jornalismo, ciência, juventude e humor
Quando os mutantes vêm marchando

Texto: Alberto Díaz Añel
Tradução e adaptação: Tiago Marconi

Genes, monstros e vírus

Nos últimos tempos, a pandemia nos trouxe algo que até agora não havia sido uma grande preocupação: os mutantes. Em todos os lados se fala de novas variantes do vírus que causa covid-19 e das mutações responsáveis pela aparição dessas variantes. E como esta é uma série que fala sobre ciência através dos monstros, eles vão nos ajudar a explicar o que é um mutante.

No mundo dos monstros mais famosos, quase não encontramos mutantes. Talvez simplesmente porque nasceram muito antes de termos uma mínima ideia sobre genética. A existência de mutações causadoras de mudanças nos seres vivos foi descoberta outro dia, nos anos 40 do século XX, pouco depois do cinema ter tornado famosos Drácula, o Lobisomem, a Múmia e o monstro de Frankenstein. E embora o Monstro da Lagoa Negra tenha aparecido uma década depois, nunca se associou seu aspecto característico à mutação de seu genoma.

Como vimos em publicações anteriores, muitas dessas criaturas foram inspiradas em pessoas que carregavam mutações que modificavam seu aspecto e às vezes também seu comportamento. A mera existência dessas pessoas “diferentes”, somada à ignorância sobre genética e hereditariedade que existia em um passado não muito distante, serviu para alimentar antigas lendas, particularmente aquelas associadas aos vampiros (ver publicação sobre porfiria) e lobisomens (ver publicação sobre hipertricose).

As descobertas das mutações a partir dos anos 40 foram mais bem aproveitadas por personagens fantásticos mais prósperos da segunda metade do século XX: os super-heróis. Nesse grupo, vamos encontrar mutantes de todas as cores e tamanhos. Para apontar só alguns (muitos dos quais poderiam entrar na categoria monstros), o incrível Hulk, o Homem Aranha (ou melhor, a aranha que o picou) e todos os membros dos X-Men. Mas esta é uma série de monstros, de maneira que deixaremos os super-heróis de lado.

X-Men, a equipe de mutantes da Marvel

Um par de décadas antes de se conhecer o efeito que as mudanças no DNA podia produzir nos seres vivos, era bem sabido que se podia utilizar a radioatividade para gerar essas variações no genoma. E apesar de todo esse conhecimento (ou talvez fazendo mau uso dele), a energia nuclear foi a arma selecionada para terminar a Segunda Guerra Mundial em 1945. O trauma que as consequências desse ataque causaram na sociedade japonesa foi em parte responsável pela criação, nos anos 50, do mais famoso monstro mutante moderno: Godzilla, de quem falaremos com um pouco mais de detalhe em nossa próxima publicação.

Godzilla en seu primeiro filme, de 1954 (Toho Film) e em seu último, de 2019 (Warner Bros), lançando seu mortal “bafo atômico”

Obviamente que o boom dos mutantes também foi aproveitado pelo gênero terror, sobretudo na aparição de plantas, pessoas e animais grandes, a criação de numerosas hordas de zumbis ou a geração de híbridos de humanos e animais, tendo ‘A mosca’ como estandarte desse último tipo de monstros. Mas nenhum deles obteve a fama das criaturas monstruosas que povoaram os cinemas até os anos 40, com a honrosa exceção de Godzilla, cuja popularidade nunca se dilui, principalmente no mundo oriental.

Um híbrido mutante entre humano e inseto foi o protagonista de ‘A mosca’, filme de 1986 (SLM Production Group e Brooksfilms)

Pois bem, vamos ao que importa. O que é uma mutação? Só pode ser causada por radioatividade? As mutações são sempre “ruins”? O conceito de mutação em genética é simples, são mudanças no DNA de um genoma. E o que muda? Em uma de nossas publicações anteriores explicamos que o DNA é formado por uma sequência de nucleotídeos, representados por 4 letras (A, C, G e T). Certas regiões do DNA têm guardados os códigos para a fabricação de todas as proteínas de que nossas células necessitam. Essas regiões são conhecidas como genes. Se alguma dessas letras no gene é substituída por outra diferente (ou é diretamente eliminada), isso é considerado uma mutação, que pode (ou não) produzir mudanças drásticas na proteína fabricada a partir desse gene.

