Em setembro de 2019, o Ciência na Rua participou do Camp Serrapilheira, no Rio de Janeiro, evento em que divulgadores científicos apresentavam seus projetos para conseguir financiamento do Instituto Serrapilheira. Entre as muitas apresentações de iniciativas valorosas (foi incluisive selecionada), estava a de Carolina Brito, professora do Instituto de Física da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Inicialmente com uma peruca roxa engraçada, na pele da personagem Carlota, ela em seguida passou a apresentar dados muito sérios sobre a perda de espaço das pesquisadoras mulheres ao longo das diferentes etapas da carreira científica – são a maioria das formadas e a minoria no topo da carreira. Essa curva descendente implica uma curva ascendente inversamente proporcional entre os homens – daí o nome “efeito tesoura – e não se restringe às áreas científicas.
A porto-alegrense de 42 anos, mestre e doutora em física pela própria UFRGS (com passagens pela França no trajeto), coordena o Meninas na Ciência, programa de extensão da universidade que busca atrair meninas para carreiras científicas. Coordena também o Lugar de Mulher, programa de extensão em parceria com a UFRGS TV, que “tem como objetivo criar modelos para as meninas que buscam uma identificação e transmitir a mensagem de que o lugar de mulher é onde elas queiram estar”. Ela também participa do Fronteiras da Ciência, podcast do Instituto de Física. Além de, claro, ensinar e pesquisar. Em meio a tantas atividades, Brito nos cedeu cerca de uma hora para conversarmos por videochamada sobre meninas e mulheres na ciência, no marco do Dia Internacional das Mulheres – e ainda conseguimos falar um pouquinho de física! Confira abaixo a entrevista.
Você sempre quis ser cientista? Por que virou cientista e por que física?
Eu desde pequenininha queria ser astrônoma. Na minha geração, astronomia era uma coisa que encantava quase todo mundo. Perguntavam “o que tu quer ser?”, quer ser astronauta. Hoje em dia, é youtuber. Mas eu queria ser astronauta. E depois eu descobri que a astronomia é um ramo da física e aí eu queria fazer física, desde pequena. Tinha meu tio, também, que era químico, eu via ele naquela vida acadêmica, esse tipo de coisa me seduzia. Era uma espécie de amor pela matemática, amor pela astronomia, desejo da vida acadêmica, era um misto de tudo. Eu diria que o incentivo foi astronomia. Nunca segui na área, mas foi a minha entrada.
E em que momento a extensão universitária e a divulgação científica começam a entrar na história?
Quando ingressei como professora, eu nem sabia que existia muito. Extensão é a prima pobre da universidade, né? Apesar de estar na Constituição e ser um dos pilares da universidade brasileira, para mim era uma coisa, assim como para várias pessoas, “faz se quiser”. Primeiro ingressei nessa temática de mulheres na ciência, porque, ao contrário de muita gente, não sou muito tocada por histórias, sou mais tocada por dados. E fui a um congresso de mulheres da Física e comecei a ver aquele monte de efeito tesoura e falei “meu deus, não é possível que um fenômeno tão universal seja uma coisa ao acaso”. E ali me dei conta de que tinha uma questão de pesquisa. Então me interessou do ponto de vista científico mesmo, “o que está acontecendo?”. E aí comecei a atuar com minha colega Daniela Pavani no Meninas na Ciência. A Daniela é uma pessoa que trabalha muito com extensão, desde muito jovem. Depois a militância acaba surgindo meio naturalmente.
