Era angustiante, na segunda-feira, 23, uma visão mais de perto de Paraisópolis (pela tela da televisão, no SP1, da Globo), uma das maiores favelas de São Paulo, com seus 100 mil habitantes. Nas ruas, movimento normal, muita gente, como se a vida seguisse igual, nenhuma mudança em cena, rotina de sempre ressaltada por um morador entrevistado. Em uma delas, a feira livre, muitas bancas, belos legumes e frutas, e feirantes, mulheres e homens, respondendo, às vezes, que se protegiam com álcool em gel, outra parte, que não faziam nada para se prevenir.
Numa pequena casa precária de dois andares, tijolo aparente, colada a outras, e tantas, numa viela cuja largura não alcança dois metros, Marcos (não foi dito o sobrenome), máscara cirúrgica simples deslocada para, da laje mesmo, poder falar melhor ao repórter na rua, responde que naquela aparente construção única, que na verdade envolve três casas, moram 20 pessoas. Está com a máscara porque tem sintomas de gripe ou covid-19, não sabe. Atende ao pedido do repórter para fazer com seu celular um vídeo do interior da morada densamente povoada, como, de resto, a favela inteira.
Os apertados cômodos sem janela vão se sucedendo nas imagens verticais capturadas pelo jovem, do alto até o piso mais baixo, passando pela escada estreita, sufocante, pela modestíssima cozinha até onde ele sempre desce para comer, por uma pia, cuja torneira, ele mostra, não faz jorrar gota d’água, pela sala do térreo onde estão no momento o avô e a avó, idosos que ele chama de pai e mãe, com quatro crianças assistindo à televisão. São todos parentes, primos e irmãos.
Práticas de distanciamento social para fazer contenção do coronavírus nesses ambientes asfixiantes das periferias das grandes cidades brasileiras, com precariedades de toda ordem? “Não existem, o distanciamento nesse caso é impossível”, disse o epidemiologista Eduardo Massad em entrevista ao Ciência na rua na sexta-feira, 20 de março. “As medidas de contenção da epidemia nessas chamadas aglomerações subnormais têm que ser de outra ordem”, observou o biólogo Marcos Buckeridge, coordenador do programa USP-Cidades Globais, que na quinta-feira, 12 de março coordenava uma reunião de pesquisadores de várias áreas do conhecimento, ainda presencial, no Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (IEA-USP), para debater dados científicos e contribuições possíveis e urgentes das instituições científicas ao controle da pandemia no Brasil.
“Não tem essa possibilidade de distanciamento nem de isolamento numa realidade em que é normal, é usual, 10 pessoas morando em uma casa de dois cômodos”, disse também na sexta-feira, 20, Vagner de Alencar, 32 anos, diretor de jornalismo da Agência Mural. Ombro a ombro com o diretor de negócios Anderson Meneses, 29 anos, e mais Izabela Moi, diretora executiva, os três fundadores da agência em 2010, ele lidera um notável trabalho jornalístico com 80 correspondentes nas periferias na Grande São Paulo para oferecer à sociedade e aos poderes públicos um retrato realista, rico e multifacetado dessas áreas e seus moradores.
As medidas de mitigação da epidemia têm que ser outras e rápidas, Vagner observa. O grande medo que assola nesse momento líderes comunitários é de que, “se o número de casos começar realmente a explodir nas favelas, as periferias sejam blindadas”, numa espécie de implantação perversa de um cordão sanitário pelo poder público. Na real, reflete ele, a fronteira já existe, mas pode ficar muito maior e sua existência mais escancarada.
Renda garantida e testes em massa
Se o distanciamento social pura e simplesmente não funciona, é preciso explicitar o que há, de fato, a ser feito, mesmo com os gigantescos limites de conhecimento até aqui sobre o Sars-CoV-2, para que as favelas e periferias em geral das cidades brasileiras – e de São Paulo em particular, onde está o epicentro da face brasileira da pandemia e que tem cerca de quase 4 milhões de seus 13 milhões de habitantes em áreas vulneráveis – não se tornem vítimas, muito além do que inevitavelmente serão, da doença que hoje assombra o mundo.
