Evento online da Rede Kunhã Asé propiciou articulação entre cientistas trans, que resultou em publicação de carta na revista americana
Uma live, em 17 de junho, dentre outras que a Rede Kunhã Asé de Mulheres na Ciência organizou nesses tempos de pandemia da covid-19, teve o efeito imprevisto de rapidamente provocar uma articulação de cientistas trans de algumas universidades brasileiras e de duas instituições estrangeiras. Essa ligação nova deu espaço a um debate intenso sobre meios para aumentar a visibilidade dos problemas que pessoas transgêneras enfrentam no ambiente acadêmico e resultou, por fim, na publicação hoje, na Science (edição de 4 de setembro), de uma carta-manifesto sobre suas angústias atuais e expectativas quanto ao futuro.
(Parênteses: soa já como lugar comum, mas vale dizer que a Science, sob responsabilidade editorial da Associação Americana para o Avanço da Ciência (AAAS) é, de fato, uma das mais prestigiadas revistas científicas do mundo).
A pandemia da covid-19, diz o texto, numa tradução livre do inglês, vem mostrando mais amplamente a opressão existente na sociedade e estimulando discussões entre cientistas sobre a comunidade pós-pandêmica que querem construir. “Cientistas transgêneres devem tomar parte nessas conversas para garantir que suas necessidades sejam reconhecidas ao tempo em que lutam para tornar a ciência mais diversa e inclusiva”, acrescenta ainda no primeiro parágrafo.
A carta diz em seguida que “as pessoas trans enfrentam barreiras para se tornarem líderes científicas em todos os estágios da carreira”. Vai mais longe, observando, com o apoio de fontes documentais, que, “desde a escola primária, o aprendizado dos estudantes em ciência se dá numa perspectiva cisnormativa, em que sexo e gênero são sinônimos e binários”.
Acrescenta que “juntamente com o bullying e a falta de apoio familiar, essa negação estrutural de gêneros ‘fora do padrão’ leva a taxas elevadas de evasão escolar. Crimes de ódio e leis discriminatórias frequentemente têm por alvo pessoas trans, e a elas são rotineiramente negados cuidados de saúde, situação que provavelmente piorou nos sistemas médicos sobrecarregados pela pandemia”.
São dez os signatários da carta, com Shaun Turney, da Faculdade de Artes e Ciências da Universidade Concordia, em Montreal, Canadá, na posição de primeiro autor. Na sequência estão oito autores de instituições brasileiras, ou seja, as universidades federais da Bahia (UFBA), do Rio de Janeiro (UFRJ) e de Goiás (UFG), as estaduais de São Paulo (USP) e Campinas (Unicamp), o Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA), o Museu da Amazônia (Musa) e a própria Rede Kunhã Asé, sediada em Salvador, além de um autor da Universidade de Maryland, Estados Unidos.
Terreno fértil
Murilo Carvalho, 25 anos, segundo autor da carta acolhida pela Science, lembra que tudo se desdobrou rapidamente a partir da live “Pessoas trans na ciência: uma relação dialética”, para a qual ele foi convidado, assim como Lucy Gomes de Souza, do Musa, pela Rede Kunhã Asé. “Eu não conhecia Lucy, mas tivemos uma interação muito boa entre nós e com outros biólogos trans que estavam participando do debate. As conversas foram além daquela live, e provocados por Lucy, por Luisa Diele Viegas, brasileira que estava num pós-doc na Maryland, entre outros, veio a proposta de elaboração da carta. Seria um instrumento para chegarmos com mais força nos meios científicos e sensibilizarmos, de alguma forma, a elite intelectual da ciência”, ele conta.
Mestrando em Ecologia no Instituto de Biologia da UFBA, orientado por Charbel El Hani – além de pesquisador respeitado, um infatigável divulgador científico, com sua luta de muitos anos pela manutenção do café científico em Salvador – Murilo conta que desde 2018 vinha acompanhando mais intensamente as batalhas de pessoas trans na universidade. “Passei a seguir de perto as discussões lideradas por Viviane Vergueiro, que tem um papel indiscutivelmente muito forte nesse debate”, ele diz. Além do trabalho como pesquisadora, ela é efetivamente uma militante destacada na universidade, atuando a partir do Grupo de Pesquisa em Cultura e Sexualidade da UFBA, que tem a provocativa sigla CuS.
