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Pesquisadores mapeiam áreas com potencial para futuros surtos de doenças virais

Marcos do Amaral Jorge, Jornal da Unesp

Metodologia leva em conta impacto das mudanças climáticas para identificar as regiões que abrigarão alta diversidade de espécies de morcegos hospedeiras do virus SARS-CoV

Morcegos-ferradura (Rhinolophus ferrumequinum), cuja distribuição abrange a Europa, norte da África, Ásia Central e Ásia Oriental, descansam em caverna (foto: DepositPhotos)

Um dos legados da pandemia de covid-19, no aspecto da ciência, é uma crescente preocupação de que episódios semelhantes possam se tornar mais frequentes, em parte devido ao impacto das mudanças climáticas que já se fazem sentir sobre a flora e a fauna. Estudos recentes na área da ecologia de doenças estão procurando compreender de que forma mudanças na interação entre habitats, vírus e animais podem resultar em novas e mais poderosas ameaças à saúde humana nas próximas décadas.

Um desses estudos, que envolveu a participação de pesquisadores da Universidade Estadual Paulista (Unesp), procurou identificar quais podem, no futuro, ser as áreas de concentração de 35 espécies de morcegos hospedeiros de coronavírus semelhantes ao SARS-CoV, tendo em vista as projeções climáticas estabelecidas pelo último relatório do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC). O trabalho, que contou também com a participação de pesquisadores da China, Itália e Estados Unidos, foi publicado na revista Proceedings of the Royal Society B.

Possíveis 15 mil eventos de transmissão de novos vírus

Em abril deste ano, um artigo publicado pela revista Nature aqueceu o debate sobre o tema ao estimar que, nos próximos 50 anos, as mudanças no clima e no uso da terra possam resultar em mais de 15 mil eventos de transmissão de novos vírus entre diferentes espécies de mamíferos.  Isso acontece porque, à medida que essas espécies precisam se deslocar em busca de temperaturas mais amenas ou em decorrência da perda do seu habitat, encontros inéditos com outras espécies acabam ocorrendo. Ao dividirem o mesmo espaço e interagirem entre si, as espécies de mamíferos também vão transmitir vírus e outros microrganismos umas às outras. Segundo os autores, existem atualmente cerca de 10 mil vírus com a capacidade de infectar seres humanos circulam entre mamíferos. Embora muitos desses microrganismos infectem apenas animais, e que não haja certeza de que o contágio em humanos possa necessariamente resultar em doenças, casos de transmissão zoonótica são amplamente conhecidos na história, sendo a raiva um dos exemplos mais tristemente célebres.

Diante de um cenário que se anuncia como favorável para a transmissão de vírus e para o surgimento de novas doenças para os seres humanos, são necessários estudos para estimar quais regiões do planeta são mais propícias para a “fuga” do vírus de seu hospedeiro animal para o homem, um processo que os cientistas chamam de spillover.

Morcegos respondem por 20% das espécies de mamíferos

Nos esforços para mapear o futuro das relações entre humanos e vírus, os morcegos ocupam um lugar estratégico. Suas 1.435 espécies descritas equivalem a aproximadamente 20% das 6.490 espécies de mamíferos conhecidas. Tamanha diversidade contribui para que esses animais apresentem grande diversidade viral, hospedando inclusive alguns vírus que são nocivos aos seres humanos. É o caso do sub-gênero Sarbecovirus, do qual fazem parte, por exemplo, o SARS-CoV-2, causador da covid-19, e o SARS-CoV original, que em 2003 causou o surto de SARS na Ásia.

Morcegos foram justamente o objeto dos estudos de Renata Muylaert, que é doutora em Ecologia e Biodiversidade pelo Instituto de Biociências da Unesp, câmpus de Rio Claro, e que atualmente realiza pós-doutorado na Massey University, da Nova Zelândia. Partindo de dados do presente, ela procurou identificar quais poderão ser as áreas onde futuramente o spillover entre humanos e morcegos venha a ocorrer.

Muylaert, que em sua carreira vem se aprofundando no estudo da ecologia de doenças, explica que, para construir um modelo que alcance um bom desempenho, é fundamental que ele consiga predizer onde as populações de morcegos estão hoje. “É preciso levar em conta fatores importantes como o clima ideal, a disponibilidade de habitat de floresta e a existência de cavernas ou áreas rochosas, onde muitos deles vivem”, diz ela.