Agora, o que pode causar uma mutação? Há inúmeros fatores. Como já dissemos, a exposição à radioatividade (como os raios x) é um deles, mas não é a forma mais comum na natureza de se alterar um gene (a menos que vivam perto de Chernobil). Também existem outros mutagênicos (causadores de mutações) como o ácido nítrico (utilizado para fabricar explosivos e fertilizantes), o inseticida DDT (cujo uso é atualmente proibido) e os raios solares ultravioleta. Em geral, esse tipo de mutação se dá por acaso, e por esse motivo muitas delas podem levar à formação de algum tipo de câncer.

Pode-se causar mutações em um ponto específico de um gene? Sim, por meio da engenharia genética. Hoje conhecemos de ponta a ponta o genoma humano e a causa de muitas doenças hereditárias. Um dos grandes sonhos da ciência é poder curar esse tipo de enfermidades atuando diretamente sobre o genoma danificado. Muitas técnicas foram aplicadas para a “edição” de genes, mas nenhuma dava certeza de especificidade, sobretudo quando se tinha que modificar um só nucleotídeo em um determinado gene. Hoje existe uma técnica conhecida por sua sigla em inglês, CRISPR-Cas9, capaz de dirigir a edição de genes de maneira específica, podendo modificar desde um só nucleotídeo até eliminar um gene ou um cromossomo completo.

Esquema de funcionamento do CRISPR-Cas9 (crédito: Roxanne Makasdjian / UC Berkeley – CC BY 2.5)

Para quê alguém desejaria eliminar todo um cromossomo ou mesmo um gene? Para criar modelos de doenças humanas em animais de laboratório, e assim poder estudá-las melhor. E para que serve alterar um só nucleotídeo? Nesse caso, a ideia seria substituir uma mutação “prejudicial” (causadora de doença, por exemplo) por outra mutação que devolva a funcionalidade normal a esse gene danificado. Esse tipo de mutações dirigidas já está sendo testado em ensaios clínicos para tratar alguns tipos de câncer, e há esperanças de que se possa utilizar para curar doenças hereditárias, como vários tipos de anemias, hemofilia, fibrose cística e doenças cardiovasculares. Em 2020, as criadoras do método CRISPR-Cas9, as cientistas Jennifer Doudna e Emanuelle Charpentier, receberam o Prêmio Nobel de Química por sua descoberta.

Uma das causas mais comuns das mutações na natureza são os erros que as células cometem quando duplicam seu genoma. Já falamos da replicação do DNA anterior à divisão celular ou mitose, que é um processo bastante exato, mas não isento de erros. Muitas das “gafes” das polimerases (proteínas encarregadas de copiar DNA e RNA) passam despercebidas, já que é mais provável que ocorram em regiões fora dos genes – conhecidas como DNA não codificante –, que abarcam entre 85% e 90% do genoma.

Mas quando esses erros de cópia são produzidos dentro de um gene, várias coisas podem acontecer. Nada (porque se mantém o mesmo aminoácido, especialmente se altera-se a terceira letra de um códon no DNA), a troca de um aminoácido por outro, ou a eliminação de uma letra mude todo o sentido da sequência proteica, inclusive deixando-a truncada. E isso é sempre ruim? Depende. A troca de um aminoácido por outro pode significar que essa proteína continue igual, piore sua função ou inclusive pode melhorar seu desempenho. Muitas das vantagens evolutivas que os seres vivos foram adquirindo durante milhões de anos se devem a mutações “favoráveis”, que prosperaram ao longo do tempo. As mudanças “negativas” (como a perda de função ou a produção de uma proteína truncada) em geral não têm bom resultado e costumam representar uma desvantagem evolutiva. Mais adiante veremos algo sobre mutações “favoráveis” no caso dos vírus.

