, existem protocolos de proteção de menores, mas o fato não deixa de estar conectado com a velha tradição de qualificação de jovem preto com arma como bandido, com nome e endereço estampado em jornais, e jovem branco e/ou de classe média anonimizado como vítima do mal-estar da civilização. Há quem diga, inclusive, que o atentado de Aracruz criou tanta comoção porque a maioria das vítimas é branca, o que não torna aceitável esse tipo de ocorrência, mas também não torna a hipótese nula.
As trajetórias de Richarlison e do Atirador de Aracruz são cases paradigmáticos na história das juventudes do ES. Elas são “boas” para pensar a sociedade local em sua história recente. Porque estes jovens são parte de uma geração que não cresceu no r egime m ilitar e conheceu um Brasil muito diferente do país que a maioria dos “p atriotas” de meia idade acampados em portas de quartéis conheceu. Mas, de uma forma ou de outra, vivem seus efeitos históricos de segunda e terceira geração. A investigação sobre seus anseios e angústias em perspectiva êmica, pode nos dar pistas importantes para elucidar o estado de coisas que vivemos na última década no Brasil.
Este comentário é absolutamente livre, sem referência a qualquer base teórica ou empírica validada por critérios científicos, muito menos uma autoetnografia.
Trata-se, exclusivamente, de uma leitura posicionada e parcial dos eventos, sujeita a toda sorte de críticas.
Mesmo assim, me arrisco a publicizá-lo porque temos coletado dados assustadores em pesquisas voltadas para as agências das chamadas novas direitas e do engajamento político das classes médias do ES em mensageiros como WhatsApp e Telegram que desenvolvemos desde 2018 (no âmbito dos Data Kula Lab e LEIDTEC – ambos laboratórios de pesquisa vinculados ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da UFES).
Nos deparamos diariamente com elementos empíricos (por imperativos éticos, não podemos torná-los públicos) que sugerem de várias maneiras que muitas outras tragédias poderão acontecer nas terras de Santo-Espírito, se não combatermos raízes fascistas de longa data e que encontram no ES condições propícias para prosperarem.
A identificação com ideais nazifascistas não brota no vazio. Se calcifica em camadas, pequenas experiências, leves nudges que partem de múltiplos lugares e agentes.
Tudo indica que a fidelização e o engajamento do “Jovem Atirador” de Aracruz em redes extremistas se amalgamaram em ambientes de interação online. Há farto material de pesquisa que atesta a existência de inúmeros grupos de orientação nazista repletos de adolescentes que sentem raiva, tristeza e solidão em rede.
As plataformas digitais permitem não apenas o compartilhamento de tristeza em rede, elas geram raiva por design. Suas arquiteturas excitam, operam por meio de choques, modulam a produção social/subjetiva gerando tristeza profunda, desalento, frustração. Mas elas não criam sozinhas adolescentes “atiradores”. Algoritmos são coproduzidos em práticas cotidianas. Se a “entrada” é eivada de raiva, machismo, racismo e dor, na ‘saída’ estes afetos são amplificados. Ambientes online não “reproduzem o que existe fora” da conexão porque o “fora” da conexão não existe mais. Eles são contíguos aos velhos e já conhecidos territórios. Ambiências sociais onlife como a do ES, são solo fértil para o autoritarismo e MATAM de várias maneiras.
** Texto escrito em um momento de “epifania estilo Jerry Maguire”. Contém todos os elementos para o “Cancelamento”.
Em homenagem a Grayce Amboss Mercon Leonardo, que perdeu uma filha querida, talentosa e amorosa.