jornalismo, ciência, juventude e humor
O futuro como passado – e vice-versa

Daniel Merli
Foto da home: Carolina Antunes/PR

Webinar tratou da ascensão dos “novos jagunços” e destacou a importância do debate aberto sobre temas espinhosos para políticos

https://youtu.be/FbK88DHZzh4

O webinar “Os novos jagunços e o ideal da pátria cristã”, realizado na quinta-feira, 30 de setembro, pelo Ciência na Rua trouxe instigantes análises sobre o atual momento político vivido pelo país e suas raízes éticas, estéticas, culturais e religiosas, aprofundadas nas duas últimas décadas. O debate transitou entre as propostas do etnógrafo Gabriel Feltran, professor da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), para uma nova compreensão do bolsonarismo no Brasil  e as vigorosas interpretações da socióloga Christina Vital, da Universidade Federal Fluminense (UFF), a respeito das relações perigosamente próximas entre religiões pentencostalistas e criminalidade no Rio de Janeiro, que ela vem estudando desde os anos 1990.

As ideias de Feltran foram expostas inicialmente no  seu texto já famoso “Formas elementares da vida política: sobre o movimento totalitário no Brasil (2013- )”, publicado no ano passado pela revista Novos Estudos, do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), enquanto estudos de Vital estão apresentados tanto no livro Oração de traficante: uma etnografia (2015), de sua autoria, quanto em Religião e política: uma análise da atuação de parlamentares evangélicos sobre direitos das mulheres e de LGBTs no Brasil (2013), do qual é co-autora. A moderação do debate esteve a cargo da jornalista Mariluce Moura, diretora-presidente do Instituto Ciência na Rua, e do jornalista Lucas Veloso, da TV Cultura e do Expresso na periferia, do Estadão.

“Formas Elementares da Vida Política” é um “texto de intervenção”, na definição de Gabriel Feltran durante o webinar. “O argumento principal desse texto é muito simples: tudo aquilo que víamos na periferia 20 anos atrás, como o forte autoritarismo policial, muita monetarização das relações sociais, muita violência ligada aos mercados ilegais e privação muito forte dos direitos fundamentais – à vida, à moradia -“, torna-se a ponta de lança do centro da política nacional, disse ele. Ou ainda, “tudo aquilo que imaginávamos que a democracia viria a superar, o que era periférico, que parecia ser o atraso”, afirma-se como presente e futuro. Diante desse cenário e na batalha para derrotá-lo, cabe em especial aos intelectuais, “que não dependem de votos como os políticos”, provocar sem descanso o debate aberto dos temas centrais em disputa na sociedade.

Feltran entende que as formas de “exercer o poder baseado na força das armas e no poder do dinheiro que corrompe qualquer moderação”, que pareciam subprodutos de um período autoritário e que desapareceriam naturalmente com o exercício da democracia, de repente migraram para o “centro da cena política com a ascensão ao poder” do presidente Jair Bolsonaro. “Aquilo que a gente imaginava como passado, virou o futuro. E aquilo que a gente imaginava como o futuro é visto como passado”, observou. “Essa utopia da redemocratização, que deveria ser o que deveríamos alcançar, passou a ser o que devemos superar, como sinônimos de atraso”, completou.

Christina Vital, em sua fala, depois de mostrar como evoluiu a partir dos anos 1990 a força das igrejas evangélicas nas periferias do Rio de Janeiro, apoiada em mídias, e opondo-se, com a teologia da prosperidade, ao mesmo tempo ao conceito de justiça social longamente trabalhado pela igreja católica da Teologia da libertação e às visões de comunidade das religiões de matriz africana, lembrou do conceito de “retrotopia”, trazido no livro de Zygmunt Baumann publicado poucos meses após sua morte, em 2017. Ali o sociólogo polonês sustenta que, diante das inseguranças provocadas pela modernidade líquida, muitas pessoas estariam abandonando os esforços de construção de um futuro melhor para se apoiar no saudosismo de um passado idealizado. Na visão de Vital, essa retrotopia aparece na “retórica da perda” de muitas lideranças políticas do bolsonarismo, apontando a um passado de pureza moral que deveria ser resgatado.