Diferentes tipos de mutações que podem ocorrer no DNA – e portanto em seu RNA mensageiro (RNAm) – e sua influência na sequência das proteínas resultantes. Essas mesmas mudanças podem ocorrer quando um vírus de RNA (como o Sars-CoV-2) realiza múltiplas cópias de seu material genético em uma célula infectada e o sistema de correção de erros falha (ver mais abaixo no texto). 5′ corresponde ao início de DNA ou de RNAm e 3′ ao extremo final. N- (ou amino de terminação) indica o início da cadeia de proteína e -C (ou carboxilo de terminação) seu final. Os textos de três letras com fundo laranja ou vermelho se referem aos nomes resumidos de alguns aminoácidos. Os quadrados vermelhos indicam mudanças na sequência original. Stop indica um códon de terminação na cadeia proteica. (crédito: Lumem – CC BY 4.0)

Que haja mudanças “negativas” que não tragam vantagens ao organismo nem sempre quer dizer que a mutação vá fazer desaparecer para sempre todos aqueles que a carregam. Algumas dessas mutações permanecem “ocultas” quando sua presença não implica diretamente a morte do ser vivo em questão. Mutações desse tipo são conhecidas como “recessivas” e só se expressam em determinadas condições. Em nossas histórias anteriores de monstros e ciência, vimos vários casos dessas mutações, que costumam ser raras. A porfiria, o albinismo e alguns tipos de anemias hereditárias são consquência desse tipo de mudança no genoma. E o que significa essas mutações serem recessivas? Para responder, teremos que falar um pouco sobre genética e hereditariedade.

Muitas de nossas características, não só o aspecto externo mas também o funcionamento de nosso corpo, herdamos de nossos pais. Essas características são dadas pelos genes que herdamos de mamãe e papai. Por isso cada gene tem algo como “duas partes”, conhecidas como alelos. Cada alelo provém de cada um de nossos pais e ambos representam o mesmo gene, ou seja, podem fabricar a mesma proteína.

Devido a erros que podem ocorrer na duplicação do DNA ou na formação das células reprodutivas de nossos pais (nesse caso, cada uma delas será portadora de um só alelo de cada gene), há certa possibilidade de que os alelos não sejam idênticos ao que deveriam ser na teoria. E o que isso quer dizer? Que, por mais que sejam alelos do mesmo gene, ao provirem de duas pessoas diferentes, pode acontecer que haja discrepâncias em seus códigos, e que as proteínas produzidas não sejam exatamente idênticas, ou que um alelo possa fabricá-la e outro não.

Por isso, para numerosas características pode ocorrer que um dos alelos seja “dominante” sobre o outro. Isso quer dizer que, no caso em que uma pessoa tenha dois alelos diferentes para um só gene, só se expressará aquele que for dominante sobre o outro, que passa, por sua vez, a chamar-se “recessivo”. Esse último só poderia se expressar quando aparecer duas vezes no mesmo gene, ou seja, quando o alelo dominante não está presente. Complicado? Vejamos um exemplo típico.

Sabemos que no mundo existe uma grande variedade de cores de olhos entre nós. Embora não seja uma variabilidade muito grande, há duas cores que mostram os dois extremos desse espectro: o castanho e o azul. A cor dos olhos é definida por um gene que, no caso dessas duas gamas, é representada por dois alelos diferentes, o castanho (alelo dominante) e o azul (nesse caso, alelo recessivo).

A cor dos olhos de um bebê será então determinada pelos alelos que receber de ambos os pais. Como o alelo castanho é dominante, o bebê só poderá ter olhos azuis se ambos os alelos forem azuis. Se recebeu um castanho e um azul, seus olhos serão sempre castanhos, porque essa última é uma característica dominante. E agora a pergunta do milhão (e causadora de muitos divórcios), podem dois pais de olhos castanhos terem um bebê de olhos azuis?