Os resultados do trabalho projetaram regiões do globo que seriam consideradas hotspots [ver imagem abaixo], ou seja, que indiquem que nestas áreas há uma altíssima diversidade de morcegos que podem ser hospedeiros do vírus similar aos que causaram a pandemia de covid-19 ou o surto de SARS.

Entre os resultados, as projeções do artigo indicam Myanmar (onde estão 13 das 35 espécies avaliadas) e China, Laos, Vietnã e Tailândia (onde estão 12 espécies) como os países mais críticos para um possível futuro surto. A Europa também aparece em destaque no mapa, mas com menos espécies hospedeiras em potenciais. Além disso, a projeção para o futuro é que, com as mudanças climáticas, o número destas espécies no Velho Continente diminua ainda mais, principalmente se não houver ações preventivas voltadas para a sua preservação.

Embora a presença de hospedeiros seja um fator essencial para que uma doença de origem zoonótica surja e se espalhe, Muylaert lembra que existem outros fatores que contribuem para o risco de surgimento e transmissão de um novo patógeno. “Uma vez que o ser humano passa a transmitir para outros humanos, como o que aconteceu com a covid-19 e tantas outras doenças zoonóticas, é possível que ele se torne o hospedeiro com risco de transmissão mais elevado”, explica a ecóloga, lembrando que nem sempre os hospedeiros, ainda que naturais, têm a capacidade de manter um vírus circulando em taxas preocupantes.

Já estamos no pandemioceno?

Segundo Maurício Vancine, doutorando do Laboratório de Ecologia Espacial e Conservação (LEEC), da Unesp, no câmpus de Rio Claro, que também colaborou com o artigo, a região do sudeste asiático desperta preocupação porque, além de rica em hotspots, é densamente povoada. Laos, Vietnã, Tailândia e Myanmar somam cerca de 230 milhões de habitantes, enquanto o sul e o sudeste da China figuram entre as regiões mais populosas do país. Vancine lembra que foram registradas ocorrências históricas de gripe suína e aviária nessa parte do globo. “Locais onde se pode encontrar hospedeiros e vírus, mas com pouca população, não despertariam preocupação. Mas, se existem esses três fatores sobrepostos, aí mora um problema. Nessas regiões há uma sobreposição entre os hospedeiros, o vírus e as pessoas”, destaca.

Em uma época em que a mudança climática e a devastação de florestas devem cada vez mais estimular a migração de espécies para ambientes mais frescos e seguros, a sobreposição de espécies em um mesmo local e, por consequência, a troca de microrganismos entre elas será cada vez mais frequente. Renata Muylaert explica que alguns pesquisadores já aplicam o termo Pandemiceno para esta nossa época.

A palavra é uma referência – e de certa forma, a proposta de um capítulo posterior – ao chamado Antropoceno, uma nova era geológica caracterizada pela dimensão do impacto da atividade humana a ponto de causar alterações em escala planetária que colocam em risco a própria existência humana. “Desde que comecei minhas pesquisas na Unesp, venho utilizando o termo Antropoceno, mesmo quando ainda gerava resistências”, diz. “Agora vemos algo ainda mais alarmante: a possibilidade real de que mais pandemias venham a surgir por conta de mudanças globais por consequência de ações humanas, tanto ligadas ao clima quanto ao uso da terra.”

Com a provável emergência de doenças e viroses decorrentes de hospedeiros animais, estudos como este capazes de projetar populações de hospedeiros podem ser de grande utilidade para embasar políticas para criação de novas áreas protegidas e de conservação de habitats, de forma a manter os animais em seus ambientes naturais, e também de vigilância sanitária, permitindo a prevenção ou a resposta rápida a surtos epidêmicos, ou mesmo ações de mitigação de mudanças climáticas.

“Além disso, conforme mais dados vão sendo coletados por virologistas e biólogos em campo, podemos atualizar esses modelos facilmente, pois criamos tudo com uma filosofia de Open Data e Open Science”, diz Muylaert. A ecóloga ressalta que o Brasil é um país rico em biodiversidade e, consequentemente, em diversidade viral. E que, embora não existam morcegos hospedeiros do SARS-CoV especificamente, já foram identificados por aqui animais com outras espécies de coronavírus. “Há muitas possibilidades de aplicarmos o método do nosso artigo para o contexto e os vírus diferentes que existem no Brasil. Há muito trabalho a fazer”, afirma.

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