Segunda parte da entrevista com Mateus Borba Cardoso, chefe da Divisão de Materiais Moles e Biológicos do Sirius (confira aqui a parte 1)
O Laboratório Sirius é fruto de um projeto pioneiro da ciência nacional cuja concepção deita raízes na fase de redemocratização do Brasil, na segunda metade dos anos 1980, e inaugurado em 1997: o Laboratório Nacional de Luz Síncrotron.
O desenvolvimento do novo síncrotron, o Sirius, um dos três de quarta geração hoje existentes no mundo, permitiu não apenas, há pouco mais de um ano, a aposentadoria da fonte de luz original, o valente, mas já obsoleto UVX, que atendeu, a cada ano, cerca de 1.000 pesquisadores brasileiros e estrangeiros por mais de duas décadas, mas a entrada em cena da nova fonte de luz num momento de terrível e crucial desafio para a ciência, posto pela pandemia trágica da covid-19. E o Sirius estreia justamente voltado exclusivamente para projetos que vão investigar por dentro e por fora o Sars-CoV-2, cujas propostas já começaram a chegar, motivadas por uma chamada feita na última segunda-feira, 13 de julho.
Esta segunda parte da entrevista com Mateus Borba Cardoso, que acompanhou desde 2007 todo o desenvolvimento do Sirius e hoje é chefe da Divisão de Materiais Moles e Biológicos do Laboratório, aborda em especial as bases institucionais e o contexto internacional em que o Sirius se insere. E pode-se nela acompanhar as razões que o pesquisador oferece para que se veja neste laboratório um motivo de grande orgulho da capacidade de realizar do país. Mesmo em meio ao luto pelas mais de 75 mil vidas perdidas no país pela Covid, em quase 2 milhões de casos registrados da doença. Mesmo em meio ao negacionismo e ao obscurantismo que grassam neste Brasil de 2020 – ou apesar deles. Mateus Cardoso espera que do Sirius saiam contribuições efetivamente relevantes para o fim da pandemia e para uma visão mais positivamente realista da ciência que o Brasil faz. Confira abaixo a entrevista.
Há, certamente, uma notável evolução do primeiro anel do Laboratório Nacional de Luz Síncrtron (LNLS), que estava sendo projetado nos últimos anos da década de 1980, com apoio decisivo do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), então sob a presidência do geneticista Crodowaldo Pavan, até o Sirius. Eu gostaria que você falasse sobre isso.
A evolução é muito simples. O UVX, que é como chamamos o anel que já foi desativado, hoje é comparável a um Fusquinha 77, enquanto que o Sirius é o Jaguar, o Porsche, o carro mais potente de última geração, o mais veloz que possamos imaginar – essa é a comparação que posso fazer. Ou essa: você já deve ter brincado de focar e desfocar objetos à sua frente só com movimentos dos olhos ou já esteve no oculista olhando letras através daquele aparelho que busca o melhor arranjo para cada olho. Então, o UVX é como uma lente que não nos consegue fazer ver com clareza a informação mais fina. O Sirius, por outro lado, equivale a não só ter os óculos certos, mas também ter ganhado um binóculo que nos permite ver até o detalhe de um errinho na pintura da letra A ou as letras g e b, cheias de detalhes finos. Mas vale ressaltar que o UVX foi operado até cerca de um ano e meio atrás, e mesmo operando em condições sub ótimas, natural numa máquina considerada obsoleta por nossos pares, ainda conseguíamos tirar ótimos resultados dela. Mas o fato é que agora, com pouco tempo, já mostramos que o Sirius vai nos jogar, literalmente, para um outro patamar de ciência.
O que já lhe autoriza a prever isso?
Imaginávamos que demoraríamos meses com os testes iniciais fazendo medições na primeira linha, a Manacá, mas, para nossa surpresa, conseguimos muito rapidamente ajustar tudo, ainda em condições não tão otimizadas, e fizemos medidas muito relevantes relacionadas ao coronavírus. Esses primeiros experimentos já mostram que, mesmo sem toda a potência e a otimização que teremos, estamos conseguindo ver detalhes muito relevantes dentro de uma proteína tão importante [3CL] como é essa e são outras da covid-19.