Para que a resposta seja mais simples, vamos representar os alelos com letras. Ao castanho poremos a letra B (do inglês brown) e em maiúscula porque é o caráter dominante, e ao azul, b (do inglês blue, em minúscula porque é o caráter recessivo). Vamos distribuir os alelos no que se conhece como quadro de Punnett, chamado assim em homenagem a seu criador. Esse tipo de quadro, muito usado em genética, permite mostrar todas as combinações possíveis de alelos. Na parte superior do quadro vamos botar os dois alelos que a mãe forneceria, e à esquerda os que vêm do pai. Nos quadros centrais vamos botar o par de alelos que se formaria em cada bebê hipotético, levando em conta que esses cruzamentos serão sempre ao acaso.

Agora suponhamos que um homem de olhos castanhos está casado ou amigado ou amancebado com uma mulher de olhos azuis. Ele possui, nesse caso, alelos dominantes (BB), e ela, recessivos (bb). O casal decide ter um bebê, de forma que suas células reprodutivas fornecerão à prole apenas um dos alelos. Como o pai só pode fornecer B e a mãe, b, todos os bebês erão olhos castanhos (Bb), já que, por mais que ambos os alelos estejam presentes, o castanho sempre é dominante sobre o azul. Quando ambos os alelos diferentes estão presentes (Bb, como na descendência do exemplo), se diz que essa pessoa é heterozigota para essa característica. No caso de que os dois alelos sejam iguais (BB como o pai, ou bb como a mãe), se diz que são homozigotas.

Possível descendência (100% heterozigotas de olhos castanhos) de pais homozigotos para dois tipos de cor de olho (imagem: Puppy Purple – CC BY-SA 3.0)

Agora vejamos o caso de um casal em que ambos são heterozigotos para a cor dos olhos, ou seja Bb. Já sabemos que os dois terão olhos castanhos. E seus futuros bebês? Nesse caso, qualquer dos progenitores pode fornecer um dos dois alelos diferentes, seja B ou b. Como vemos nos resultados do quadro abaixo, existe a probabilidade de que um quarto (25%) dos bebês receba ambos os alelos dominantes de mamãe e papai (BB) e de que metade (50%) receba um de cada (Bb). Isso quer dizer que três a cada quatro bebês (75%) poderiam ter olhos castanhos como mamãe e papai. E o que acontece com o quarto bebê? 25% dos hipotéticos bebês poderiam receber dois alelos recessivos (bb), por isso teriam, nesse caso, olhos azuis, diferente dos pais. Isso não quer dizer que para ter um filho de olhos azuis o casal deveria fazer quatro bebês. Como esses cruzamentos se dão ao acaso, pode acontecer que o primeiro bebê tenha olhos azuis, ou que os pais precisem formar uma família bastante numerosa antes de ter um de seus descendentes com essa cor de olhos. Portanto a resposta à pergunta do milhão é claramente afirmativa. Quando acontece algo assim, para evitar acusações de infidelidade, podem observar os olhos de um dos avós. Há uma alta probabilidade de que algum deles tenha olhos azuis.

Possível descendência (75% olhos castanhos, 25% olhos azuis) de pais homozigotos, ambos de olhos castanhos (imagem: Puppy Purple – CC BY-SA 3.0)

O mesmo que acontece com a cor dos olhos se dá com as doenças recessivas que mencionamos mais acima. E por que não há tanta gente (ou pelo menos 25%) que sofra dessas doenças? Algumas delas impedem que seus portadores possam chegar à idade reprodutiva (ou podem inclusive produzir esterilidade), enquanto outras afastam os “mutantes” do resto da sociedade, sobretudo aquelas que afetam seriamente o aspecto externo de quem sofre delas. Nesse último caso, é comum que façam surgir populações endêmicas, em que seus membros não têm outra opção senão reproduzirem entre si. Isso implica que as mutações recessivas vão terminar se expressando em maiores porcentagens dentro desses grupos. Como exemplos atuais (no passado, há muitíssimos), podemos citar algumas famílias que sofrem de hipertricose (que não é uma doença recessiva) no México, ou a notória população de albinos existente na África ocidental. Nesse último caso, as pessoas que têm essa doença recessiva começaram a ser protegidas por ONGs e governos locais, já que o notório contraste da cor de sua pele com a do resto da população, somado a crenças supersticiosas locais, os transformou em alvo de caça com o objetivo de obter partes de seus corpos, para serem usadas em rituais destinados à obtenção de riqueza, sucesso e boa sorte.

