Sociólogo Sergio Adorno, do Núcleo de Estudos da Violência da USP, fala sobre a territorialidade paulistana e políticas públicas, inclusive para o enfrentamento da epidemia de coronavírus
Imagine-se, nesse momento dramaticamente desafiador para governantes e gestores de políticas públicas que levam a sério o seu ofício, o gigantesco esforço que demanda compreender uma metrópole da dimensão de São Paulo, com seus aproximadamente 13 milhões de habitantes e suas abissais desigualdades. E, pense-se no tamanho do problema que é traçar estratégias exequíveis para responder à desesperadora necessidade de conter o espalhamento do SARS-CoV-2, ainda que alguns possam ter essa cidade mentalmente mapeada em seus principais aspectos.
Sem a adesão da população, claro, nada feito, quando se tem no distanciamento social a única arma efetiva até aqui para reduzir a velocidade de contaminação da população pelo novo coronavírus e, com isso, tornar a epidemia administrável pelo sistema de saúde – ou seja, mantê-la numa curva de crescimento que permita o atendimento a todos que adoecerem gravemente. Daí porque são tão fundamentais na estratégia de enfrentamento da pandemia as técnicas de convencimento para cada indivíduo ter consciência de sua responsabilidade direta no perfil diariamente desenhado dessa tragédia em curso. Assim é moldado o “fique em casa!”.
Entretanto, há um sem número de impossibilidades de, mesmo se atendendo ao convite ou convocação, praticar consistentemente o distanciamento social. Como fazê-lo, por exemplo, numa comunidade com alta densidade demográfica, como Paraisópolis, com seus cerca de 100 mil habitantes? Haveria que se traçar estratégias distintas para regiões da cidade renda alta e média e regiões de baixa renda. Uma política para o centro, digamos assim, outra para as periferias.
Mas é exatamente aí que uma pesquisa sobre a cidade de São Paulo, liderada pelo sociólogo Sergio Adorno, contribui para tornar a questão muito mais complexa. Porque esta metrópole não pode ser entendida em termos de centro e periferia, ele explica. Ela é constituída por oito distintos territórios, excludentes entre si, cuja formação está vinculada ao processo histórico de sua expansão. E, por territórios, ressalte-se, ele não toma porções físicas da capital paulista, mas unidades de caráter bem mais abrangente, examinadas por um conjunto entrecruzado de 19 variáveis, desde a existência de áreas de risco e atendimento de água e esgoto à alfabetização do chefe de família.
Os resultados desse estudo, que traz à cena uma compreensão inovadora sobre São Paulo, estão num artigo assinado por Marcelo Batista Nery, Altay Alves Lino de Souza e o próprio Adorno, intitulado “Os padrões urbano-demográficos da capital paulista” e publicado há cerca de duas semanas pela revista do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (IEA-USP). E ele não se destina a estudiosos apenas – de fato, pretende inspirar imediatamente políticas públicas. Mais: pretende contribuir já para o enfrentamento da Covid-19 nessa cidade que é o epicentro da pandemia no Brasil e que, se o distanciamento social for rigorosamente mantido, estará registrando dentro de uma semana perto de 1.300 mortes.
“Esse estudo pode contribuir para São Paulo enfrentar a pandemia porque ele oferece uma visão mais precisa das áreas de maior concentração de vulnerabilidades e o perfil dos moradores dessas áreas. Vai se saber se são mais idosos, se são mais jovens, se são mais pessoas ocupadas, e em que ocupações, se são, por exemplo, mais ligadas ao setor de serviços, à indústria, se são trabalhadores autônomos etc. Isso permite o desenho de políticas de intervenção. Adiante, vai ser possível ver se há uma compatibilidade entre a distribuição desses setores e as áreas de maior concentração de casos de Covid-19. Penso que esse estudo é um instrumento não só de conhecimento, mas de ação, e de ação política”, diz Adorno.
Para explicar melhor essas possibilidades e o que mais significa a identificação desses oito territórios que juntos formam São Paulo, o Ciência na rua entrevistou na semana passada Sergio Adorno, 67 anos, sociólogo graduado e doutorado pela USP, professor titular de sua Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH), coordenador científico do Núcleo de Estudos da Violência desde 1990 e, desde o ano passado, editor da revista do IEA.
As análises agudas de questões ligadas à violência urbana e criminalidade urbana, inclusive os trabalhos sobre o crime organizado, também as investigações sobre direitos humanos, controle social e conflitos sociais e construção da democracia projetaram esse pesquisador que hoje tem uma centena de artigos publicados, cinco livros como autor ou organizador, 61 capítulos de livros e mais de 80 textos para jornais noticiosos e revistas.
