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Um país entre milicianos e militares

Webinar analisa Bolsonaro como uma consequência do projeto militar para o país, turbinado pelas ligações com as milícias

A eleição de Jair Bolsonaro em 2018 trouxe de volta a participação, em peso, dos militares na vida política brasileira. Especialistas calculam que milhares de membros das Forças Armadas ocupam cargos nas mais diversas esferas da administração pública nacional. Mas Jair Bolsonaro seria consequência do projeto militar para o Estado  brasileiro, muito mais do que causa dessa presença avassaladora dos militares na máquina pública. Ao mesmo tempo, a ascensão do presidente ao poder também traz à tona suas ligações com as milícias que atuam em dezenas de bairros e favelas do Rio de Janeiro.

Militares e milicianos foram o tema principal do webinar “Partido militar, milícias… e o Estado?”, o primeiro da série “Novos estudos para decifrar o Brasil contemporâneo”, promovido pelo Instituto Ciência na rua, visando a contribuir para o debate de temas cruciais a uma melhor compreensão do atual panorama brasileiro.

Com análises do jornalista e cientista político Bruno Paes Manso, autor do livro “A república das milícias: dos esquadrões da morte à era Bolsonaro’, e do antropólogo Piero Leirner, professor da Universidade Federal de São Carlos, autor de ‘O Brasil no espectro de uma guerra híbrida: militares, operações psicológicas e política em uma perspectiva etnográfica”, o evento foi apresentado pela diretora-presidente do Ciência na rua, Mariluce Moura, que dividiu a bancada jornalística com Flavia Lima, editora de Diversidade e ex-ombudsman da Folha de S. Paulo.

Segundo Paes Manso, a subida de Bolsonaro ao poder encerrou a Nova República, que teve início após o término da ditadura militar. Para ele, o ódio à política e aos políticos, disseminado durante anos e ampliado durante o período da atuação da Operação Lava Jato e outros escândalos, foi um fator determinante para a vitória do então candidato do PSL

“A política foi colocada como grande bode expiatório desse processo. Em 2018 as pessoas estavam descrentes da capacidade da política de mediar conflitos. Quando isso acontece, a guerra e o uso da violência se tornam o meio de lidar com inimigos ‘da ordem’. As pessoas querem ordem e previsibilidade. Bolsonaro surge nesse momento com esse discurso da violência como um instrumento de produção de ordem”, analisou.

Dessa forma, de acordo com o jornalista, é importante pontuar a “capacidade do ódio de mobilizar as pessoas”. Esse discurso, muito mais do que a racionalidade, consegue aglutinar as pessoas a partir de um discurso populista, ao apontar inimigos do “processo” de condução do país.

“A saída fica muito mais fácil quando você consegue identificar os ‘alvos’ que estão atravancando o desenvolvimento do país, basta eliminá-los da vida pública para solucionar o problema”, ressaltou.

Para o antropólogo Piero Leirner, a eleição de Jair Bolsonaro não reflete apenas uma retomada da participação política dos militares após mais de 30 anos afastados do poder. O atual presidente, um claro representante da, digamos, terceirização de poder contida no atual projeto militar para o país, também representa com seu visceral descontrole  um fator estratégico de desestabilização, contra o qual os comandantes podem se posicionar como agentes de manutenção da ordem.

“É uma tomada do Estado, não só do governo, mas do Estado, de uma maneira terceirizada. Desde 2014 estão alavancando o Bolsonaro como um agente operacional dessa terceirização para a chegada ao poder. Como ele é descontrolado eles vão operar como fatores de reposição de uma ordem perdida, ele amplia a ideia de um caos. Ou seja, o plano não é apenas para o governo Bolsonaro, mas é para o que vem depois também”, afirmou ele.

Segundo Leirner, houve pelo menos dois momentos em que representantes do alto escalão das Forças Armadas deixaram as intenções da corporação transparecerem. O primeiro deles foi em fevereiro de 2018, no início da intervenção federal no Rio de Janeiro, durante uma entrevista que o oficial responsável pela operação e atual ministro da Defesa, general Walter Braga Netto.

“Para o Globo, em 27 de fevereiro de 2018, o Braga Netto fala ‘a gente tem que fazer duas coisas: centralizar a inteligência e produzir no Rio de Janeiro um laboratório para o que vai ser o combate à criminalidade no futuro’. Em outubro de 2018, começam os primeiros decretos que vão criar esse monstrengo que hoje está na mão do GSI e que o PL 1595 vai ser a resposta final, que é a construção de um enorme aparato de inteligência e infiltração das forças armadas em todos os setores nacionais”, ressalta.