Já existem projetos de pesquisa definidos articulados ao Sirius? Quantos? E em termos do estado da arte no mundo, que lugar o equipamento brasileiro ocupa?
Ainda não estamos recebendo usuários numa base regular, primeiro, porque o Sirius ainda não está cem por cento operacional. Neste momento, desde a segunda-feira, 13, estamos convidando a comunidade científica, ou seja, todos aqueles que têm problemas científicos relacionados à covid, a que submetam propostas para utilizar a estação Manacá. E estamos mesmo restringindo o uso, enquanto persistirem as restrições da pandemia, àqueles que podem nos dar respostas para enfrentá-la. Ainda não temos nem o síncrotron nem a máquina, o Sirius mesmo, em sua potência máxima, estamos trabalhando diariamente para que isso melhore. A linha de luz que é a estação experimental também ainda não está pronta, então, na verdade, estamos nos adiantando em função do problema sanitário e oferecendo à comunidade a possibilidade de utilizar as instalações do Sirius em condições muito boas, embora ainda não otimizadas. Quanto à sua segunda pergunta, os síncrotrons, assim como os computadores, têm várias gerações. Nosso UVX era um síncrotron de segunda geração. Houve depois uma onda de síncrotrons de terceira geração, que podiam fazer experimentos bem mais avançados do que aqueles que conseguíamos. Nos últimos anos se estabeleceu o conceito de síncrotrons de quarta geração e hoje existe apenas um síncrotron de quarta geração operando regularmente – o Max4, na Suécia. Nós estamos nessa corrida, junto com o ESRF, na França, e somos então pioneiros no desenvolvimento desse síncrotron de quarta geração. Então, é muito provável que nesses experimentos que vamos realizar nos tornemos pioneiros mundiais. É muito difícil dizer se o Sirius é pior ou melhor que o Max4, mas, como responsável por uma das divisões científicas do Sirius, posso dizer que as características que ele nos entrega são melhores. Assim, para os experimentos que pretendemos realizar, o nosso síncrotron tem características que preveem uma vantagem em relação a esse tipo.
A quem o CNPEM está hoje vinculado, a quem pertence o Sirius, dito de forma mais direta?
Somos uma Organização Social (OS), uma estrutura privada sem fins lucrativos, e somos contratados pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação para operar o campus, no qual não tem só o Sirius. Temos o LNLS, onde está o Sirius, temos o LNNano [Laboratório Nacional de Nanotecnologia], um dos maiores centros de microscopia da América Latina, temos um dos maiores e mais avançados laboratórios na busca de fármacos baseados em nossa biodiversidade, o LNBio [Laboratório Nacional de Biociências] e temos o Laboratório Nacional de Biorrenováveis, LNBR, antigo CCBR, que foi criado com o objetivo de pesquisar bioetanol, mas depois, com o tempo, essa vocação foi expandida em função das demandas e da competência que temos dentro do campus. Portanto, basicamente o ministério é nosso contratante e há uma série de indicadores que temos que cumprir, ou seja, ele nos dá uma quantidade de recursos para operarmos e, em troca, temos que atender um número x de usuários, oferecer x horas de síncrotron, x horas de microscopia para os usuários, e assim por diante. É uma operação público-privada, em que temos grandes vantagens de ser uma empresa privada, mas, por outro lado, temos várias vinculações que são públicas, portanto, na maioria das aquisições, não podemos simplesmente comprar uma coisa da nossa cabeça, temos que seguir os trâmites usuais de um órgão público. Os contratos são reavaliados de tempos em tempos com base nos indicadores e felizmente tiramos sempre as notas máximas ou quase máximas em função da excelência, nacional e internacional, no CNPEM como um todo.