Governo, em suas vertentes municipal, estadual e federal, instituições de pesquisa e organizações das comunidades, por difícil que pareça o diálogo, “têm que trabalhar conjuntamente, numa espécie de ação tripartite”, observa Buckeridge, para obter resultados positivos no esforço monumental para (1) reduzir a velocidade da contaminação – o que se tem chamado achatar a curva de progressão da epidemia –, (2) dessa forma, impedir o colapso do sistema de saúde, (3) deter o quanto possível as mortes projetadas pela covid-19 e (4) assegurar, em especial, a sobrevivência material da população de baixa renda.
Exatamente renda assegurada, a propósito, é uma das providências fundamentais que na visão tanto de economistas e pesquisadores quanto de líderes comunitários cabe, neste momento, ao governo federal, para que o país possa lidar com a pandemia nas periferias.
Ainda na segunda-feira, 23, o economista Armínio Fraga, ex-presidente do Banco Central (1999-2003) no segundo governo Fernando Henrique Cardoso, defendia no programa Roda Viva, da TV Cultura, a extensão do bolsa família para 100 milhões de brasileiros, e cobrava uma ação muito rápida neste sentido, dado que o cadastro único e outras bases permitem que seja feito. Já nesta terça, 24, em artigo na Folha de S. Paulo mais voltado ao crédito emergencial para empresas, Fraga punha como segundo ponto da lista de prioridades desse crédito o seguinte: “O foco deve ser microempresas (receitas até R$ 360 mil por ano) e as de pequeno porte (entre R$ 360 mil e R$ 4,8 milhões) que tenham folha salarial – para evitar empresas que se beneficiam da pejotização”. O que está em cena aí é, de fato, a manutenção de empregos.
Há hoje na população economicamente ativa do país, segundo dados oficiais, 11,9 milhões de desempregados, 18,6 milhões de trabalhadores sem carteira assinada, portanto, sem qualquer proteção trabalhista, e 19,3 milhões de trabalhadores por conta própria, sem CNPJ. Ou seja, são 49,8 milhões de trabalhadoras e trabalhadores que, numa economia de guerra, com toda a paralisia resultante do imperativo de defender acima de tudo a vida humana contra um vírus novo e agressivo, não conseguirão sustentar suas famílias sem apoio financeiro direto do governo, quanto mais capitanear sua proteção contra a covid-19.
Testes em massa constituem a outra questão central de estado para abordar a pandemia nas periferias. E nesse âmbito muitas instituições de pesquisa do país, como a partir de agora o Instituto Butantã de São Paulo, lado a lado com a Fundação Oswaldo Cruz, no Rio (Fiocruz), até então praticamente o único sustentáculo nessa produção, junto com parte do segmento industrial do setor produtivo, têm bastante a contribuir com o governo. Aliás, as contribuições em termos de soluções tecnológicas já estão aparecendo, com quase duas dezenas de novos testes rápidos aprovados ou em aprovação pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). E com estímulo de financiamento público, outras devem aparecer.
Nesse sentido, a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), por exemplo, está lançando duas chamadas no valor total de R$ 30 milhões a pesquisadores em instituições e em micro e pequenas empresas para que apresentem projetos com potencial para inovações tecnológicas no diagnóstico e tratamento da covid-19.
Segundo a Agência Fapesp, na primeira chamada a Fundação vai disponibilizar R$ 10 milhões para redirecionar projetos em andamento nas instituições de pesquisa do estado. A expectativa é de que os pesquisadores trabalhem no desenvolvimento de testes diagnósticos, terapias e procedimentos terapêuticos, mas também pesquisem aspectos críticos da infecção, procedimentos clínicos, identificação e avaliação das respostas imunes, comportamento epidemiológico e contenção e minimização de comportamentos contraproducentes para a epidemia.
