O Centro Brasileiro de Análise e Planejamento completou 50 anos em 2019. Fundado por pesquisadores que buscavam escapar da perseguição política no início da fase mais violenta da ditadura militar, o Cebrap – que em 1976 sofreu um atentado a bomba – era visto com desconfiança tanto pelo regime, por congregar figuras de esquerda, quanto por parte esquerda, que estranhava o financiamento vindo da Fundação Ford (sobre a criação do Cebrap, recomendamos o primeiro episódio da série documental O golpe na academia, produzido pela revista Pesquisa Fapesp em 2014).
Cinco décadas depois, a ciência brasileira se vê novamente sob ataque por parte do Planalto. À frente do Cebrap está o filósofo Marcos Nobre, 54 anos, professor do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (IFCH – Unicamp). Ele recebeu o Ciência na rua na sede do Cebrap, em São Paulo, na sexta-feira, 29 de novembro, para conversar sobre os desafios da instituição que preside e da ciência em geral. Leia abaixo a entrevista.
O que caracteriza o Cebrap? Que tipo de pesquisas ele faz e que contribuições tem dado para o conhecimento do brasileiro sobre si mesmo?
O Cebrap foi fundado durante a ditadura militar, em 1969, porque em 13 de dezembro de 1968 tinha sido editado o Ato Institucional número 5, que expulsou da universidade vários professors. Eles decidiram que não iam se exilar e que tentariam fazer oposição nos limites do que era possível no país. Para poder continuar sua atividade científica, decidiram criar o Cebrap. Naquela situação de ditadura militar, o Cebrap trouxe gente do Brasil inteiro para pesquisar, trabalhar aqui, em São Paulo, o que deu ao Centro uma cara muito diferente, numa época em a produção de conhecimento não era muito nacionalizada, não integrava as universidades, e era bem espalhada. Então, o Cebrap teve esse primeiro efeito, juntar bastante gente de lugares diferentes, de origens diferentes e, sobretudo, de ramos do conhecimento diferentes. Nessa primeira fase, tivemos um destaque muito grande para os estudos sobre população, a disciplina do conhecimento chamada demografia, liderada por Elza Berquó, demógrafa brasileira de expressão mundial. Ela se propôs a fazer um trabalho que englobasse todas as disciplinas, ou seja, pensar população não só como estatística, não só em termos de cálculo matemático, mas também no sentido do que faz essa população ter uma família de quatro, cinco filhos, ou de um, dois filhos, quais são as causas disso, como se lida com o problema da expectativa de vida, da natalidade etc. Todas essas questões estão ligadas à demografia numa perspectiva ampla, ou seja, elas propõem indagações sobre uma dimensão econômica, sobre a vida social etc. Foi um projeto muito interessante, que atravessou o Cebrap de ponta a ponta.
O Cebrap experimentou uma outra fase depois da redemocratização, quando não havia mais a necessidade de abrigar os professores perseguidos pela ditadura. Isso propunha uma questão: se não se tem mais a ditadura – e a razão da fundação do Cebrap –, há razão ainda de ele existir? Essa questão foi colocada na década de 1980, quando muitas pessoas do Cebrap foram para a política oficial, para tentar construir a redemocratização. E foi justamente nesse momento que Elza Berquó, junto com o professor José Arthur Giannotti, da filosofia, resolveram que era necessário mantê-lo, mas com outra característica. Foi interessante a reflexão que fizeram naquele momento, uma reflexão coletiva, como tudo que fazemos aqui. Pensaram o seguinte: “nesse período de 15, 20 anos, desde o início do Cebrap, criou-se uma certa cultura, um certo jeito de como fazer pesquisa”. Porque é claro que os padrões do que seja a pesquisa científica internacional são os mesmos, mas o jeito como se chega lá é diferente. Quer dizer, cada instituição tem uma cultura diferente, e o que eles avaliaram foi que o Cebrap tinha uma cultura institucional, alguma coisa muito especial, que não se encontrava em outro lugar, e iria desaparecer se fechassem o Cebrap. Resolveram que o Cebrap se manteria, mas precisava mudar um pouco: de um lugar que recolhia professores e pesquisadores, professoras e pesquisadoras, perseguidos pela ditadura ou que estavam espalhados pelo Brasil sem um foco para trabalhar, teria que passar a um centro de formação de quadros. Tinha que apostar na formação de novos pesquisadores, não no sentido de competir com a universidade, porque o Cebrap não é uma instituição de ensino, mas no sentido de passar para novas gerações um jeito de trabalhar.
