Ciência na rua entrevistou o chefe da Divisão de Materiais Moles e Biológicos do laboratório
Existem equipamentos de ciência de todo custo e tamanho. Há estudos científicos que nem precisam de equipamentos sofisticados, exigem só o tempo, a inteligência, a imaginação e o conhecimento acumulado do pesquisador – claro que livros e um computador plugado na rede mundial tornam as coisas infinitamente mais fáceis.
Há, no entanto, equipamentos monumentais que, de cara, sugerem fantásticas possibilidades da ciência e, até de um ponto de vista estético, são capazes de encher os olhos. Eles são extraordinários não apenas pela qualidade e quantidade do conhecimento que podem ajudar a gerar, sua primeira e indiscutível razão de ser, mas também pelo serviço que direta ou indiretamente prestam à divulgação científica, à difusão na sociedade das razões da importância fundamental da ciência na cultura humana.
O acelerador de partículas Sirius, que é, digamos para simplificar, uma espécie de supermicroscópio do novo laboratório de luz síncrotron do Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (CNPEM), é um desses grandes e atraentes equipamentos, motivo legítimo de orgulho para a inteligência e a engenharia nacionais – até porque, como se verá, é um dos pouquíssimos síncrotrons de quarta geração existentes hoje no mundo.
Assim, não era gratuito que enquanto eu planejava, antes da pandemia da covid-19, oficinas de divulgação científica com jovens estudantes de ensino médio de bairros e comunidades periféricas de São Paulo, o plano da visita ao Sirius fosse uma de suas partes mais excitantes. Antevia as meninas e meninas no ônibus que nos levaria de São Paulo a Campinas, seu imediato deslumbramento naquele ambiente, suas perguntas aos cientistas, as gravações sonoras e audiovisuais que fariam, as narrativas que, de posse desses fragmentos, construiriam para seus amigos e seguidores.
Mas um outro real planetário trazido pelo Sars-CoV-2 e seu espalhamento se impôs. O sonho das oficinas foi adiado. Esse mesmo real, trágico a ponto do insuspeitável, se impôs também para o Sirius, que antes mesmo de ser inaugurado e entrar formalmente em operação, viu-se compelido a participar com suas competências específicas do esforço mundial pelo controle da pandemia da covid-19. Na última segunda-feira, 13 de julho, o laboratório Sirius lançou uma chamada a pesquisadores do mundo inteiro para escrutinar em profundidade, com a ajuda de seu maquinário, o envelope e as entranhas do vírus que, se não paralisou, desacelerou o funcionamento do mundo e acelerou, a níveis jamais vistos, o esforço da pesquisa científica – a cada hora surgem 12 novos estudos revisado por pares sobre a covid-19, e seu estoque na base de dados Web of Science já superou os 15 mil papers em seis meses.
Enquanto isso, a entrevista de Mateus Borba Cardoso, a par de trazer esse esforço à cena, é uma forma de por os seguidores do Ciência na rua, inclusive os mais jovens, em contato indireto com o Sirius. Mateus, um gaúcho de 42 anos, bacharel e mestre em química pela Universidade Federal de Pelotas (UFPel), doutorado também em química pela Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), em co-tutela com a universidade francesa Joseph Courier, é pesquisador do Laboratório Nacional de Nanotecnologia, onde coordena a Divisão de Nanomedicina e Nanotoxicologia, é também, entre outras atividades, editor da revista Scientific Reports do grupo Nature e chefe da Divisão de Materiais Moles e Biológicos do Sirius. Foi especialmente nesta condição que ele falou ao Ciência na rua.
Confira abaixo a primeira parte de entrevista de Mateus Borba Cardoso. A segunda parte será publicada amanhã, na quinta-feira, 16 de julho.
Como você explicaria para uma garota ou um garoto do final do ensino médio o que é o Sirius?