“Eu diria que tudo aquilo que expressamos na carta era um nó na garganta e tínhamos que desfazê-lo”, Murilo observa.
Certamente era, porque, a carta ressalta, “em ambientes universitários e profissionais, pessoas trans enfrentam mais assédio e problemas de saúde mental do que seus colegas cisgêneros, e muitas vezes são postas em desvantagem por preconceitos nas decisões de contratação”. Segue informando que é menor sua probabilidade de ter carreiras estabelecidas e que se encontram numa situação de mais vulnerabilidade ante “os cortes de financiamento e desemprego decorrentes da pandemia”. E mesmo com essas desigualdades conhecidas, “as políticas afirmativas raramente incluem transgêneros como uma identidade minoritária”. Os signatários do texto desconfiam que as turbulências provocadas pela pandemia “provavelmente sobrecarregaram os cientistas transgêneros com uma parcela desproporcional da pobreza, doença e exclusão da ciência”.
Outra autora da carta na Science, Rejane Santos Silva, 32 anos, graduada e mestra em biologia pela UFBA e hoje doutoranda em ecologia e evolução na UFG, contou ao Ciência na rua que desde que a pandemia começou, a Rede Kunhã Asé, da qual ela é figura ativíssima desde sua criação em setembro do ano passado, começou a pensar estratégias para não parar suas atividades. “Vimos que a internet seria uma aliada muito legal e até ajudaria a ampliar nossas discussões, e aí lançamos as lives “Coisas de mulher”, que todas as quartas-feiras discutiriam questões de academia e gênero”.
No decorrer desse processo veio a pauta com Murilo e Lucy. “Ela tem um canal no YouTube muito bom, o Make Science, em que discute ciência, gênero, transgeneridade e outros temas correlatos. Toda a conversa resultante da live foi muito produtiva e, para quem é cisgênero [como ela mesma] e não estava muito próximo das questões ali debatidas, foi um verdadeiro despertar”, Rejane conta.
Ela entrou um pouco tardiamente nas tratativas que levaram à live e ao processo de elaboração da carta propriamente, porque estava participando de uma outra chamada internacional que discutia o impacto da pandemia sobre os grupos minoritários, e que terminou rendendo artigo na Nature, que ao lado da Science, ocupa o topo das revistas científicas internacionais de cunho geral.
É tempo de ressaltar aqui que Rejane, que hoje põe publicações na Nature e na Science em seu currículo, sempre foi aluna de escola pública, e entrou na universidade em 2007 (a Estadual da Bahia, Uneb, originalmente) pelo sistema de cotas. Ela foi a primeira pessoa de sua família a entrar numa universidade – sua mãe não chegou a concluir o ensino fundamental e o pai não concluiu o nível médio. Sua inserção social original é semelhante à de Murilo.
O último parágrafo da carta de que são coautores, ao modo de um manifesto, diz que este momento em que nos encontramos traz a oportunidade precisa para a construção de um caminho mais amplo para acolher todas as identidades de gênero.
“Todos os cientistas devem respeitar os nomes e pronomes escolhidos, falar abertamente contra políticas e leis anti-transgêneros e desafiar perspectivas da cultura científica que apagam as experiências transgêneros. As instituições devem desenvolver políticas inclusivas de troca de nome, considerar as necessidades das pessoas trans na tomada de decisões, alocar fundos para apoiar as carreiras de cientistas transgêneros e ampliar o acesso a cuidados de saúde inclusivos. Determinar as abordagens mais eficazes para reduzir as barreiras a cientistas trans exigirá mais estudos que revelem suas experiências. Além do valor moral inerente ao fato de tornar a academia mais igualitária, os empreendimentos científicos se beneficiarão tremendamente do potencial intelectual de uma maior diversidade de pessoas”.