Isso foi realizado e é um dos pilares importantes do Cebrap até hoje — formação de pesquisadoras e pesquisadores. A universidade dá uma base para se poder trabalhar em pesquisa nas várias áreas do conhecimento das ciênciais humanas, mas o Cebrap oferece uma experiência de pesquisa concreta interdisciplinar. Quando se está na universidade, fazendo um curso de economia, de história, de ciências sociais, de demografia, de filosofia, e se vai elaborar um trabalho, normalmente ele é disciplinar, ou seja, trabalha-se uma especialização, no lugar onde se está fazendo o curso. Quando alguém vem para o Cebrap, esse trabalho disciplinar continua, mas ele se dá num ambiente diferente, quer dizer, vão pedir coisas ao pesquisador que não pedem em outros lugares. Vão pedir que olhe para a perspectiva da economia, se o pesquisador for da sociologia; vão pedir que olhe para a perspectiva da demografia, se for da história. Esse tipo de encontro faz com que o Cebrap seja ,ao mesmo tempo, um lugar de formação e um lugar de pesquisa. Acho que essa é a força do Cebrap, um jeito único de trabalhar de maneira interdisciplinar, que faz dele o que ele é.
Nessa interdisciplinaridade, que áreas são abarcadas?
É difícil fazer uma lista sem ser injusto, sem deixar alguém de fora. Temos o que chamamos de projetos institucionais, ou seja, projetos que são consórcios de instituições, por exemplo o Centro de Estudos da Metrópole. Ele existe há quase 20 anos e é dedicado, como diz o nome, a estudar cidades e as formas de sociabilidade próprias das cidades, mas muito focado na questão da desigualdade e como ela se reproduz no ambiente urbano. Por definição, para estudar as cidades, precisa-se de urbanismo, ciência política, sociologia, demografia, precisa-se de todas essas disciplinas para poder entender o fenômeno urbano em sua complexidade, e com esse foco na desigualdade, que distingue o CEM desde seus primeiros anos.
Se tomarmos o Mecila [Centro Internacional Maria Sibylla Merian para Estudos Avançados em Humanidades e Ciências Sociais sobre Convivialidade-Desigualdade na América Latina, na sigla em inglês], temos um centro formado por sete instituições, três alemãs e quatro latino-americanas. A sede é no Cebrap e na USP [Universidade de São Paulo], ou seja, em São Paulo, mas, embora tenha uma sede física, o Mecila pretende ser um centro em rede, então, está no México, Argentina, Brasil, e, na Alemanha, em Berlim e Colônia. Todos os anos, oferece bolsas para pesquisadores já renomados, para pesquisadores iniciantes e para pesquisadores e pesquisadoras que estão no nível de doutorado e querem estudar América Latina. É aberto a todas as disciplinas das ciências humanas, das humanidades. O CEM e o Mecila são exemplos de projetos institucionais em que vemos a interdisciplinaridade de uma maneira bastante clara.
Depois temos os núcleos e projetos individuais. O Cebrap estuda, por exemplo, o mercado de trabalho e movimentos sociais. Hoje, para pensar movimentos sociais, tem que pensar movimento social dentro do mundo digital, em rede. Então, temos estudos, por exemplo, sobre as novas direitas, as organizações de direita, assim como temos estudos sobre formas de inovação política ligadas à esquerda, particularmente o feminismo e o feminismo negro. Um outro núcleo, muito, muito importante, que é um orgulho para nós, é o AFRO, que vai tratar de questões raciais e de justiça racial, também dessa perspectiva interdisciplinar. Quando você vai discutir, por exemplo, um problema como cotas, qual é a discplina? É preciso juntar sociologia, ciência política, o direito… O Cebrap é dos poucos, se não o único, centro interdiscpilinar no Brasil que tem o direito como uma das suas disciplinas importantes no ambiente interdisciplinar. Na ciência política, temos uma quantidade enorme de projetos aqui; na sociologia, a mesma coisa; citar todos seria complicado, então esses são alguns exemplos de como trabalhamos de maneira interdisciplinar.
Após 50 anos da fundação do Cebrap, o país vive um novo momento de ataque às universidades e à pesquisa por parte do governo federal. Você poderia traçar um paralelo entre os dois momentos e o papel do Cebrap então e agora?
Tem uma diferença muito importante: o Cebrap foi fundado numa ditadura, e o momento atual é de risco autoritário. Vamos dizer que, também nesse âmbito, o Cebrap tem tecnologia para lidar com o momento. Não é fácil manter um centro de pesquisa como esse aberto, porque ele não está vinculado a nenhuma instituição pública, não recebe nenhum tipo de subvenção, de subsídio, sobrevive das pesquisas que realiza, dos projetos que é capaz de ter. Então, num ambiente como esse, de ataque ao conhecimento, de ataque à ciência, de ataque à própria ideia de universidade, é um desafio maior manter um centro como o Cebrap aberto.