De forma bem ilustrativa, eu lembraria que estamos acostumados a olhar por aqueles microscópios binoculares, em que você coloca os dois olhinhos e vê coisas as mais variadas. Ele tem um alcance muito baixo, consegue ver coisas geralmente muito grandes, já que sua capacidade de ampliação é muito pequena. E esse é um equipamento corriqueiro, que vemos muito nas feiras de ciências. E o que é o Sirius? É como se fosse esse microscópio, só que o maior microscópio que a gente pode ter e que enxerga, definitivamente, tudo, nos maiores detalhes, na maior riqueza que se pode imaginar. Se devo fazer uma comparação, o Sirius nada mais é que um supermicroscópio.
Quando você diz, ver nos maiores detalhes, está falando nos níveis eletrônico, atômico e molecular, certo?
Em geral, não vemos todos esses níveis simultaneamente, mas a gente consegue varrer – é assim que a técnica de sondar a matéria se chama – no nível eletrônico, atômico, molecular, estrutural… Sim, podemos ver a estrutura de células, estrutura de bactérias, podemos ver coisas maiores, poros numa rocha e por aí vai. Ele é um supermicroscópio exatamente por isso, é como se com ele conseguíssemos filtrar o que queremos ver, e nosso foco pode então se dirigir mais a um átomo ou a uma estrutura molecular, a um efeito eletrônico ou a uma estrutura de uma arquitetura como o poro de uma rocha. na verdade é a técnica que vai determinar o nível de informação que vamos obter. Não conseguimos ter ao mesmo tempo a informação atômica e a informação estrutural como um todo. Geralmente, para conseguirmos olhar a organização atômica, perdemos uma outra organização de mais alto alcance. Então, por exemplo, não conseguimos, observando uma rocha do petróleo, ver ao mesmo tempo os poros e a estrutura química da superfície que compõe esse poro. Ou olhamos uma célula, ou olhamos a proteína ou olhamos a estrutura atômica que compõe a proteína. Olhar todas as coisas ao mesmo tempo, nem a gente nem ninguém consegue fazer.
E quando você está olhando um vírus, o que está buscando ver nele?
Aí tem vários pontos. Quando olhamos um vírus, podemos estar buscando a estrutura viral, como chamamos, que é toda a carapaça viral, como em todas essas imagens “bonitas” que vemos do coronavírus, com os spikes, espécies de tentáculos. Nesse momento vemos como é formado esse vírus, como é o seu exterior. Mas por outro lado, podemos agora tentar olhar especificamente e intimamente esses spikes, e eles são críticos para todo o desenvolvimento da pandemia. Ou podemos olhar as proteínas que compõem esse vírus. Mas quando eu saio da estrutura global e dou como se fosse um zoom, não consigo mais olhar o vírus como um todo, agora estou numa estrutura atômica específica. Portanto, no caso do vírus, ou vemos uma estrutura global, o envelope, como a gente chama, ou vemos uma composição molecular do spike ou de uma estrutura interna ou do envelope viral. São essas as possibilidades de um estudo no Sirius do Sars-CoV-2. Uma outra coisa em que estamos trabalhando muito forte é para que a gente consiga fazer, pela primeira vez na história de um síncrotron, uma imagem tridimensional de uma célula de mamífero.
E por que esse feito de obter uma imagem tridimensional de uma célula de mamífero é tão importante?
Hoje, os síncrotrons existentes conseguem fazer imagens de células de animais não tão superiores. No Sirius, em função das características que temos, estamos lutando e correndo contra o tempo para fazer a imagem tridimensional de uma célula de mamífero. Com isso, a gente imagina, e deseja, conseguir fazer a localização do vírus e tentar entender como é o trânsito do vírus, por exemplo, o Sars-CoV-2, dentro de uma célula de mamífero.
Você quer ver o movimento e o comportamento do vírus dentro da célula?