E a divulgação científica também foi uma questão meio de oportunidade, porque meus colegas aqui do Instituto de Física tinham um projeto, Fronteiras da Ciência, que é um podcast de divulgação científica, que está na 13ª temporada, e eu seguia eles, escutava, era fã do projeto. E um dia eles disseram: “não quer participar? Estamos precisando de gente”, como sempre, e comecei a participar, meio sem entender o tamanho que isso toma, como isso acaba sendo importante. Meio sem querer, digamos assim, não uma coisa muito pensada. Acabou sendo uma grande parte do meu tempo dedicado a isso. E aí depois tu te dás conta, num país como o Brasil, da necessidade que temos de falar de ciência. E depois que tu começas a entrar no mundo e ver as questões, se torna de novo uma militância, uma coisa necessária. Mas foi muito mais nas oportunidades, no fato de que eu estava vendo colega fazer, ou vendo a questão científica, muito menos pela extensão em si. Hoje em dia, entendo mais a complexidade da coisa.
Naquela apresentação em 2019, você mostrou dados muito interessantes sobre como a proporção de mulheres vai diminuindo a cada estágio mais avançado da carreira científica e de como isso não se deve a menor ambição, mas a um contexto hostil, desde a formação da personalidade das meninas até o ambiente de trabalho das mulheres pesquisadoras. Conte mais sobre esse efeito tesoura e suas causas. Houve novidades nesse panorama nos últimos dois anos e pouco?
Há vários problemas na área de ciência. No Brasil, em particular, há um problema extra: o que transcende o fator de gênero é o fato de que há poucas pessoas que fazem ciências exatas e tecnológicas. Poucas, quero dizer, 18% [do total de estudantes de graduação], segundo os microdados do INEP. E dentro desse parco universo, que já é pequeno porque o número total de formandos no Brasil é minúsculo também, estamos falando de: numa festa com 100 pessoas, 4 vão fazer STEM field (engenharia, física, matemática e computação), sendo apenas uma mulher. É muito pouco, comparado com qualquer país desenvolvido.
Existe esse problema: pouca gente nas áreas de STEM. Dentro desse universo, há pouquíssima diversidade, a questão das mulheres é uma das questões, um terço apenas dos formandos nessas áreas são mulheres. Se for ver questão de raça e tal, é ainda mais dramático. Mas vamos ficar nas mulheres, para tomar uma linha. O efeito tesoura é um efeito medido estatisticamente, que mostra que, a cada etapa da carreira, as mulheres perdem espaço. O dado que eu comentei naquela ocasião é geral, de todas as áreas, não só exatas e tecnológicas. Mas se olhamos o percentual de mulheres formadas no Brasil, são 56%, mais da metade, já somos maioria – mas isso é um dado global, incluindo as biológicas e socias, que têm mais mulheres que homens. Depois vai para doutorado, de bolsista CNPq, as mulheres são a metade. Depois, na carreira, com bolsa PQ, de produtividade de pesquisa, nós somos 30%. E na Academia Brasileira de Ciências, somos 14%. Então esse percentual vai se reduzindo, e há vários porquês.
O que chama atenção nesse efeito é que ele é completamente universal. Esse mesmo dado na área empresarial, nada a ver com academia, tu vais ver um efeito ainda mais dramático. Como CEOs, são 3% de mulheres. Começa com 30% na entrada, até um pouco mais, [cai] até 3% no topo de carreira. Aí você vai olhar uma área que é super “feminina”, pedagogia, por exemplo, ou medicina, que no começo tem mais mulheres, bolsistas PQ1A: 20%. Vai para fora do Brasil, Europa, Estados Unidos, é o mesmo tipo de efeito, então é um efeito muito robusto, acontece em todos os países, todas as carreiras. Então perguntamos “mas por que esse efeito é tão forte?”.
Se houve avanços nos últimos dois anos: não que eu saiba. Essa pandemia inclusive agravou, escutamos diversos dados de que as mulheres foram mais impactadas do que os homens, inclusive nas áreas acadêmicas. Por exemplo, houve mais submissão de papers dos homens, em alguns jornais que mediram, mas uma diminuição das mulheres. Não tenho os dados concretos aqui, mas diria intuitivamente que não houve avanço, ao contrário, deve ter havido uma piora.
E as causas?