Há quanto tempo você vinha pesquisando a questão da territorialidade de São Paulo, até chegar nesses oito territórios excludentes entre si?
A origem desse estudo é o projeto atual de nosso Cepid da Fapesp [o Núcleo de Estudos da Violência, um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo], que trata da questão da construção da democracia no dia a dia através da atribuição de legitimidade, pelos cidadãos, às instituições chaves para o funcionamento da democracia. Está em vigência e vai até 2024. É um trabalho coletivo, envolve pesquisas, e nele eu tenho um papel mais de coordenação e acompanhamento, temos pesquisadores que lidam mais diretamente com os dados e têm uma expertise na área, como o Marcelo e o Altay, co-autores do artigo. Altay infelizmente não está mais conosco, é agora professor da Unifesp [Universidade Federal de São Paulo], mas continua próximo.
No primeiro estudo que fizemos no âmbito desse Cepid, de 2007 a 2013, e cujo autor principal na verdade é Marcelo Nery, ele mostrou que haviam sete regimes territoriais de violência na cidade de São Paulo, pelo menos no que concerne aos homicídios. E esses regimes mostravam que a cidade não podia ser pensada do ponto de vista de centro e periferia, bairros ricos e bairros pobres.
Por quê?
Porque se você faz uma análise mais propriamente setorial, censitária, vê que a parte central do distrito tem taxa baixa de homicídio e no entorno tem taxas altas. Ou se dá o contrário: um distrito que tem no centro taxas altas e no entorno taxas baixas. Descobrimos então esses sete tipos de regimes e para mim foi um estudo muito importante porque aquilo que eu já vinha percebendo em meus estudos anteriores, ou seja, que não dava para generalizar a violência na cidade, esse mostrou que de fato não dava. O segundo estudo, iniciado na segunda etapa de nosso Cepid, em 2013 [a Fapesp decide com base em avaliação de comitês internacionais para quais desses centros renova o apoio financeiro], e que resultou nesse artigo recente, embora interligado ao primeiro, está mais voltado a entender melhor porque os cidadãos descreem das leis, por que não obedecem às leis e em que circunstâncias consideram a obediência absolutamente necessária. É uma pesquisa enorme que envolve, vamos dizer, tanto a cidade de São Paulo como um todo quanto essas áreas chaves.
O núcleo central dessa pesquisa é um survey longitudinal aplicado na população dessas áreas, ao longo de cinco anos. Para isso, nós precisaríamos controlar melhor as variáveis socioeconômicas, demográficas, territoriais, as áreas de concentração, baixa concentração de crimes, para ver o quanto isso afetava a reação dos cidadãos diante dos problemas de segurança, de ordem, de lei, de aplicação da lei e de expectativas do cidadão em relação às autoridades. Assim desenvolvemos essa metodologia e chegamos a essas oito áreas como padrões da cidade. As análises intraurbanas mostram como uma cidade como São Paulo é construída de microrregiões, todas elas tendo em alguns momentos características comuns, mas também características que permitem distingui-las em relação ao conjunto. Em resumo, começamos com o estudo dos regimes territoriais de violência e o trabalho se desenvolveu com esse estudo publicado na revista do IEA.
Na verdade, o estudo foi feito bem no começo da segunda etapa do Cepid, mas não publicávamos porque é muito grande e as revistas científicas cada vez limitam cada vez mais o número de palavras para os artigos. Até que apareceu a oportunidade de publicá-lo com o grupo do programa Cidades Globais-USP, do IEA [coordenado pelo biólogo Marcos Buckeridge], do qual Marcelo e eu fazemos parte. O grupo achou que valia a pena publicar na íntegra, mas, a rigor, terminou nem sendo na íntegra, ficou de fora uma parte final, interessante, de uma metodologia desenvolvida sobretudo pelo Altay, que é psicólogo, para validação das áreas. O que fazíamos? Íamos nas áreas de pesquisa, levávamos fotos variadas e pedíamos que um morador dissesse qual delas melhor representava seu cluster. E a pessoa respondia, essa, ou essa outra. E conseguimos assim 80% de validação das áreas.
Gostaria que você falasse um pouco mais sobre esses oito territórios de São Paulo. Quando olhamos os mapas no estudo, vemos que essas áreas A, B, C e assim sucessivamente, vão do centro para as pontas da cidade. Por quê?