Novo ideal

Em vez de um Brasil repleto de direitos para os diferentes agrupamentos sociais, adequados às suas necessidades específicas, a utopia nacional passou a ser a construção de uma “pátria cristã”, disse Feltran. “Uma pátria baseada no empreendedorismo individual, numa crença moral de que o bem vencerá o mal e numa sociedade fraturada entre o cidadão de bem e os que ameaçam a sociedade”. A chave em cena deixou de ser a de construção democrática de uma sociedade mais justa e, em seu lugar, emergiu uma “chave de guerra”, em que há o inimigo que deve ser vencido.

Christina Vital, concordando, deteve-se também na mudança cultural na periferia que criou ambiente propício à difusão desse pensamento. No século passado, “Pierre Sanchis falava dessa cultura popular urbana, que era marcada majoritariamente por um catolicismo popular ,mas que tinha uma porosidade dessas identidades”. Essa realidade começou a mudar na década de 1990 e transformou-se totalmente na virada do século, e sua pesquisa enfatiza em termos empíricos esse percurso. Ao mapear a abertura de templos na cidade do Rio de Janeiro, por exemplo, ela constatou que 88% dos que foram inaugurados entre 2006 e 2016 eram evangélicos. “O crescimento de determinadas estéticas e gramáticas na periferia produziu a sensibilização a determinadas narrativas dessas novas lideranças mandonistas e autoritárias”, disse. “A difusão cultural tem uma marca muito importante do pentecostalismo, na reprodução do mandonismo, dando um suporte moral e emocional para isso”, acrescentou.

Novos Jagunços

A batalha de construção dessa “pátria cristã” que resgataria uma pureza perdida no passado é feita pelos “novos jagunços” na proposição de Feltran, tomando de empréstimo uma expressão atualizada pelo jornalista e escritor Antonio Prata.Trata-se de uma camada social intermediária, entre a periferia e a elite, que sempre prestou serviços para a implantação do status quo e que começou mais recentemente a disputar protagonismo político também. “É quem faz o serviço sujo para a elite, sujando as mãos para construir em geral uma ordem favorável à elite”, definiu. “Esse grupo, chamado metaforicamente de jagunços, vai se constituir como sujeito político autônomo no projeto bolsonarista”. São policiais, seguranças autônomos que, em seu olhar, têm um projeto próprio de melhoria de vida, o que se expressa na crescente presença de policiais ocupando os espaços de poder na gestão pública e política. “Quem pensa nas polícias como atores de Estado subordinados aos governos não entendeu que eles viraram atores políticos”, observou.

E na simbiose entre o militarismo e o neopentecostalismo, o discurso de evangelização vai imitando cada vez mais a narrativa bélica. “Vira uma guerra dos bons contra os maus, daqueles que merecem viver porque são homens honrados de bem e aqueles que merecem morrer porque atrapalham seu processo de acumulação”.

O jornalista Lucas Veloso, morador de Guaianazes, extremo da Zona Leste de São Paulo, comentou que as falas dos dois pesquisadores eram coerentes com a vivência dele na periferia, citando sua experiência pessoal com os conselhos tutelares. “Até alguns anos atrás, os conselheiros eram figuras mais ligadas à esquerda, progressistas, lembro da minha mãe, que sempre que precisava de alguma coisa tinha, esses conselheiros na igreja para orientá-la”, relatou. Com o passar do tempo, ele foi vendo como os evangélicos foram ocupando esses espaços, que se tornaram mais e mais conservadores.

Nesse cenário, o papel dos intelectuais deve ser fazer o debate político, defendeu Feltran. “Temos um dever social de debater temas que os políticos muitas vezes não podem debater pois senão perdem voto”. Um dos temas que devem ser foco de debate é a segurança pública, defende o sociólogo. “Houve 13 anos de governos federais de esquerda com uma política de segurança de direita”. Segundo ele, a esquerda tinha a visão a ideia de que a segurança era simplesmente uma questão social, e uma vez que se reduzisse a desigualdade, a violência acabaria. Assim, uma questão fundamental ficou nas mãos das polícias, e governos de esquerda sequer souberam o  que fazer nesse quesito porque a esquerda nunca havia debatido a sério política de segurança. Não poderá ser assim quando se puder de novo estruturar uma democracia e construir futuros.

Compartilhe:

Acompanhe nas redes

ASSINE NOSSO BOLETIM

publicidade