Há várias, vou te dizer as que eu acho mais relevantes para a questão de gênero. Primeiro, vivemos numa sociedade super cheia de estereótipos, desde pequenininhas, as meninas são submetidas a diversos deles. Desde antes de nascer, os pais vão lá e botam um quarto rosa, um quarto azul, aquela coisa, brinquedo de menina, de panelinhas, de homem vai ser jogar futebol na rua, jogar taco, sei lá. E isso se mede, do ponto de vista de pesquisa. Por exemplo, tem um estudo muito famoso, em que contaram uma história de uma pessoa muito inteligente para crianças de cinco anos de idade e perguntaram qual é o gênero daquela pessoa, e aos 5 anos as meninas falam que é uma mulher, e os meninos falam que é um homem. Associam ao seu próprio gênero. Só que logo depois, aos 7 anos, meninas e meninos associam a pessoas muito inteligente com um homem. Então existe uma perda de auto-estima em idades muito jovens. Vemos que é um ponto importante. Sabemos também, medido por pesquisa, que essa auto-estima só faz diminuir. Há pesquisas que mostram, num curso de física nos Estados Unidos, em que eles pegam mulheres da [disciplina] física 1 e os homens da física 1 e perguntam no começo do semestre qual é a auto-avaliação deles e ao final do semestre pegam a notas dessas criaturas. E eles observam que as mulheres que pensavam que teriam nota B têm nota A, e os homens que pensavam que iam ter nota B, têm nota C. A auto-estima, a auto-imagem dos homens é maior que das mulheres, e esse efeito vai acompanhando ao longo da vida das pessoas.
Mas tem um outro efeito, que não é um efeito da auto-estima, é um efeito concreto. As mulheres são preteridas com relação aos homens. Um efeito inconsciente, o unconscious bias, que chamamos em inglês, e que também pode ser medido. Então justamente porque vivemos nessa sociedade super cheia de estereótipos, nós também crescemos com eles. Quando vamos avaliar um currículo – esse estudo foi feito, mandaram cento e vinte e tantos currículos idênticos para uma vaga de chefe de laboratório nos Estados Unidos e pediram para avaliar esse mesmo currículo, metade com nome Jennifer, metade com nome John, e ao final o John era mais bem avaliado que a Jennifer em todos os critérios, recebia um salário 20% maior do que a Jennifer. Então existem fatos concretos nessa barreira, que impedem a ascensão das mulheres. Para mim, essa questão do viés inconsciente é muito relevante, porque as mulheres realmente deixam de subir na carreira em função disso.
E, por fim, mas não menos importante, também enumero como uma das questões cruciais, é o ambiente profissional. As mulheres acabam perdendo a ambição profissional porque estão cercadas do que chamamos de “picadinhas de mosquito”. Porque o machismo até pode ser explícito em diversas pessoas, até é, mas no ambiente acadêmico, particularmente, as pessoas são mais ponderadas, não vão te dizer “eu sou racista”, “eu sou machista”, “eu sou homofóbico”, não, ninguém é, né? Ninguém tem preconceito. Mas sempre tem aquela piadinha. Estávamos acostumados a escutar, quando eu era jovem, “coisa de negão”, ou “mulher não sabe dirigir”, enfim, tem mil , né? Estamos tão acostumados com isso, hoje em dia um pouco menos… Mas ainda existe isso das piadas “mais sutis”, como por exemplo “mulher só entra em universidade para arranjar marido” ou “as leis assim como as mulheres são feitas para serem violadas”… Professores dizem isso em sala de aula. Esse tipo de picadinha de mosquito faz com que o ambiente se torne pouco apropriado para as mulheres. Isso é medido também, as mulheres já responderam pesquisa dizendo “no começo da carreira ambos têm o mesmo tipo de ambição, com o decorrer do tempo, a das mulheres despenca”. Grande parte é em função desse ambiente inapropriado, também uma coisa cultural que estamos acostumados a viver. E quem nunca foi assediado? As mulheres geralmente já foram. Isso também temos medido nos últimos anos. Medimos na SBF, Sociedade Brasileira de Física, a percepção de assédio, 30% das mulheres que responderam que já sofreram assédio sexual, contra 2% dos homens. Assédio moral vai para 50% no caso das mulheres, 30% nos homens. E depois tem vários dados internacionais e nossos também. Os casos de assédio sexual e moral também acontecem mais no caso das minorias. Percebemos que há um arsenal de situações, de razões pelas quais o ambiente acaba sendo problemático para essa população.