Tem razão, vai do centro para as pontas, mas não é por uma questão metodológica. É porque a base, de certo modo, é territorial. Como dissemos na conclusão do artigo, isso tem relação com a história de constituição dos distritos da cidade de São Paulo. Então se vê, por exemplo, que a área central tem características muito demarcadas. Tem uma área mais decadente, o centrão, mas também reúne a área da Paulista, portanto, é bem diversificada do ponto de vista da estrutura socioeconômica. O que chama a atenção é que a expansão da cidade até final dos anos 1930, em torno do centro e, depois, subindo em direção à Paulista, vai de alguma maneira estratificando a cidade e a sociedade. Depois, dos anos 1940 aos anos 1960, há uma enorme expansão. A cidade vai se expandindo em direção à zona oeste, em direção à zona norte… A zona leste, que era uma área de concentração de indústria bastante tradicional, também vai expandindo seus limites. E a partir dos anos 1980, temos um novo padrão de urbanização que, de alguma maneira, vai tornando tudo isso complexo, porque vai se vendo a construção de moradias destinadas à classe média e classe média alta ao lado de grandes agrupamentos urbanos de população de baixa renda. Paraisópolis é, talvez, o exemplo mais contundente desse fenômeno. Então, há uma impressão de que centro e periferia ainda vivem, o movimento de ocupação do território foi se processando nesse sentido, mas, à medida que a cidade foi se expandindo, essa expansão foi respondendo a diferentes pressões. A chegada de migrantes, a mobilidade urbana, mudanças intra e inter urbanas… Tudo isso é um processo histórico e não podemos entender uma análise profundamente sociológica, como a que apresentamos, fora do processo histórico.
E como, dentro desse processo, ao compreender todas as áreas que vão se constituindo ao longo do tempo, vocês estabelecem aquilo que se chamaria de áreas subnormais? Como chegam a configurar no estudo aquilo que são as áreas carentes da cidade entremeadas nesse tecido todo?
A partir do desenho dessa pesquisa, não dá para hierarquizar as zonas ricas, as zonas de classe média e as zonas pobres, porque as oito áreas que identificamos mesclam dados em que temos, vamos dizer, uma ocupação densa do território com a presença de famílias com elevado grau de escolaridade ou de famílias com baixa escolaridade, famílias com alta renda, com famílias com renda média. Nossa pesquisa não é feita a partir de dados primários, mas de dados oficiais, do IBGE e de todas as fontes que citamos no texto, do qual uma parte dedica-se a mostrar o enorme trabalho de depuração, de qualificação, de compatibilização desses dados para, finalmente, fazer as comparações. Há um quadro (4) dentro do trabalho que pega variável por variável, num total de 19, e permite ver como numa mesma área convive habitação subnormal com habitação de classe média, com padrões x, y e z. Não há como estabelecer uma verdadeira hierarquia, ainda que se tenha algumas áreas com melhores indicadores do que outras, mais concentradamente e de maneira combinada. Agora, é claro que o estudo mostra onde estão as zonas de maior concentração de baixa renda, de baixa escolaridade, onde, por exemplo, se tem áreas de mananciais, de proteção ambiental, que estão sendo invadidas, tudo isso vai aparecendo.
Penso que esse estudo mostra um modo de tratamento das pessoas, que vem revelar a incompatibilidade entre a dinâmica e a divisão territorial real da cidade, por um lado, e a política de administração. Se tomamos as subprefeituras, elas não correspondem a esses territórios que desenhamos. Dito em outras palavras, há uma incompatibilidade entre a estrutura política tal como está organizada e a cidade tal como está territorializada. Essa é uma das principais conclusões de nosso estudo. E o é porque, se queremos pensar numa cidade sustentável, numa cidade com a qualidade de vida melhor, vai ter que se compatibilizar a estrutura política da cidade com sua estrutura territorial.
E enquanto não se faz essa compatibilização, um imenso trabalho de gestão da cidade, e diante de uma emergência dramática como essa epidemia do coronavírus, como a visão da cidade que vocês apresentam pode auxiliar a questão do tratamento que tem que ser dado à cidade e a suas regiões mais demandantes de serviços, quer dizer, como o estudo ajuda na clareza para tratar a cidade?