Além disso, a intervenção federal no Rio também serviu como uma forma de limitar a atuação do governo Temer, de acordo com o professor. Com a operação em andamento, aprovar qualquer tipo de PEC no Congresso era impossível. Desse modo, a ascensão de uma chapa formada pelo MDB e o PSDB, partidos que se aliaram para governar após o impeachment de Dilma Rousseff, ficou prejudicada.

O segundo momento foi cerca de um ano depois, em fevereiro de 2019, na cerimônia de posse do general Richard Nunes como novo chefe do CCOMSEx, o Centro de Comunicação Social do Exército. Na ocasião, o general Otávio Rêgo Barros, que deixava o cargo para se tornar o porta-voz do governo Bolsonaro, fez declarações sobre a participação da instituição em redes sociais.

“Na ocasião, Rêgo Barros falou que em 2018, coube ao Exército ‘mergulhar de cabeça no submundo das mídias sociais, Facebook, Instagram, Twitter, Whatsapp, blogs, e tornar-se o órgão público com mais influência no mundo digital no Brasil’. Falamos de gabinete do ódio, filho do Paulo Marinho, Steve Bannon, mas ninguém foi atrás do que o Rego Barros disse”, destacou Leirner.

No que diz respeito às milícias, Flavia Lima criticou especialmente o tom usado na cobertura desse problema, que está muito mais entranhado na cidade do Rio e em outros locais do Brasil do que a cobertura da imprensa faz parecer.

“A imprensa muitas vezes trata como novidade algo que já é um problema antigo. Falta cobrir apropriadamente essas organizações. Cobrir pontualmente contribui para uma invisibilidade, uma incompreensão do que são as milícias e as atuações de agentes do Estado nelas, da corrupção que existe. A percepção é que os jornais se deixam pautar pelas operações que dão visibilidade, mas afetam pouco o modelo de atuação dos grupos”, explicou.

Bruno Paes Manso desenhou um panorama histórico do problema, especialmente a partir da urbanização da sociedade brasileira. Para ele, a conversão do policial em uma figura heroica colocou a instituição em um papel de destaque nas décadas de 50 e 60, em contraposição aos “bandidos”, que se transformaram nos grandes vilões da crônica policial.

“O jornalismo policial sempre foi uma grande escola dentro do jornalismo e uma grande fonte de boas histórias. Acho que a partir do crescimento das cidades, cria-se a figura do policial que acaba sendo o grande herói e o bandido o grande provocador de medo. E isso perdura até hoje, com as tevês . Criação artificial do medo é um dos grandes problemas jornalísticos, risco de criar um clima de terror eterno”, recordou.

Sobre as falhas na cobertura das milícias, Paes Manso falou sobre a trajetória do ex-PM Adriano da Nóbrega, que tinha familiares contratados como funcionários-fantasma em gabinetes da família Bolsonaro e foi se tornando uma figura cada vez maior no submundo do Rio, até ser morto pela PM da Bahia enquanto estava foragido.

“Enquanto ele recebia homenagens da família Bolsonaro, ao mesmo tempo se transformava em um dos homens mais perigosos da história do Rio de Janeiro. Construiu um escritório de matadores a partir dos treinamentos de elite que recebeu no Bope, pagou para policia não investigar seus crimes, fez sociedades com o tráfico, aproximou as milícias do tráfico, o que se tornou um padrão. Também investiu em imóveis e grilagem, na ocupação de terrenos e construção irregular e associação com o jogo do bicho”, listou.

Por fim, ambos falaram sobre perspectivas para um futuro próximo. Leirner afirmou que não acredita que exista um partido que represente os militares e que eles seguirão com Bolsonaro como o ‘terceirizado’, enquanto a oposição precisa sair de um papel reflexivo e reativo ao qual foi relegada nos últimos anos. Já Paes Manso vê com preocupação a relação íntima entre a família e os milicianos.

“Eles são representantes ideológicos do que as milícias pensavam, contra a Constituição de 88, tentando construir uma nova ordem pelo uso da força e armas, com o objetivo de transformar o Brasil em uma imensa República Federativa de Rio das Pedras. Precisamos pensar um pouco nos medos e ódios da sociedade. A PM se tornou uma instituição protagonista do crime, e o grande desafio é controlar militares e polícias”, disse.

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