Na segunda chamada, em parceria com a agência federal Financiadora de Inovação e Pesquisa (Finep), uma linha especial de financiamento de R$ 20 milhões será oferecida a micro e pequenas empresas e startups dispostas a aplicar ou ampliar a escala de processos ou produtos inovadores, como kits diagnósticos, ventiladores pulmonares, equipamentos de proteção aos profissionais da saúde, soluções de tecnologias digitais e inteligência artificial para os serviços de saúde ou atendimento aos pacientes.
A pandemia e as cidades
Há, em paralelo à pesquisa mais tecnológica, biológica e clínica, investigações em curso para entender, por exemplo, como a Coreia do Sul, que dada sua estrutura de profunda desigualdade (lembram-se do filme Parasita?) parece ter lições especiais a oferecer a um país ainda mais desigual, tem se saído muito melhor que os países europeus no controle da covid-19.
O país asiático, que até a segunda, 23, registrava quase 9 mil casos (precisamente, 8.961) e 118 mortes, com o pico da epidemia tendo ocorrido, aparentemente, em 19 de fevereiro, valeu-se da testagem em larga escala, com controle tecnológico de cada novo caso de infecção suportado por ferramentas de TI e georreferenciamento, seguido do isolamento dos doentes, e sem lockdown.
Mais que isso, entretanto, há um esforço de muitos grupos na área das ciências humanas e sociais para compreender o contexto da pandemia nas grandes cidades do mundo até agora. E de dentro dessa compreensão, conseguir traçar cenários possíveis para uma cidade como São Paulo, para além apenas das estatísticas – e assim propor, em diálogo com as comunidades que frequentemente têm respostas mais exequíveis e eficazes, medidas de contenção ou mitigação da pandemia.
Um deles é justamente o grupo transdisciplinar de pesquisa do programa USP-Cidades Globais, criado em 2016 por Buckeridge e outros pesquisadores, que nesse momento faz um enorme esforço para produzir um relato, um artigo científico propriamente, que consiga acrescentar com urgência algo consistente para as políticas públicas pelas quais a cidade de São Paulo está gritando. “Um artigo que mostre a cidade e faça proposições para que sua população atravesse com menos danos essa pandemia trágica”, diz Buckeridge.
Para tanto, reúnem-se contribuições de, entre outros, Paulo Zanotto, Paulo Saldiva, Arlindo Philippi Jr, mas no âmbito da biologia e da saúde. Dos sociólogos Sergio Adorno e Marcelo Nery (ver, a propósito, este artigo), que investigam e refletem sobre os agrupamentos mutuamente exclusivos que compõem essa enorme cidade de São Paulo. E trabalhos de Wagner Ribeiro e do arquiteto Carlos Hernandez, que vem se dedicando ao mapeamento das grandes favelas de São Paulo, buscando entender o que nelas é preciso impulsionar ou potencializar para traçar estratégias de mudança.
As rédeas na periferia
Enquanto isso, os líderes comunitários, como Gilson Rodrigues, em Paraisópolis, movem-se para “combater notícias falsas, acalmar a população, reduzir o pânico, disseminar as notícias de higiene e cuidados”, conta o diretor de jornalismo da Agência Mural, Vagner de Oliveira. Tomam iniciativas para ajudar a isolar os doentes quando isso for premente, e as grandes tendas próximas aos hospitais públicos das periferias, prometidas por estado e prefeitura, não estiverem prontas ou não forem suficientes. Põem vans com alto-falantes para reiterar incessantemente as medidas simples de higiene que podem fazer a diferença no alastramento da infecção.
No denso aglomerado de casas coladas, cortado pelo córrego Antonico, como em dezenas de outras favelas, trata-se de unir forças, de fazer uma poderosa coalizão para defender a população com toda a garra. “Nós, compartilhando nossos relatos com outros veículos, contribuímos para esse esforço”, resume Vagner de Oliveira.