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O “sinistro sistema da escravidão” e suas conexões com o racismo no Brasil de hoje

Murillo Guerra, Edgardigital*

O historiador João José Reis, professor da FFCH/UFBA, no colóquio “Escravidão e Resistência, Abolição e Cidadania nas Américas”, evento que integrou a programação do Congresso

Entre os dias 29 e 31 de outubro, a Universidade Federal da Bahia (UFBA) realizou seu quarto congresso anual. O evento passou a ser realizado em 2016 e entrou para o calendário oficial. Nesta edição, temáticas relacionadas às questões raciais e à população negra no Brasil foram amplamente debatidas. No colóquio “Escravidão e Resistência, Abolição e Cidadania nas Américas”, evento que integrou a programação do Congresso, o historiador João José Reis, professor da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFBA, traçou um panorama do período escravocrata no Brasil e apresentou os quantitativos – constrangedores – de seres humanos escravizados que foram traficados da África para as Américas.

“O Brasil foi o país que mais trouxe pessoas escravizadas. Dos 8 milhões de escravos que vieram para as Américas, quase 3,2 milhões vieram para o Brasil”, afirmou o professor, que lembrou ainda as mais de 1 milhão de pessoas mortas na travessia do Oceano Atlântico.

A maior parte da mão de obra escrava chegou ao país na primeira metade do século XIX, para trabalhar, inicialmente, nas lavouras de cana de açúcar e, a partir da década de 1830, nas lavouras de café, conforme destacou professor. O tráfico para a Bahia teve origem majoritariamente a partir da Nigéria, Benin e Togo. Em 1826, o Brasil celebrou acordo com a Inglaterra para pôr fim a escravidão no país.

“Como isso, os traficantes acharam que seus dias de pilhagem estavam contados. Então, houve uma corrida em todo o Brasil para importar mais escravos”, disse o professor, apontando o crescimento dos números de pessoas escravizadas trazidas da África, que saltou de 57.752 em 1826 para 71.733 em 1829 – o que representa um aumento de 42,4%, conforme aponta a base de dados “The Trans-Atlantic Slave Database”.

Na abertura do colóquio, realizada no dia 29/10, no auditório do Instituto de Biologia, João Reis abordou as alforrias e as formas de resistência para os seres humanos escravizados alcançarem a sua liberdade. As alforrias, segundo ele, podiam ser gratuitas ou onerosas, embora a conquista da liberdade demandasse sempre estratégias diversas de resistência por parte dos escravizados. As alforrias podiam ser compradas com moeda corrente, ouro ou pedras preciosas, entre outras possibilidades. Já no caso específico de alforria por substituição, um escravo precisava colocar outro em seu lugar para conseguir a sua liberdade.

“Isso demonstra o quão sinistro foi o sistema (de escravidão)”, disse o professor, que considera que a disseminação do modelo escravagista desenvolvido no Brasil tem relações com o racismo institucional que perdura até os dias atuais, com reflexos nas políticas públicas, no encarceramento em massa e no genocídio da população negra.

Seletividade dos corpos encarcerados

O tratamento jurídico do negro e a seletividade dos corpos encarcerados no Brasil fomentou reflexões em mesa de debate com a participação de estudantes da Pós-graduação em Direito, no segundo dia do Congresso, 30 de outubro, no auditório da unidade. Foram apresentados os números do Levantamento Nacional de Informações Penitenciária (Infopen), que apontam quase 800 mil pessoas presas no Brasil, das quais mais de 60% se declaram negras.

Conforme foi destacado, logo após a abolição da escravidão, criou-se um código penal, em 1890, como método de manter o controle social das pessoas até então escravizadas. Um de seus artigos criminalizava a vadiagem, sujeitando à prisão quem estava pela rua, sem emprego e renda. Esse encarceramento se daria não apenas nas prisões, mas também em espaços específicos das cidades, como guetos, reservados para essas populações.

“Pensar em direito negro é pensar a liberdade, que é algo que gente ainda não conseguiu fazer”, afirmou o estudante João Oliveira, que citou um trecho do poema “Quebranto”, do paulista Cuti, publicada nos Cadernos Negros, que diz: “às vezes sou o zelador / não me deixando entrar / em mim mesmo / a não ser / pela porta de serviço”.

O doutorando Caio Vinícius dos Santos refutou a interpretação do direito penal enquanto construção científica imparcial, que pretende dar tratamento isonômico aos indivíduos. Assim, o juiz, segundo Santos “vê apenas a norma e finge que não vê a pessoa, jogando para debaixo do tapete diversas complexidades sociais, inclusive a condição de ser negro na sociedade brasileira”. Para ele, a produção da lei penal não é neutra, e o legislador tem sempre interesses e pretende alcançar grupos específicos. No seu entendimento, a justiça precisa levar em conta os indivíduos em seus contextos, não apenas os “tipos penais”. O estudante criticou ainda as prisões preventivas baseadas apenas em relatos policiais e as abordagens policiais que selecionam indivíduos de acordo com um figurino social e elegem o criminoso típico, em ações marcadas pelo racismo institucionalizado.

A pós-graduanda Camila Garcez lembrou dos muitos casos de vítimas de violência policial, citando a menina Ágatha Felix, de 8 anos, morta em decorrência de ação policial no Rio de Janeiro, no último mês de setembro, e Beatriz Pereira, jovem de 21 anos morta dentro de sua casa, em uma ação policial do Conjunto Bosque das Bromélias, em Salvador, no dia 28 de outubro. Ela comentou o levantamento do Infopen Mulher, que revela que a maioria das mulheres presas são rés primárias e respondem por tráfico de drogas. Na sua interpretação, esses dados precisam ser levados em conta nas políticas de desencarceramento. A estudante falou ainda sobre abandono afetivo das mulheres no cárcere e situações constrangedoras, como o uso de algemas durante o parto e a revista de mulheres visitantes nas unidades prisionais.