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O que é o projeto Meninas na Ciência?
O projeto foi criado em 2013 pela Daniela Pavani. E a ideia era justamente baseada em três dados, que eu acabei de comentar. 1) há pouquíssimas pessoas que fazem carreiras de ciência e tecnologia; 2) dentro desse percentual, pouquíssimas mulheres; e, 3) efeito tesoura. Então o projeto visava a criar ações que impactassem a atração de mais mulheres para as ciências exatas e tecnológicas e a manutenção dessas mulheres nessas carreiras. Claro que, no decorrer do tempo, acabamos ajustando também os objetivos e hoje sabemos claramente que falar só de mulheres não adianta, tem uma questão transversal ali, questão de cor, raça, questões de orientação sexual, de transgênero, então tudo isso acabamos abordando no projeto, porque é quase impossível falar só da questão das mulheres. Mas. para tentar criar essas ações, temos diversos projetos paralelos, formamos meninas – e meninos também, mas mais mulheres se interessam pelo projeto –, temos bolsistas que orientamos regularmente, temos oficinas de ciência, oficinas de gênero para debater nas escolas, que agora nos últimos dois anos foram online em função da pandemia; temos um projeto chamado Lugar de Mulher, em parceria com a UFRGS TV, que faz pequenos filmes sobre mulheres em diversas carreiras, para criar um modelo, já que temos tão poucos. Nesse último ano agora, nosso foco é em mulheres com deficiência, porque também elas aparecem muito pouco, então estamos entrevistando essas mulheres, onde elas estão trabalhando… Fazemos pesquisa também, vira e mexe aplicamos um questionário, tentamos coletar dados… Fazemos muitas campanhas dentro da UFRGS e nas redes sociais. Nossa última campanha foi ‘Na UFRGS tem negra”, queríamos medir a quantidade de alunas negras na UFRGS. É um projeto que tem um lado de pesquisa, tem bastante divulgação científica, levamos nas escolas, tem a questão de gênero, que sempre acaba atravessando tudo isso, é um projeto que tem várias frentes, tenta abordar diversas frentes, sempre com a parceria entre alunos, alunas e os técnicos e professores da UFRGS e professores de escolas também. Descobrimos muito rapidamente que, sem a parceria das escolas, um projeto de extensão não tem nenhuma chance de funcionar. Então temos uma parceria bem intensa com as escolas de ensino médio e também ensino fundamental, mas menos.
Públicas e privadas?
A maioria são públicas, nosso financiamento é para escola pública, mas realizamos também ações em escolas privadas, às vezes elas nos convidam para fazer alguma atividade. Por exemplo, logo antes da pandemia, fomos com toda a nossa equipe em uma escola privada, falar sobre as profissões.
Há projetos tocados por estudantes que visam a uma maior participação das meninas e mulheres nas ciências exatas e tecnológicas, não?
Isso é muito interessante. Entre a época que comecei a trabalhar com essas questões e hoje, a principal diferença que noto é no engajamento das alunas, porque antes era uma coisa que tinha que chamar as gurias, convidar… Hoje em dia, elas se auto-organizam, tem um monte de grupo feminista, as meninas da física, da engenharia, há vários. E isso é uma coisa que na minha época não existia. Dez anos atrás não existia. Eu era uma abobada. Entrei pela primeira vez na sala de física, tinha eu, três gurias e, sei lá, 50 homens, e aquilo era normal para mim. Era assim “ah, é um fato da vida, vou ter colegas homens”, e era isso. É uma mudança muito importante da nova geração, espero que continue, nunca sabemos, mas é uma coisa positiva.
