Ao longo da história, conhecimento e imaginação sobre o planeta se influenciaram mutuamente
No fim da tarde da quinta-feira, 18 de fevereiro, para quem acompanhou no horário de Brasília, o Perseverance pousou com segurança no solo árido de Marte, para júbilo dos cientistas na sala de operações da Nasa, indiferença de alguns e um misto de espanto e emoção para outros. Não chega a ser uma novidade, é o quinto jipinho robótico que os americanos fazem chegar ao solo marciano, além de algumas sondas e afins. Os soviéticos conseguiram um pouso em Vênus há mais de 50 anos (derreteu em minutos devido ao clima, não sem antes enviar essas imagens e sons impressionantes). Mas não deixa de ser um feito de extrema precisão, que vai permitir aumentar consideravelmente nosso conhecimento sobre o Planeta Vermelho.
Se pousar em Marte não é novidade, os equipamentos que integram o robô são impressionantes e muito mais avançados do que os do antecessor, o Curiosity, conforme contamos brevemente aqui. O Perseverance vai não só perfurar como analisar ali mesmo as amostras de solo. Conforme suas pesquisas avancem, poderemos enfim saber, entre outras coisas, se houve ou há vida em Marte.
Momentos como esse do pouso, seguido das primeiras imagens enviadas de tão longe, são comoventes e nos fazem prestar atenção novamente nesse planeta vizinho. Mas nosso interesse por Marte é antigo e de tempos em tempos se renova, em uma relação riquíssima entre o conhecimento e a imaginação. Para entender um pouco mais sobre essa longa relação, o Ciência na rua conversou por e-mail com Howard V. Hendrix, professor de literatura aposentado da Universidade da Califórnia em Fresno, nos Estados Unidos, um dos editores do livro Visions of Mars: Essays on the Red Planet in Fiction and Science (McFarland, 2011, não publicado em português) – Visões de Marte: Ensaios sobre o Planeta Vermelho e a Ciência, em tradução livre –, que reúne textos de diferentes autores sobre o planeta ao longo da história da ficção científica. O título do livro explora, justamente, os diferentes significados de “visão”, tanto como aquilo que é visto quanto como aquilo que é sonhado, imaginado.
De acordo com Hendrix, a evidência forte mais antiga do interesse humano por Marte é de 5 mil anos atrás, em descrições egípcias que o chamam de “o vermelho”. A cor, inclusive, parece ter determinado sua associação a deuses da guerra e, consequentemente, o nome pelo qual o chamamos, afinal Marte era o deus da guerra para os antigos romanos. A associação, porém, não se restringe a essa cultura, pelo menos os gregos e babilônios também associavam o planeta a Ares e Nergal, respectivamente. Assim como eu, o pesquisador desconfia que a cor não explique a história toda dessa associação, mas “é o que pensamos até aqui”, argumenta.
Sobre nosso interesse por Marte ser maior do que pelos outros planetas, Hendrix conta que, em parte, isso se deve ao avanço tecnológico que, no século XIX, tornou os telescópios poderosos o suficiente para vermos detalhes em sua superfície, ainda que sem grande nitidez. “Embora Vênus tenha um tamanho mais próximo ao da Terra e seja mais perto, é um mundo escurecido por nuvens, e não havia muitos detalhes visíveis na superfície com a tecnologia do fim do século XIX. O mesmo vale para gigantes gasosos como Júpiter e Saturno”. Mais adiante, descobriríamos ainda a atmosfera espessa e o calor impiedoso de Vênus, relegando-o a vizinho secundário na nossa imaginação.
Curiosidade: enquanto a atmosfera de Marte é muito fina e muito fria, e a de Vênus muito espessa e muito quente, a da Terra tem um equilíbrio que permite a existência de vida. Daí essa região habitável em torno do Sol (mas vale para outras estrelas) ser conhecida como Zona Cachinhos Dourados, sendo nossos vizinhos os mingaus rejeitados pela personagem do conto de fadas.