Vocês têm quatro eixos ou pilares de atuação no acordo com o MCTI, é isso?
Sim, o CNPEM é avaliado, primeiro, por sua atuação como instalação aberta, ou seja, provemos à comunidade científica a possibilidade de fazer experimentos que não consegue fazer em suas instituições sede. A segunda frente de atuação está ligada a que, para se ter as estações experimentais do CNPEM rodando em suas capacidades máximas, é necessário ter um grupo próprio de cerca de uma centena de pesquisadores que fazem suas próprias pesquisas. E essa pesquisa interna muito robusta e sólida acaba beneficiando o usuário. Outro eixo é o da interação muito forte com o setor produtivo, com a indústria, dedicamos uma fração de nosso tempo de trabalho a resolver problemas em colaboração com a indústria nacional. E o último, mas não menos importante, é o da formação da comunidade científica, por meio de cursos, workshops, treinamentos e escolas.
Se pudéssemos estabelecer um valor financeiro para o Sirius, quanto você diria que ele vale?
Eu não sou a melhor pessoa para responder isso, porque acho que não tem valor que pague o Sirius. Todo o recurso que foi empenhado vai trazer muito mais em conhecimento técnico-científico e em desenvolvimento industrial, desenvolvimento pessoal, carreiras… Isso é uma coisa que a gente não consegue medir em números. Por exemplo, só o fato de podermos participar com nossa estrutura dessa corrida seleta de países que conseguem estudar o vírus em suas formas mais íntimas, para mim isso já é um valor impossível de calcular.
Mas quanto foi investido para o Sirius ser concretizado?
Pouco mais de R$ 1 bilhão [o valor total pactuado inclui três estações de pesquisa e está orçado em R$ 1,8 bilhão].
Para você, Mateus, como é ter uma estrutura de pesquisa dessa qualidade, sofisticação e enorme potencial científico num país cujo governo, hoje, mostra-se tão avesso à ciência e revela-se mesmo francamente obscurantista? Isso não configura um absurdo paradoxo?
Talvez sim, mas esse fato nos dá mais vontade e gana de trabalhar. Veio a calhar que o Sirius esteja sendo entregue agora, em meio a uma pandemia, e tenhamos a chance de mostrar a toda a população, independentemente de ser governo ou não governo, que todo o investimento feito valeu a pena. Estamos conseguindo trabalhar, nos desdobrar e entregar, cada vez mais, resultados relevantes. Acredito e espero que, muito em breve, possamos utilizar o Sirius para dar respostas relevantes e muito significativas capazes de nos ajudar a sair desse caos da pandemia em que estamos. Todo esse cenário contraditório de que você fala nos permite olhar também o copo meio cheio: no momento em que estamos sendo tão desvalorizados por um lado, temos uma ferramenta tão potente que pode nos proporcionar ir a lugares inimagináveis.
Temos realmente muita vontade e determinação para fazer com que mais resultados saiam, e saiam rápido, para que possamos contribuir de forma relevante e efetiva para o fim da pandemia. É muito importante ressaltar que o Sírius é filho do Brasil. Sua taxa de nacionalização é de cerca de 90%, sem ter tentado inventar a roda e fazer de novo coisas que há anos está sendo feita fora do país. Olhar uma estrutura científica de tamanha complexidade e poder dizer que foi quase toda produzida, desenvolvida, projetada, construída no Brasil, nos dá um certo orgulho, independentemente de qualquer situação por que tenhamos passado antes e estejamos passando agora. Porque isso realmente mostra nossa capacidade de realização e provoca reconhecimento fora – o Brasil entra no mapa como um lugar onde coisas muito boas, muito interessantes, coisas de monta, podem ser produzidas. E as empresas que no passado se uniram ao Sirius, hoje, entram num cenário de poder vender o que antes produziram aqui. Ou seja, além da produção de ciência, existem efeitos secundários tão benéficos quanto a capacitação da indústria nacional.