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A crise do país na visão de João Pedro Stédile
Panorama político

por | 19 jun 2018

*Texto originalmente publicado no Edgardigital, veículo de divulgação da UFBA, edição 84

Enquanto na Praça da Piedade, centro histórico de Salvador, rolava a 4ª Feira Estadual da Reforma Agrária, visando à comercialização, segundo seus promotores, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), de 140 toneladas de alimentos saudáveis produzidos em 10 regiões da Bahia onde o movimento está organizado, no salão nobre da reitoria da UFBA, seu principal líder, João Pedro Stédile, apresentava a uma plateia majoritária de trabalhadores rurais, na tarde da sexta-feira, 15 de junho, uma análise da crise múltipla em que vê o país hoje mergulhado.

A parte política dessa crise, ele propôs, tem que ser analisada, a essa altura, “não a partir do comportamento dos partidos, mas das classes envolvidas”. O ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva, encarcerado, sequestrado do convívio social “para o fim específico de não concorrer às eleições presidenciais – observou –, tornou-se, muito mais que o líder do PT, o grande representante da classe trabalhadora no país”. E o gigantesco desafio imediato que está posto aos trabalhadores, defendeu, é “quantos coletivos vamos conseguir mobilizar para tirar Lula da cadeia e levá-lo ao Palácio do Planalto, quando a classe trabalhadora, acuada, abalada por tantas perdas, está com medo”. Lula, em seu olhar, representa a porta de saída da crise presente, “embora a saída mais estrutural tenha que ser ainda construída coletivamente, por meio da escuta aos trabalhadores brasileiros”.

A Feira da Reforma Agrária aconteceu da quinta, 14, ao sábado, 16 e, além da venda de hortaliças, frutas, verduras, livros e produtos de artesanato, envolveu uma programação intensa de estudos e eventos culturais. Foi nela que se encaixou o debate “Conjuntura, educação e congresso do povo”, que levou Stédile à reitoria da UFBA, onde foi recebido pelo reitor João Carlos Salles.

Stédile começou explicando que nos debates sobre conjuntura política de que tem participado no MST e na Frente Brasil Popular tem reafirmado que a sociedade brasileira está polarizada entre burgueses e as classes trabalhadoras, que representam 85% da população. “No meio das duas está o que os jornais chamam de classe média, mas é, numa visão marxista da sociedade, a pequena burguesia. E que, na tradução de Marx para o português deveria ter sido chamada de burguesia pequena”, ironizou. “Pensa como burguesia, mas o bolso e conta bancária são pequenos”, provocou.

A partir desse pressuposto geral, ele disse ver as três classes se enfrentando todo o tempo, configurando uma luta política, e não só eleitoral. Fez referência ao pensador marxista italiano Antonio Gramsci (1891-1937) para explicar tanto a noção de poder político disseminado em todos os grupos coletivos da sociedade quanto a ideia de hegemonia dos valores de classe que penetra nos espaços sociais. E disse que sua exposição partiria (1) da natureza da sociedade brasileira e (2) da natureza da atual crise política na sociedade brasileira.

Stédile a percebe como “a eclosão de uma grave crise estrutural, onde nada funciona mais como antes”, cuja primeira feição se revela na economia já em 2008 e vai ser ampliada em 2013. “É primeiro uma crise do capital, que antes estava funcionando bem. E como em toda crise, há um salve-se quem puder. Há dois anos, um general do exército disse que o Brasil estava num Titanic. Para quem lembra do filme, na situação de naufrágio, a primeira classe pegou os botes e deixou que os passageiros da segunda e terceira classe se afogassem”. Na situação não ficcional, mas real do Brasil, a crise econômica impeliu o aumento dos conflitos e o aprofundamento da desigualdade, além de gestar a crise política.

“Os botes aqui foram o controle do congresso, dos meios de comunicação, de um judiciário monárquico e faltava só o Executivo, por isso tiraram a presidente Dilma Roussef”, disse. A crise apresentou uma terceira face, ambiental. “Avançou a apropriação privada sobre os bens da natureza, ou seja, água, biodiversidade, minérios, petróleo”, disse Stédile, e citou, a propósito, o mineroduto da Anglo American, o maior do mundo, que corre por 525 quilômetros de Minas Gerais ao Porto de Açu, no Rio de Janeiro. Já assolado por seguidas denúncias e multas por vazamentos de minério amplamente noticiadas na mídia, depois de ter provocado o assoreamento de 612 rios e afluentes em seu percurso, o mineroduto é, segundo Stédile, promessa certa de desastre ambiental, nos moldes da tragédia de Mariana, provocada pela Vale.

“Quem deu o golpe institucional o fez para se salvar da crise, jogando todo o peso de sua administração nas costas da classe trabalhadora”, comentou. Peso representado pela PEC do teto de gastos, controle seletivo do orçamento público e manipulação das taxas de câmbio e juro, pela reforma trabalhista, pelos leilões de blocos do pré-sal, enfim, por toda uma política de proteção dos rentistas, junto com arrocho dos trabalhadores e desemprego.

Entretanto, na visão de Stédile, dois anos depois do golpe institucional de 2016 as contradições que ele acionou estão à vista de todos. “Primeiro, o golpe não resolveu os problemas da crise como a burguesia pretendia, que se aprofundou em todos os aspectos. No país, só os bancos foram seus grandes beneficiários, com os quatro maiores fazendo lucros líquidos, em dois anos, da ordem de R$ 460 bilhões. Em segundo lugar, a desigualdade social se aprofundou de uma forma que não se consegue esconder. Isso é mesmo impossível quando os seis capitalistas mais ricos do Brasil ganham mais do que 108 milhões de trabalhadores juntos”, expôs. Essa disparidade desmedida é insustentável para o próprio capitalismo, completou. E em sua vigência, a violência social dispara.

Uma terceira contradição gerada pelo golpe encontra-se na política, ou seja “eles não conseguiram construir uma unidade em torno da candidatura a presidente, tem 10 candidatos fracos”, segundo Stédile. E em sua interpretação, “a burguesia não tem mais o comando do processo eleitoral”.

E a quarta contradição, também no âmbito da política, “é que para consolidar o golpe a burguesia precisa de um novo mandato e para isso teve que prender Lula, que tem mais intenções de votos que os outros 18 candidatos somados, forjando um processo sem pé nem cabeça”.

Se há uma palavra chave na leitura de Stédile quanto ao que fazer, no curto prazo, para alterar esse panorama que descortinou, ela é mobilização, seja em forma de greves dos setores mais organizados dos trabalhadores, seja por meio daquilo que o MST e a Frente Brasil Popular têm chamado de construção do congresso do povo, quando militantes em cada local vão de casa em casa convidando os moradores para falarem sobre sua situação e debaterem a situação mais geral em assembleias. ”Vamos fazer isso em mil cidades, vamos ouvir o povo, há quanto tempo a esquerda não faz isso? Desde que o PT foi fundado”, disse. Sua convicção é de que, nesse momento, liberar e eleger Lula são os desafios fundamentais, “sem o que teremos quatro anos de aprofundamento da crise em que estamos mergulhados”.

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