São todos experimentos independentes. Se eu quiser olhar a localização específica de um vírus dentro da célula, provavelmente seremos o primeiro síncrotron do mundo a fazer isso. É localizar e entender, depois que acontece a infecção celular, para onde o vírus vai e como ele atua. Agora, se eu quero olhar a estrutura interna do vírus, preciso ir a um outro tipo de experimento onde vou conseguir sondar os átomos que estão compondo regiões desse vírus. Assim, ou olhamos o panorama das células e vírus ou olhamos a estrutura interna dos vírus.
Estamos aqui falando em que dimensões?
O vírus Sars-CoV tem 100 nanômetros. Uma célula de mamífero tem em geral, de 1.500 a 2 mil nanômetros, ou seja, de 15 a 20 micrômetros. Mas, voltando, se queremos olhar a estrutura interna do vírus, os seus componentes químicos, na maioria das vezes precisamos cristalizar as moléculas e fazer o experimento que foi relatado no sábado passado (11/7), em que estamos estudando uma fraçãozinha do vírus, uma região ativa chamada de alvo para que possamos fazer desenvolvimento de fármacos. [A amostra analisada nesses primeiros experimentos no Sirius foi a proteína 3CL do vírus, produzida e cristalizada no Laboratório Nacional de Biocências (LNBio) do CNPEM. Ela participa do processo de replicação do Sars-Cov-2 dentro do organismo durante a infecção].
Eu gostaria que você descrevesse, sempre imaginando que fala para uma moça ou um rapaz de 16 anos, a tremenda infraestrutura que é necessária para que se faça tudo isso que você está explicando, e que fez a reportagem da TV Globo chamar o Sirius de “o Maracanã da ciência brasileira”.
Pois é, ele é um Maracanã, tem a dimensão de um estádio de futebol. É contraditório, comecei falando de um microscópio binocular, que consegue ver coisas grandes, e, por outro lado, o Sirius é o oposto, algo do tamanho de um estádio de futebol, todo ele alinhado em micrômetros. As tubulações onde viajam os elétrons para a produção da radiação são ajustadas numa precisão em termos de micrômetros, algo na dimensão do diâmetro de um fio de cabelo, e por causa dessa combinação de energia, distância, potência, é que a gente acaba tendo uma radiação tão eficaz e tão potente que nos permite estudar desde a estrutura eletrônica de alguma coisa até a arquitetura de uma rocha do pré-sal. Então essa radiação produzida pelos elétrons que viajam dentro dessas tubulações é tão potente e tão manipulável que conseguimos o ajuste e a precisão para varrer essas diferentes coisas que queremos ver.
Falamos de radiação produzida pelo movimento dos elétrons em tubulações. Mas vamos tentar tornar mais claro, para nossa ou nosso hipotético jovem, o conceito de radiação síncrotron ou a noção de uma determinada fonte de luz de que aqui estamos tratando.
Fazendo uma analogia ou uma aproximação muito grosseira, é como se tivéssemos uma lâmpada incandescente na qual a jogamos uma diferença de potencial; essa diferença gera elétrons, e esses elétrons, então, são captados e são acelerados dentro de uma câmara e vão para um primeiro anel de armazenamento. Transitam aí por algum tempo e vão para o segundo anel de armazenamento, onde vão gerar a radiação para as estações experimentais. O que você diz é verdade: temos uma produção da luz, acompanhada por uma aceleração, que se passa numa estrutura que não está separada, está junto do anel de produção da radiação síncrotron. E, uma vez que esses elétrons estão dentro dessa tubulação, eles ficam viajando a uma velocidade próxima da velocidade da luz e, ao viajar nessa velocidade, quando eles são defletidos, ou seja, quando eles mudam de direção, geram um leque de radiação. Essa radiação, por ter elétrons viajando a tal velocidade e de forma tão combinada, tão coerente, geram o que chamamos de radiação síncrotron. É ela que é utilizada de diferentes formas para fazer diferentes experimentos.