Eu confesso, amiga História: odiava suas aulas quando tinha 12, 13 anos e estava no ginásio, ditadura civil-militar agonizando e dando seus últimos suspiros. Eram um saco, agonia sem fim. Decoreba pura. O professor entrava em sala e, sem nem bem dar ‘bom dia’, virava as costas para a turma e massacrava a matéria na lousa, na forma de perguntas e respostas. ‘Quais as principais características da Idade Média?’. ‘Por que o Brasil foi dividido em capitanias hereditárias?’. Ele mesmo escrevia as respostas. Nossa tarefa? Copiar, copiar e só copiar, com todas as vírgulas e os dedões nos inícios de linhas para marcar os espaços de parágrafos. Todas as aulas eram assim. Cinquenta minutos insuportáveis, a gente torcendo para o relógio andar muito mais rápido e o sinal tocar logo. Compreende meu sofrimento? Nada fazia sentido. Não havia significados. Ao final do bimestre, no dia da prova, ele pegava o caderno de um bom aluno ou aluna, completo e caprichado, escolhia dez das perguntas anotadas e as ditava, determinando inclusive a quantidade de linhas que deveríamos deixar entre uma e outra. Exigia que respondêssemos da mesmíssima maneira como ele havia apresentado na lousa. Tarefa mecânica e instrumental. Sempre tive boa memória, tirava notas boas. Mas era só isso. Uma porcaria, pura perda de tempo.
No colegial, no entanto, querida História, nossa relação transformou-se em paixão arrebatadora. Tomei um susto logo na primeira aula. Era outro colégio, outro professor. Mas eu já tinha sido adestrado. No primeiro encontro, fiquei esperando nova coleção de perguntas e respostas. Estava preparado para simplesmente copiá-las. O professor, no entanto, fez pouquíssimos e pontuais registros na lousa. E começou a falar, com eloquência e organização de ideias invejáveis, combinando conceitos com exemplos. Uma delícia estonteante. E agora? Como anotar tudo isso? Personagens, datas, antecedentes, contextos, consequências, relações – tudo ganhava sentido, nos transportava para o palco dos acontecimentos. Fui escravo romano, servo na Idade Média, revolucionário na França, negro nos quilombos do Brasil, mulher lutando pelo voto, operário grevista do início do século XX, militante contra a ditadura de 1964… Saía das aulas viajando em relação a tudo o que havia sido dito. Comecei a pesquisar, fazer outras leituras. O mestre – era isso que ele era – exigia que fizéssemos seminários. Em nossas falas, nos bombardeava com inteligentes e certeiras perguntas, problematizando e nos tirando da zona de conforto. Apresentava múltiplas versões e interpretações sobre um mesmo episódio. Decoreba zero. As provas eram reflexivas, dissertativas. Numa delas, lembro-me com precisão, escrevi empolgadamente e sem parar seis páginas sobre a Revolução Francesa. Fui o último a deixar a sala, no limite máximo do prazo para entregar a avaliação. Seis páginas… não sei se o professor me xingou ao ser obrigado a ler tudo aquilo (éramos 60 alunos na turma, trabalhão danado). Ele sempre foi para mim querida referência e inspiração.
Desde então, sou só ouvido e amores para e por você, companheira História. É você quem me ajuda a entender esse mundão cada vez mais maluco em que nos metemos. Nos últimos tempos, ando lendo e relendo bastante sobre intolerâncias, perseguições, fascismo, golpes, democracia. Depois dos estranhamentos iniciais, nossa relação é agora pautada por encantamentos (alguns estranhamentos também, o que é sempre bom) e tornou-se estável. Como diz um grande amigo, casei com você. Não me venha, portanto, com crises de consciência, arroubos, espasmos ou mimimis de retrocessos. Para a frente é que andamos, sem farsas nem tragédias. Não há espaço para aventuras. Com você aprendi que o ditador mais perigoso é aquele dissimulado sedutor com carinha de bom moço que bate no peito para dizer ‘sou democrata’. Seus livros também me ensinaram que qualquer democracia, por mais imperfeita que seja, é sempre melhor que qualquer ditadura, de qualquer natureza (militar, midiática, jurídica). Há uma velha roupa enlutada e com cheiro de naftalina a vagar por aí e que não nos serve mais. Não custa lembrar o que está escrito no artigo primeiro da nossa Constituição, documento cidadão fundamental da História recente do país: ‘A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos a soberania; a cidadania; a dignidade da pessoa humana; os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; o pluralismo político’.
Cumpra-se.