Raça, gênero e classe: questões entrelaçadas

Coletivo de Mulheres do Lemarx compartilhou leituras do livro “A liberdade é uma luta constante”, da ativista feminista, antirracista e anticapitalista Angela Davis

As mulheres do coletivo Angela Davis, do Laboratório de Estudos e Pesquisas Marxistas (Lemarx), da Faculdade de Educação, compartilharam leituras do livro “A liberdade é uma luta constante”, na mesa realizada no dia 30, no PAF I, campus de Ondina. A obra reúne discursos e entrevistas realizadas entre os anos de 2013 e 2015 pela ativista feminista, antirracista e anticapitalista Angela Davis. O livro foi lançado no Brasil em 2018, pela editora Boitempo. Participaram dos debates Sandra Siqueira, Maria Almeida, Cecília Silva, Rosângela Santana e Izaura Furtado.

Foram destacadas durante o encontro a atuação militante de Angela Davis junto aos Panteras Negras e sua filiação ao Partido Comunista dos Estados Unidos. Presa nos anos 1970, Davis dedicou-se a provar a sua inocência e passou a tratar da questão do encarceramento em massa após deixar a prisão. A violência policial relatada por Davis em seus discursos, com referência a casos em seu pais, foi comparada com a realidade brasileira, também marcada por encarceramento em massa, violência do Estado e banalização da morte de pessoas negras.

Aparece nessa leitura da obra de Davis a ideia de que as questões de raça, gênero e classe estão entrelaçadas. Conforme foi destacado durante o encontro, a autora acredita que o feminismo deve assumir pautas globais e incorporar a luta anticapitalista, dos direitos LGBT e dos movimentos de resistência internacionais. O enfrentamento do racismo nos Estados Unidos, por exemplo, está conectado com a luta da Palestina contra a ocupação de seus territórios pelo Estado de Israel.

A importância dos discursos de Davis foi ressaltada diante do momento atual de ascensão do capitalismo global e de valores neoliberais, como o individualismo, a exploração da classe trabalhadora e o aumento da pobreza e do desespero no mundo. Foi ressaltado seu posicionamento em defesa da solidariedade e da organização coletiva dos explorados e oprimidos, como forma de aglutinar forças e resistir frente a um sistema que nasce da violência racista e colonial e é incompatível com a democracia e a paz.

Formas de Resistência

O fim da escravidão não veio acompanhado da garantia de direitos fundamentais para a população negra, que continuou segregada e marginalizada. Com a abolição e a revolução industrial, a mão de obra escrava deu lugar à mão de obra operária nas fábricas. Uma das formas de resistência nesse novo contexto social passou a ser a organização dos trabalhadores em associações, sindicatos e partidos políticos. Essas organizações operárias procuravam garantir direitos fundamentais dos trabalhadores como auxilio doença e o amparo aos órfãos, entre outros.

Dentro da programação do Colóquio “Escravidão e Resistência, Abolição e Cidadania nas Américas”, o professor Marcus Vinícius Rosa, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, tratou da questão da visibilidade racial e a cidadania negra no Brasil Meridional, mas especificamente no Rio Grande do Sul, no encontro que aconteceu no dia 31, no Instituto de Biologia. Ele apresentou uma análise comparativa entre a situação dos negros libertos e a dos trabalhadores imigrantes da Europa na região, nas primeiras décadas do século XIX.

De acordo com o professor, o estudo deixa claro que a discriminação racial continuou sempre a operar para negar às populações negras direitos fundamentais, como os que eram concedidos, por exemplo, aos imigrantes europeus. “A mobilidade social de imigrantes europeus foi muito mais ampla. O mesmo não ocorreu com negros libertos, que sempre foram relegados a posições subalternas”, disse.

Conforme destacou o professor, o acesso a propriedade de terra foi uma das muitas formas de negar direitos aos negros, que também foram proibidos de estudar em escolas públicas, conforme documento apresentado por ele contendo o texto da lei provincial datada de 22 de dezembro de 1837.

“A cor não se apaga com a abolição da escravidão”, disse Marcus Rosa, que constata em seus estudos a tentativa de invisibilizar a história da população negra e o incentivo a um projeto de branqueamento nacional. Para conseguir mais informações e resgatar histórias, foi preciso muitas vezes recorrer a pesquisas em processos judiciais, inquéritos policiais e crônicas, conforme explicou.

Segundo Rosa, a população negra reagiu à invisibilidade e à negação de direitos através de organizações coletivas e da produção de jornais, onde se podia criticar os costumes herdados da escravidão e propor uma espécie de ressignificação política do vocabulário racial. A organização em agremiações diversas também foi uma forma de assegurar direitos fundamentais aos trabalhadores associados.

Muitas outras atividades do Congresso 2019 tiveram foco nas formas de resistência da população negra, caso das mesas que tiveram como temas: “Quilombos na Bahia: rupturas, tensões e liberdades”, “Do quilombo da mata ao quilombo urbano”, “Ações extensionistas em saúde com jovens quilombolas”, “A percepção da criança quilombola sobre o cuidado recebido”, “Cor e pele, apagamento e resistência no processo criativo”, “Resistência não violenta do pastor Martin Luther King”, “Ações Afirmativas e docência nas instituições de ensino superior” e “Racismo antinegro e reordenamento sócio-espacial em Salvador Bahia: a resistência do povo negro no Pelourinho – Centro histórico de Salvador”.

 

*Edição para o Ciência na rua: Tiago Marconi

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