Fabiana Mariz, Jornal da USP
Estudo na Universidade Kunming de Ciência e Tecnologia de Yunnan, na China, cultivou por até 20 dias embriões de quimera no laboratório; pesquisa exigiu acompanhamento externo de equipe de bioética em cada etapa
Pesquisadores da China e dos Estados Unidos desenvolveram, pela primeira vez, embriões híbridos em laboratório feitos com células de macacos e humanos. Os estudos foram conduzidos na Universidade Kunming de Ciência e Tecnologia de Yunnan, na China, onde os cientistas foram capazes de cultivar esses embriões por até 20 dias – tempo considerado satisfatório. O experimento pioneiro é um primeiro passo, segundo seus autores, para desenvolvimentos como organelas (miniórgãos) para estudos sobre doenças que não podem ser feitos em humanos, ou mesmo para a geração de órgãos híbridos para pessoas que aguardam nas filas dos transplantes.
Seis dias depois de criados, cada embrião da espécie Macaca fascicularis recebeu a injeção de 25 células-tronco humanas, conhecidas como pluripotentes estendidas (com potencial de contribuir para a formação de tecidos embrionários e extraembrionários, como cordão umbilical e placenta). No sétimo dia, células humanas foram detectadas em 132 embriões. Após dez dias, 103 deles ainda estavam em desenvolvimento, quando a taxa de sobrevivência começou a declinar. Já no 19º dia, apenas três deles ainda estavam vivos. Mas o mais importante é que a porcentagem de células humanas nos embriões permaneceu alta ao longo do tempo em que continuaram a crescer.
“É a primeira vez que os cientistas conseguiram gerar quimeras entre primatas, incluindo humanos”, ressaltou ao Jornal da USP Ernesto Goulart, pesquisador do Centro de Estudos sobre o Genoma Humano e Células-Tronco (CEGH-CEL) da USP – que não participou da pesquisa na Cell, mas atua na área. “Mas a técnica em si não é nova”, explicou. Estudos já mostraram que é possível fazer esse tipo de embriões entre roedores com muita eficiência.
“Como não podemos conduzir certos tipos de experimentos em humanos, é essencial que tenhamos melhores modelos para estudar e compreender com mais precisão a biologia e as doenças humanas”, disse em comunicado à imprensa o autor sênior Juan Carlos Izpisua Belmonte, professor do Laboratório de Expressão Gênica do Instituto Salk de Ciências Biológicas, na Califórnia, Estados Unidos. “Um objetivo importante da biologia experimental é o desenvolvimento de sistemas-modelo que permitam o estudo de doenças humanas em condições in vivo.”
Como explica Goulart, o embrião quimera é aquele que, na sua composição, tem células de pelo menos duas espécies diferentes. Por preceitos éticos, estudar embriões humanos não é permitido. “Muito do que se sabe sobre o desenvolvimento de um embrião é extraído a partir do estudo do desenvolvimento de outros mamíferos”.
Mayana Zatz, diretora do CEGH-CEL, afirma que a técnica vai permitir investigar o desenvolvimento de embriões no laboratório por muito mais tempo. “Seria possível gerar células-tronco pluripotentes de pessoas com diferentes doenças genéticas, gerar embriões quiméricos e investigar melhor o efeito de diferentes mutações nos embriões”, explica a geneticista. “Além disso, seria possível testar o efeito de diferentes drogas nesses embriões.”
Outras abordagens
A pesquisa tem o potencial de fornecer informações inéditas sobre a biologia do desenvolvimento e a evolução e tem implicações para o desenvolvimento de novos modelos de biologia e doenças humanas.
O modelo de estudo também pode ser usado com finalidades terapêuticas, de acordo com Goulart. “Podemos colocar células humanas dentro de um embrião de outro mamífero e ver como que aquelas células vão se comportar e até onde chegam durante o desenvolvimento: um coração ou um pâncreas, por exemplo.”
Outra potencial aplicação seria a geração de órgãos para transplante, segundo Mayana. “Nosso grupo já conseguiu formar um mini fígado humano a partir de um arcabouço de um fígado de rato, onde foram retiradas todas as células. Talvez essa tecnologia de quimera permita, no futuro, reconstruir órgãos com muito maior rapidez.”
A técnica utilizada por Izpsua é chamada de complementação blastocística. Trata-se de uma técnica em que o pesquisador trabalha com um embrião que possui agenesia (ausência completa ou parcial de um órgão ou tecido em seu estágio embriológico) e insere células de outra espécie para deixá-lo viável, por exemplo. No estudo, foram utilizadas células de macacos-cinomolgos e de humanos, mostrando que é possível construir quimeras entre primatas, assim como já foi feito anteriormente com roedores. “Posso ter um embrião de um camundongo que nunca gerará um rim e complementá-lo com células de rim de rato”, ilustra Goulart. O pesquisador ressalta que essa técnica não permite a execução em espécies evolutivamente distantes, como o porco e um primata.
Um experimento desse tipo, até pelo ineditismo, requer discussão ética. E por isso envolveu uma equipe externa de bioética que orientou seus passos. Izpisua destaca o potencial do trabalho para a futura geração de órgãos. “A cada ano dezenas de milhares de pacientes morrem na lista de espera por um órgão”, destaca.
Sobre o fato de esse modelo ser usado de forma clandestina, Goulart acha ser pouco provável. “Essa tecnologia precisa de altos investimentos e não é tão trivial para ser feita em um laboratório de garagem”, ressalta o pesquisador.
Mayana afirma que é normal haver pessoas contrárias a esse tipo de técnica. “Vão crirar híbridos e macacos com seres humanos!”, diz, ao se referir à clonagem da ovelha Dolly. “Lembro-me que diziam que os cientistar iriam clonar seres humanos e que estavam brincando de Deus, mas nada disso aconteceu”.
A diretora do CEGH-CEL discorre também sobre os avanços conseguidos a partir da divulgação da pesquisa sobre a ovelha. “A clonagem mostrou pela primeira vez que a partir de uma célula diferenciada seria possível formar qualquer tecido no laboratório. Em seguida, surgiu as células IPS, células-tronco reprogramadas, que deram o prêmio Nobel a Shinya Yamanaka, e que estão permitindo progresso gigantescos no estilo de doenças genéticas e na medicina regenerativa”.