E o Lugar de Mulher, então, é um desdobramento do Meninas na Ciência?
Exatamente. O Lugar de Mulher começou junto com o Meninas na Ciência, mas depois ele tomou uma proporção grande. Você sabe, produção é uma coisa demorada, a UFRGS TV tinha que ter bastante equipe, e também gostamos desse projeto porque conseguimos viajar um pouquinho nele, ter umas ideias diferentes. Então fizemos o Lugar de Mulher como um projeto de extensão em si, para poder aumentar a equipe e realmente ter mais espaço para pensar naquilo ali. Hoje em dia é um projeto de extensão individual, que é uma colaboração entre nós e a UFRGS TV, mas eles têm as bolsistas dele Eu coordeno o projeto, mas quem executa principalmente são eles, eles são a cabeça do projeto. Pensamos junto a temática, as fontes, mas quem faz o trabalho, carrega o piano, são eles.
E o que é o Fronteiras da Ciência?
O Fronteiras da Ciência foi criado por 3 colegas, o Marco Idiart, Jeferson Arenzon e Jorge Quillfeldt, em 2010. Eles eram um dos pioneiros do Brasil nessa área de podcasts de ciência, acho que é um dos primeiros podcasts do mundo em língua portuguesa. Tinha acontecido em Porto Alegre, na UFRGS, uma proposta de um curso de física quântica para medicina, pode imaginar as barbaridades que havia ali, e eles disseram “Puxa, não é possível que a universidade vai apoiar um negócio desse tipo, tem que ter algum representante da universidade que diga o que é ciência, que explique o que é ciência e mostre o que a universidade está fazendo”. E foi nessa batida que o Fronteiras da Ciência surgiu, para falar sobre as pseudociências e a ciência. Na época, eu estava chegando no Brasil, tinha feito um pós-doutorado fora, estava ingressando na universidade e me lembro de dizer: “Puxa vida, mas por que vocês se incomodam tanto com pseudociência?”… Olha só que loucura, depois de um certo tempo tu te dás conta do tamanho da coisa, da dimensão que tomou. E eles disseram: “Tu tá por fora, o congresso nacional tá lotado de religiosos”, e nada contra religião, mas religião e estado é um problema.
Eles criaram o Fronteiras da Ciência, e depois de 6 anos eu ingressei na equipe. É um projeto que tem como objetivo falar sobre o método científico. Porque depois de um certo tempo se esgotam as pseudociências, e na verdade ninguém quer dar muito palco para elas, então o que acabamos fazendo muito mais é falar sobre a ciência e como ela é construída. Entrevistamos semanalmente um convidado, uma convidada, especialista em alguma área da ciência, com o objetivo de contar o último trabalho deles ou uma coisa mais ampla, mas sempre se tenta falar um pouquinho sobre o que eles estão fazendo. Daí aparece o método científico, tentativa e erro, aquela coisa da ciência em construção… E hoje em dia é um projeto que tenho uma verdadeira paixão por ele, porque eu tenho a impressão de que saber ciência é libertador. Não precisa fazer ciência. Saber ciência é libertador porque tu começas a entender… Primeiro lugar, tu recebes uma notícia, diz assim: “qual a plausibilidade disso que estou lendo?”, segundo lugar: “qual é a fonte disso que estou lendo?”. Eu penso assim: se conseguimos transmitir aos nossos ouvintes essas duas características, “seja crítico” e “descubra a fonte”, para mim já é um grande passo no sentido de dizer: “não vou cair em qualquer bobagem, e não dá para acreditar nisso que estou ouvindo”. Então se tornou um projeto que é um projeto do meu coração também. Gosto muito do Fronteiras, apesar de que é um trabalhão. Fazemos tudo sozinhos, somos quatro para fazer a pauta, entrevistar, editar o projeto…
Com qual periodicidade?