Primeiro, mais que simplesmente territorial, pensemos aqui território como aquilo que condensa uma série de características, representadas nessas variáveis, que se traduzem por modos de vida, sociabilidade, usos do território, e assim por diante. E indo mais diretamente à sua questão, acho que o estudo ajuda de diferentes maneiras. A primeira delas é que você vai ter uma visão mais precisa das áreas de maior concentração de vulnerabilidades. Isso é muito importante. Você vai ter o perfil dos moradores dessas áreas. Vai saber se são mais idosos, se são mais jovens, se são mais pessoas mais ocupadas, em que ocupações, se são, por exemplo, pessoas mais ligadas ao setor de serviços, à indústria, se são trabalhadores autônomos. Isso permite o desenho de políticas de intervenção. Dado muito importante É claro que ao longo do tempo vai ser possível ver se há uma compatibilidade entre essa distribuição desses setores e as áreas de maior concentração de casos de covid-19. Acho que é um instrumento não só de conhecimento, mas de ação, e de ação política. É possível traduzir os resultados da pesquisa em ações. E, uma curiosidade, vai ter já desdobramentos desse estudo no grupo de Cidades Globais, já está se pensando em aplicar essa metodologia para outros estudos de meio ambiente, distribuição da saúde e assim por diante. O que permitirá cada vez mais à universidade ser, não só aquela que produz conhecimento, mas aquela que também é capaz de produzir conhecimento para intervenção política consequente, eficaz e voltada para a justiça social.
O que é que essa pandemia está colocando? Está mostrando que esse modelo de desigualdade social, de concentração de capital nas mãos de uns, de riqueza nas mãos de uns, e uma imensa maioria sem nada, é muito perigoso. É um modelo que está colocando todos nós em situação de vulnerabilidade, embora uns bem mais do que outros. Eu estou aqui em minha casa, certamente estou muito mais protegido do que o cidadão que mora num grande agrupamento urbano, com a família de várias pessoas, onde não tem essa privacidade necessária para se autoproteger ou proteger a sua família. Então, eu acho que se houvesse uma maior sintonia entre governantes, gestores e esses conhecimentos que estão sendo produzidos, sobretudo, por exemplo, no IEA, que tem essa possibilidade de poder pensar à frente, poder produzir textos e estudos muito consequentes, poderíamos contribuir com a qualidade da gestão, o que significa contribuir para melhorar a qualidade de vida da população.
O que vocês podem fazer para que gestores, governantes, etc., tenham acesso imediato aos dados desse estudo e de outros similares?
O IEA, na medida do possível, coloca seus estudos e publicações no site da instituição, mas a ideia é colocar todos esses bancos à disposição de quem precise entrar. Porque esses bancos não são nossos, o que é nosso é o tratamento de dados, o modo como se organiza a distribuição, o armazenamento, e o modo como se faz a análise e a interpretação no contexto urbano, que é o contexto da metrópole, de uma cidade ao mesmo tempo cada vez mais metropolitana e fragmentada. É difícil gerir a cidade exatamente porque ela é muito fragmentada, então, políticas gerais já não funcionam. Essas cidades muito fragmentadas constituem um desafio para as políticas e para as pessoas, porque precisa ter um repertório de planificação. O que pode ser muito bom para a área central, para alguns desses agrupamentos que identificamos, pode não ser bom para todos. Vou dar um exemplo: se a violência não se distribui igualmente pela cidade, não pode ter uma política geral de segurança, tem que ter políticas focalizadas. Se você tem uma área com mais homicídios e poucos crimes contra o patrimônio, você tem que ter ali políticas de prevenção, diferentes de políticas de repressão ao crime contra o patrimônio.
Agora, é difícil para o planejador pensar a heterogeneidade, imaginar que ele tem que ter, por exemplo, recursos humanos treinados para atender as especificidades. Certamente, uma delegacia de polícia de uma dessas áreas pode não operar exatamente como outras, porque ela tem que atender à demanda de segurança local. Cada vez mais, uma democracia se apoia numa relação mais próxima entre os cidadãos e os governantes, não pode ser uma relação geral, em que você vota e nem sabe em quem votou daí a dois meses. Na verdade, é uma coisa mais microscópica: a base da democracia está mudando, um pouco na direção daquilo que Alexis de Tocqueville falava no ensaio Da democracia na América, quanto a essa base microscópica dos cidadãos, das suas coletividades, das suas singularidades, das suas relações com os governantes e seus representantes.
Em sua fragmentação e heterogeneidade, São Paulo apresenta uma semelhança com outras grandes metrópoles do mundo ou há aí uma singularidade?
Não sei responder com propriedade a essa questão, porque teria que falar de outras políticas. Nós estamos identificando uma série de características de habitação, de saúde, etc, mas o Núcleo da Violência não é um estudioso específico dessas políticas, daí não me sinto muito qualificado para responder. No caso da segurança pública, um problema não da prefeitura, mas do estado, para mim é mais clara a questão de como lidar com essa heterogeneidade. Mas uma coisa é muito clara: as políticas sociais são fragmentárias, não se comunicam entre si. Seria necessário um plano em que habitação, saúde, escolarização, mobilidade etc, tivessem uma espécie de um núcleo de comunicação. Algumas medidas que podem favorecer, por exemplo, habitação, talvez não sejam adequadas para outro tipo de políticas. Assim, é preciso um plano que ao mesmo tempo contemple a heterogeneidade e saiba colocar em conversa, em articulação, todas as políticas.