Cartaz de campanha da ONG OAM Foundation, no texto se lê “Para além da compleição, somos todos apenas humanos”

Bom, até aqui, muita cor de olho, albinismo, alelos e mutações, mas o que acontece com os vírus? No caso deles, tudo é muito mais simples, o que por sua vez torna a situação mais perigosa. Por quê? Porque os vírus não têm alelos, de forma que cada gene representa a si mesmo em uma única cópia, como se fossem sempre dominantes. E se somarmos a isso a taxa de erro das polimerases virais e as centenas ou milhares de cópias que se podem gerar a partir da infecção de um só vírus, temos como resultado uma alta frequência de aparição de novas mutações.

No caso do vírus causador da covid-19, o Sars-CoV-2, seu material genômico é uma cadeia simples de RNA. Quando o vírus infecta uma célula, utiliza a maquinaria dela para fabricar proteínas virais a partir desse RNA. Entre essas proteínas, há um grupo que forma um complexo de transcrição/replicação. Essas duas tarefas implicam a criação de novo RNA para ser traduzido em outras proteínas virais (a proteína S ou da espícula, o nucleocapsídeo que vai proteger o genoma viral dentro dos novos vírus etc.) e a replicação de cópias “exatas” do genoma viral, as quais se unirão às proteínas mencionadas mais acima para formar as centenas ou milhares de partículas virais que sairão da célula para infectar novas vítimas (sejam células ou pessoas).

Complexo de transcrição/replicação do Sars-CoV-2, formado por várias proteínas com funções específicas, como Nsp12, que se encarrega de agregar os nucleotídeos à nova cadeia de RNA que se está fabricando, e Nsp14, encarregada da correção de possíveis erros (e provavelmente a maior responsável pela aparição de novas variantes virais) – crédito: doi.org/10.1016/j.molcel.2020.07.027

Vocês devem ter notado que no parágrafo anterior pusemos cópias “exatas”. Bem, como dissemos acima, os complexos proteicos de replicação dos vírus não se caracterizam por ser muito exatos, mesmo existindo um sistema de correção de erros. Ao duplicar centenas ou milhares de RNAs a partir de um só molde, pode acontecer de alguns dos nucleotídeos serem copiados erroneamente ou inclusive eliminados (o que se conhece como deleção), e que algum dos vírus resultantes leve consigo uma (ou mais de uma) mutação.

Quando esse último caso ocorre, existe a possibilidade de que uma dessas mutações seja desfavorável para o vírus, sendo muito provável que não prospere. Mas alguma pode lhe oferecer uma vantagem evolutiva, implicando que passe a se converter em uma variante mais exitosa. E por quê? Porque se essa mutação resulta em, por exemplo, que o vírus possa se unir melhor ao receptor celular de entrada, isso vai lhe dar uma vantagem sobre a variante original para infectar células de maneira mais eficiente e rápida. Também pode ocorrer que, devido a essa mutação, já não possa ser reconhecido pelos anticorpos que uma pessoa gerou quando se infectou com a variante original, por isso essa pessoa poderia voltar a se infectar apesar de ter criado defesas. Isso sem falar nas vacinas. Elas foram desenhadas com base na sequência do gene que codifica para a proteína S (ou da espícula) do Sars-CoV-2 original. Qualquer mutação neste gene poderia significar que os anticorpos gerados com as vacinas atuais não possam reconhecer uma nova variante do vírus.