Semanal. Mas esse ano, passará a ser quinzenal, porque os quatro já estão assim ó (simula autoesganamento), e é realmente muito trabalho. E nos últimos anos apareceram muitos podcasts de ciência, e muito bons. Antes não tinha, ou tinha pouquíssimos, Dragões de Garagem, que até hoje existe e é ótimo, mas tinham dois ou três, e os que apareciam acabavam morrendo, porque é difícil manter o projeto. Hoje, há vários projetos de ciência excelentes, as grandes mídias estão entrando… O G1, que não tem podcast de ciência, mas consegue entrevistar Paulo Artaxo, consegue entrevistar os grandes nomes das mudanças climáticas… Então tenho a impressão de que nosso papel está menos relevante do que era um tempo atrás. Mas pretendemos continuar porque adoramos, nos dá muito prazer, acabamos conversando com gente muito interessante. E como o projeto tem um certo nome, aqui dentro da universidade, sobretudo, conseguimos acessar pessoas muito interessantes, convidamos pessoas cabeçonas, com quem gostaríamos de aprender um tema, e conversamos com aquela pessoa. Isso também é um elemento muito legal, que para nós é um baita aprendizado sobre as questões de ciência.
Vamos falar um pouco de física. Você estuda propriedades de materiais amorfos e superhidrofóbicos. O que é isso?
São duas áreas de pesquisa. Uma delas é propriedades de materiais amorfos. Se tu colocas uma cerveja na geladeira, quem toma cerveja sabe que, de repente, se você bota a mão no meio da [garrafa de] cerveja, ela vai congelar imediatamente. Isso acontece porque aquele material está num estado que chamamos de metaestável. Para aquela temperatura, próximo de zero, ela deveria estar sólida, mas não está, está líquida ainda. Quando tocamos nela, o que acontece é que tu transmites energia, e ela solidifica na mesma hora. E estraga a cerveja. O vidro tem essas características de um estado metaestável, no sentido de que, quando abaixamos a temperatura, se fazemos de maneira muito rápida, o material gostaria de ordenar suas moléculas, mas ele não tem tempo, então ele vai ficar desordenado. Essa característica chamamos de metaestável, porque ele não está no estado de energia mínima dele, assim como a cerveja não estava. Ao perturbarmos esse material, ele vai querer ir para o estado ordenado, que é o cristalino. Quando falamos de materiais amorfos, estamos falando de materiais que foram gerados por essa transição, que é um abaixamento de temperatura muito rápido, e as moléculas ficam desordenadas. Isso interessa porque muitos materiais são assim. Por exemplo, vidro de janela é assim, borracha tem uma fase assim, qualquer material tem uma fase vitrosa, como chamamos, ou amorfa. E algumas das propriedade diferem muito do que acontece no cristal. O que estudo são as diferenças de propriedade, por exemplo, como ele transmite força, calor… Se eu quisesse usar esse material para construir alguma coisa que fosse cair, como esse material vai resistir ao choque? Que diferença ele tem em relação à fase cristalina? É esse tipo de pergunta que se faz nesta área.
Outro tipo de pergunta com que trabalho são materiais hidrofóbicos, acho que o exemplo mais comum que temos é a panela de teflon, quando botamos uma gota, a gota d’água parece uma bolinha. E quando pinga numa toalha de papel, a gota vai ser absorvida. Então claramente existem propriedades de hidrofobia diferentes; às vezes a superfície repele a água, às vezes ela absorve a água. E esses dois extremos, o hidrofóbico quando repele e o hidrofílico quando absorve, são extremos que gostaríamos de poder controlar. Por exemplo, vou construir uma fralda de bebê, vou querer uma superfície que absorve. Se vou constuir um vidro que vai ser usado num avião, por exemplo, para o piloto conseguir enxergar, eu não posso ter água fixada ali, a água tem que escorrer, tem que ser um vidro superlimpante, como chamamos. Controlar essas superfícies, esses intervalos, esses comportamentos, é importante. E eu estudo como posso fazer isso coordenando a rugosidade da superfície. Se ela tiver uma cara de pilares, ou se ela tiver uma rugosidade fractal… Isso tudo vai mudar essas propriedades, e tentamos controlar para conseguir coordenar esses extremos. E não apenas com água, mas também com óleo. Uma aplicação interessante que estudei recentemente com uma aluna minha de pós-doutorado é: “como podemos separar água e óleo usando essas propriedades?” Por exemplo, se tem uma superfície que não passa água, é hidrofóbica, mas passa o óleo – é oleofílica, como chamamos. Em princípio poderia ser usado para separar água e óleo no mar, ou no rio. Então estudamos que tipo de geometria maximiza essa característica, essa “peneira” de água para óleo. São tipos de coisas que faço em minha pesquisa.