Ainda segundo o pesquisador, uma confusão de tradução naquele fim de século XIX impulsionou o fascínio por Marte – ao menos no mundo anglófono, acrescentamos nós. O astrônomo italiano Giovanni Schiaparelli, com seu telescópio, viu o que chamou de canais (canali). Astrônomos anglófonos como Percival Lowell traduziram o termo canali por canals em vez de channels. No inglês, canals são construídos – como os canais de Amsterdã –, enquanto channels são naturais, como o Canal da Mancha. Por isso muita gente teria começado a pensar que Marte seria habitada por criaturas capazes de construir coisas. Essa ideia ganhou muita força como livro A Guerra dos Mundos, do inglês H.G. Wells, publicado de forma seriada em 1897 e como romance em 1898.
No livro, marcianos em busca de recursos naturais invadem o sul da Inglaterra. São grandes, violentos, de aspecto estranho e têm armas poderosas. Com o grande sucesso do livro, iniciava-se a era de fantasias sobre Marte. Reza a lenda que uma adaptação do livro para o rádio, dirigida e narrada em 1938 por Orson Welles, nos Estados Unidos, disseminou pânico entre os ouvintes, que não sabiam que se tratava de ficção.
Do finzinho do século XIX para este início, já nem tão início, de século XXI, como sabemos, a tecnologia avançou alucinadamente (por exemplo, dá para acompanhar o que está rolando em volta de Marte agora). E conforme fomos sabendo mais sobre Marte, nossa imaginação e nossa fantasia foram se adaptando. Nos tempos de Schiaparelli e Lowell, forjou-se a ideia de um planeta decadente, que estava secando, morrendo. “Essa imagem persiste em Edgar Rice Burroughs, dúzias de escritores pulp e mesmo nas Crônicas Marcianas de Ray Badbury (que insiste nos anos 1950 com essa imagem antiga de Marte, já rejeitada pela comunidade científica)”, explica Hendrix.
Com as missões Mariner (que durou da 1964 a 1967) e Viking (de 1975 a 1983), a imagem de planeta moribundo deu lugar à de um planeta morto, que influenciou a trilogia de Marte, de Kim Stanley Robinson, que por sua vez influenciou muitos outros livros de ficção científica. “O que temos agora é a ideia de Marte ‘fóssil’ (ou mesmo um ‘fóssil vivo’) e ênfase em possíveis evidências de vida microbiana antiga – ou talvez micróbios extremófilos que ainda vivam. Sem marcianos construindo canais ou cidades, porém”, pondera o pesquisador.
Na introdução e em um artigo de Visions of Mars, Hendrix propõe a ideia dos marcianos como espelhos dos terráqueos, mais precisamente aqueles espelhos distorcidos de parques de diversão. Na visão do planeta moribundo, os marcianos podem ser projeção de nossa espécie sujeita à extinção, por exemplo, com uma abordagem nostálgica como a das Crônicas Marcianas, ou como colonialistas violentos em A guerra dos mundos.
O estabelecimento de bases humanas e a colonização de Marte, assunto que também ressurge de vez em quando – atualmente tendo como expoente o bilionário sul-africano Elon Musk e, como pano de fundo, o estrago que estamos fazendo no precioso planeta que nos abriga – estavam presentes em alguns livros do cânone da literatura de ficção científica, contou Hendrix, destacando e indicando a leitura das Crônicas Marcianas, Nós, os Marcianos, de Isaac Asimov, Prelude to Space, de Arthur C. Clarke (edição que contém Prelúdio para o Espaço e As areias de Marte), O Planeta Vermelho e Um estranho numa terra estranha, de Robert Heinlein. Desses todos, em uma busca rápida, parecem ter edições em catálogo em português apenas o primeiro e último.
Além do que já publicou – romances, contos, poesia e livros teóricos – Hendrix tem o projeto de uma Enciclopédia de Marte, que no momento está suspenso pela dificuldade em encontrar cientistas espaciais (astrônomos, astrofísicos, astrobiólogos etc) dispostos a escrever verbetes. Por ora, conta com críticos literários e cinematográficos, historiadores da ciência e afins.
Casa de uma civilização decadente, bola de areia e pedra sem nenhuma vida, habitat de organismos extremófilos, fonte de ameaça de invasão à Terra, refúgio interplanetário para a humanidade após a hecatombe nuclear ou climática… São muitas as visões de Marte. Daqui da Terra, agora, esperamos ansiosos informações do jipinho da Nasa.