Estrutura tridimensional da proteína da espícula do Sars-CoV-2. A parte inferior (em branco) é a que a ancora à membrana que envolve o vírus. O setor superior é o encarregado de se unir ao receptor ACE2 das células que serão infectadas. Ali se destacam as regiões Domínio N terminal (o NTD en azul) e o Domínio de união ao receptor (ou RBD, em fúcsia)

Algo assim está acontecendo nesse momento. A variante delta (previamente conhecida como B.1.1.7), originada na Inglaterra, é mais contagiosa, talvez porque a mutação que a originou proporcionou ao vírus uma forma melhor e mais eficiente de entrar nas células. A carga viral das pessoas infectadas chega a ser mil vezes maior do que aquela em em pessoas infectadas por outras linhagens. É uma mutação tão exitosa que essa variante, em poucas semanas, saltou de 20% a 70% dos casos detectados na Grã Bretanha. Atualmente ela se tornou dominante globalmente e está presente em 185 países. A variante beta (previamente chamada de 501.V2 ou B.1.351), detectada na África do Sul, quando foi exposta a soros com anticorpos de pessoas que haviam sido infectadas com a variante original, não mostrou nenhum tipo de reação, ou seja, os anticorpos não a detectaram. Essas duas variantes e a gama (identificada primeiro no Brasil), além da linhagem original (alfa) são acompanhadas com maior preocupação pela Organização Mundial de Saúde (OMS). Por enquanto, as vacinas disponíveis seguem funcionando contra as variantes de preocupação – a beta, que tinha maior potencial para escapar das vacinas, acabou superada pela delta. Futuramente, porém podem surgir variantes que “enganem” as vacinas. [Nota do Ciência na Rua: este parágrafo foi atualizado em relação ao texto original com informações da Pesquisa Fapesp, da AFP via UOL e da CNN].

Mutações ocorridas na proteína da espícula do Sars-CoV-2 a 20 de janeiro de 2021. Pueden verse aquellas que fueron detectadas en humanos y en otros animales. En rojo aparecen las mutaciones que pertenecen a la llamada variante británica B.1.1.7, y en negro las de la variante sudafricana 501.V2. En esta última se destacan tres mutaciones (recuadradas en rojo) en el dominio de unión al receptor ACE2 (RBD), que podrían ser las responsables de la mayor infectividad de esta variante. (imagem: virological.org)

Esperemos que esses novos vírus mutantes possam finalmente ser eliminados e que não se convertam em uma nova categoria de monstros que aflijam a humanidade.


Ciência Monstruosa é um projeto do pesquisador e comunicador científico argentino Alberto Díaz Añel, que o Ciência na rua está adaptando para o português. Confira abaixo os textos já publicados.

Vampiros: quanto mais longe, melhor (publicado em 3 de julho de 2020)
Vampiros e doenças do sangue (publicado em 10 de julho de 2020)
Os lobisomens e o crescimento dos pelos (publicado em 17 de julho de 2020)
Podemos matar o que não está vivo? (publicado em 24 de julho de 2020)
Como o corpo se defende? (publicado em 31 de julho de 2020)
O essencial é invisível aos olhos (publicado em 7 de agosto de 2020)

À flor da pele (publicado em 14 de agosto de 2020)
Ciência Monstruosa: os tijolos da vida (parte 1) (publicado em 21 de agosto de 2020)
Ciência Monstruosa: os tijolos da vida (parte 2) (publicado em 28 de agosto de 2020)
Raios, rãs e monstros: a faísca que nos dá vida (publicado em 21 de setembro de 2020)
Salada de monstros (publicado em 16 de outubro de 2020)
Divide e multiplicarás (publicado em 2 de junho de 2021)

As duas (ou mais) faces da vida (publicado em 30 de junho de 2021)
Como fabricar um zumbi… sem matar ninguém (publicado em 28 de julho de 2021)

Em busca da vida eterna (publicado em 25 de agosto de 2021)

Compartilhe:

Acompanhe nas redes

ASSINE NOSSO BOLETIM

publicidade