O que é amorfo?
Amorfo é desordenado. É tudo que não tem ordem. Pode imaginar um cristal, por exemplo, pode imaginar um favo de mel, ou uma coisa comum no nosso dia a dia, pilhas de laranjas, quando estão bem colocadas, vai ter uma coisa ordenada, um cristal. Agora, se tem uma bagunça, é uma coisa amorfa.
Isso no nível das moléculas?
Das moléculas. Agora, essa descrição também vale, guardadas as proporções, para grãos. Se eu pegar, por exemplo, grãos de arroz e feijão, você não vai conseguir ordenar aquilo ali. Então uma pergunta que se faz em grãos é “como é o máximo de empacotamento que consigo botar um grão?”, “que tipo de ordem tem que ter para eu poder organizar aquilo ali?”. São perguntas que se fazem, que podem acontecer em diversas etapas, do nível microscópico até coisas maiores mesmo.
O que é esse artigo sobre a estabilidade do presidencialismo brasileiro?
É um trabalho que fiz com um colega meu, Daniel Gamermann, que é um cara que adora mexer em dados, vai baixando dado de tudo quanto é canto. Nós orientamos um aluno, o Frederico, nessas análises do Congresso Nacional. Baixamos todos os votos dos congressistas desde a época do Collor. O Brasil tem um Portal da Transparência muito interessante, incrivelmente fácil e transparente. Ali tu vais ter todos os deputados, votaram em qual projeto, como votaram. Na época do Lula, Lula 2 [segundo mandato, 2007-2010], que é um caso típico de um período estável, onde não houve impeachment. Quero pegar os dados e saber, através desses dados, sem olhar nenhuma informação do projeto, se consigo saber se houve um impeachment ou não. E aí olhamos para cada período – Lula 2 é um exemplo de estabilidade máxima – qual é a concordância dos votos entre dois deputados. Então se dois deputados votaram igual, é 1. Usamos uma fórmula matemática, uma coisa que a gente chama de agreement, de acordo. Se votaram totalmente diferente, é zero. Existe uma distribuição de acordo entre os deputados por período. E mostramos que, para períodos estáveis, o Congresso Nacional é super polarizado. Há um grupo super forte da base, que é grande, e um grupo bem forte da oposição. Então polarização, nesse caso, é estabilidade. E quando há um período de impeachment, que foi no Collor, na Dilma, essa polarização não existe, há na verdade uma coisa super misturada. Mostramos isso com os dados. E também mostramos matematicamente uma coisa evidente: nos períodos estáveis, a base é grande e é estável, constante ao longo do tempo. A Dilma tinha uma base grande, mas boa parte dela migrou para a oposição, e só ficaram dois partidos, que foram o PT e o PCdoB. Conseguimos mostrar, quantificar, algumas coisas que são meio óbvias, que tem esse grupo que vai partir para a oposição, mas essa questão da polarização, que muita gente fala “polarização é ruim”… Não é. Polarização no Congresso Nacional, polarização dos deputados, estabiliza um presidente. E o Bolsonaro é super estável, de acordo com nossas medidas, ele tem a cara de um governo Lula 2. Tu olhas para ele: dois picos bem polarizados no Congresso Nacional. Então, de acordo conosco, infelizmente ele não vai cair.