Para nós, do Núcleo de Estudos da Violência, a violência não é um problema de pessoas que cometem crimes. Claro que tem uma parte da população que comete crimes e deve ser estudada enquanto tal, não estou querendo dizer que a culpa do crime é da estrutura social e não das pessoas, porque as pessoas também tomam decisões em suas vidas, desenvolvem ações etc. Mas estou querendo dizer que a questão da violência não é desconectada das demais. Não dá para pensar a violência desconectada da habitação, da concentração de aglomerados urbanos, habitacionais, inadequados. Vamos considerar, por exemplo, a configuração da distribuição das agências e das instituições de promoção do bem estar social desigualmente posta na cidade. Ora, por mais que você tenha um máximo esforço de muitas escolas que compõem a chamada periferia urbana para promover uma educação adequada para as crianças, mesmo tendo professores muito dedicados, que trabalham com enormes dificuldades, não tem uma estrutura próxima de museus, teatros, etc, que lhes permita dizer “hoje vamos levar as crianças para ver o museu de ciências do bairro”. E assim não se consegue completar a educação das crianças de forma mais criativa, mais inventiva, de maneira que ela possa se sentir participando objetivamente do processo educacional.
No processo de formação e expansão dos territórios, essa perversão na distribuição da infraestrutura cultural, educacional etc vai se mantendo na cidade?
Exatamente. O que o estudo está sugerindo é que o padrão se consolidou ali nos anos 1980. Dalí em diante só se reproduziu. Os padrões de desigualdade foram se reproduzindo e se intensificando. De novo, o que essa pandemia está mostrando? Por mais trágico que possa ser, está colocando todo esse modelo em crise. Está mostrando que os governantes não podem governar em torno de princípios gerais. Estou lendo várias análises da questão e vejo todo mundo falando: “depois dessa pandemia, o mundo será diferente”. Eu, como sociólogo, acho que vai conservar algumas coisas e vai mudar outras. Estou achando que o capitalismo vai ter que se reinventar em algumas coisas, não imediatamente, não é não uma revolução típica, mas uma revolução silenciosa. O fato de que você possa trabalhar dentro de casa, ter uma produtividade, e de alguma maneira conseguir que a máquina não paralise completamente, é uma coisa fantástica. Eu acho que é como se você tivesse um choque de realidade. E talvez tenhamos que revalorizar uma série de coisas, o uso do tempo, a preservação de um espaço no qual você possa ler, ver…
Como esse estudo dos territórios excludentes da cidade se desdobra?
O estudo tem desdobramentos de mais longa duração e outros de curta duração. Portanto, uma vez que tenhamos a disponibilidade dos novos dados do censo de 2020, que só será feito em 2021, a primeira coisa que vou querer fazer junto com os colegas é repetir o experimento para ver a que resultados vamos chegar. Atualizamos os dados até onde era possível, mas, os do censo do IBGE são de 2010. E, numa cidade como São Paulo, 10 anos significam muita coisa. É possível então que esses oito agrupamentos tenham uma configuração um pouco diferente numa nova análise, com a mesma metodologia, com os mesmos procedimentos adotados. A segunda questão tem a ver com nosso estudo de legitimidade. Como é um estudo longitudinal, nós podemos perceber mudanças nas opiniões das pessoas e verificarmos se essas mudanças guardam alguma relação com o fato de serem moradoras dessas regiões que identificamos. Dentro dessas regiões identificamos o que chamamos áreas chaves, onde os pesquisadores vão aplicar os questionários e voltam nos vários anos seguintes, entrevistam os mesmos moradores e vão verificando as mudanças que vão operando. Isso vai nos importar muito, porque toca numa outra questão fundamental, também da democracia, que é a crença dos cidadãos nas instituições como uma forma de construção do bem comum. Se as pessoas desconfiam das leis, desconfiam das autoridades, desconfiam da aplicação das leis, é muito difícil se ter um substrato sólido para instituir uma vida democrática estável e que possa de alguma maneira ser enriquecida ao longo do tempo. Por outro lado estou muito entusiasmado com a possibilidade de essa metodologia ser usada em estudos mais detalhados, por exemplo na questão ambiental, na questão habitacional, etc. É possível que possamos a partir disso criar uma matriz para ampliar o conhecimento sobre cidade e pressionar para mudanças na forma de gestão e valorização na estrutura político-administrativa da cidade.
O artigo científico completo está publicado em: https://doi.org/10.1590/s0103-4014.2019.3397.002