Mas há o outro lado, que é: o Cebrap só conseguiu ser fundado porque existia uma solidariedade muito grande das pessoas diante da ditadura. E eu espero, sinceramente, que consigamos produzir uma solidariedade nesse momento para evitar o risco autoritário que estamos vivendo seriamente. Penso que isso é alguma coisa pela qual o Cebrap pode lutar. É importante dizer que o Cebrap não é uma instituição partidária, não é uma instituição política nesse sentido direto da expressão, mas também não é neutro, nesse sentido. Quer dizer, ele existe porque defende a ciência, defende o conhecimento, defende a diversidade, a tolerância, existe por isso, senão ele não teria razão de existir. Ele foi criado para isso, então espero que sirva também de instrumento para que consigamos atravessar esse período sem passer, novamente, por um período autoritário, que se consiga evitar esse risco.
Indo além do contexto político nacional, quais desafios se apresentam para o Cebrap neste momento? Que problemas você vai procurar resolver e como? Divulgação científica está entre as preocupações?
A divulgação científica tem que ser prioridade em qualquer lugar que produz ciência, isso é fato. Pode-se discutir só se é o melhor nome, mas é o nome que é estabelecido. Tem que ser prioridade conseguir conversar com as pessoas de um jeito diferente de como se tem conseguido até hoje. Abrir, de fato, um diálogo, uma conversa, de outro nível.
Desafios existem em muitas áreas. Então, por exemplo, há coisas em que estamos nos empenhando em aumentar, em investir mais. Nos temas raciais, agora temos o AFRO; na questão ambiental, que é muito importante como tema; na economia, que tipo de diagnóstico, a que mundo econômico estamos estruturalmente ligados; e no mundo digital. Quer dizer, de fato precisamos ampliar os nossos estudos, que já são muito consideráveis, sobre o mundo digital, e conseguir ter, para isso, tecnologias e maneiras de pesquisar efetivas. Claro, o Cebrap tem o CebrapLab, um laboratório de metodologia para trabalhar no mundo digital, que é uma coisa muito bem sucedida e que também faz parte desse projeto de formação de pesquisadores e pesquisadoras.
Precisamos também desenvolver pesquisa nesse campo que mencionei, das novas direitas, das inovações políticas no campo da esquerda,.. Já fazemos, mas teria muits outras, sobre movimentos sociais, junho de 2013, quais foram seus impactos etc. Dos desafios mais gerais, não pensando na dimensão temática de que estou dando exemplos, penso que precisamos, de fato, entender melhor como foi possível a eleição do Bolsonaro, no sentido mais profundo, o que aconteceu. Isso envolve mudanças na sociabilidade muito profundas por causa da expansão da internet, que tomou as nossas vidas, das redes, das mídias sociais etc. Mas também envolve outras coisas, quer dizer, o que aconteceu na democracia no período que eu chamo de República do Real, em que se alternaram PSDB e PT no governo, que produziu esse tipo de reação por uma parte importante da sociedade e do eleitorado. É preciso criar instrumentos para poder entender isso, inclusive para entender o que faremos no futuro. Então, tem uma agenda democrática, que é muito relevante, tentar entender, sem colocar uma coisa moral ou política antes do entendimento, que daí você não consegue entender nada. Entender o que motiva as pessoas, o que motiva a parcela do eleitorado que apoiou e apoia ainda o Bolsonaro, por que isso aconteceu, que relação tem com o período recente da história brasileira e da democratização brasileira.
Há uma questão democrática que, claro, se expande, porque como é que você pode pensar a questão racial dentro desse período de redemocratização brasileiro? Como a democracia lidou com a questão racial? Podemos pensar, “como a democracia está lidando com a revolução digital e a revolução tecnológica?”, quer dizer, em que medida temos um descompasso entre a maneira pela qual a política está organizada e a maneira pela qual as pessoas vivem seu cotidiano — essa distinção é importante.
E tem um outro lado, que é ainda mais complicado, que é: diante da emergência climática que vivemos, diante do colapso ambiental, como vamos nos organizar politicamente, de maneira democratic, para enfrentar esse problema? Isso não é uma coisa evidente. Há prioridades que enunciei que têm a ver com pesquisas que o Cebrap quer aumentar. Por exemplo, como é possível reconstruir a democracia em outro patamar? E não é só no Brasil, porque a crise democrática é uma crise global, Se não enfrentarmos esses problemas, não vamos conseguir sair deles.
Claro que a questão racial não é a mesma em todos os lugares do mundo, pelo contrário, é bem específica de cada lugar, embora tenha elementos estruturais que são comparáveis. Agora, a questão da emergência climática, a questão da sociabilidade digital, de sua relação com a representação, são questões globais. Então é importante fortalecer todas as áreas que têm a ver com essa reflexão sobre o que foi a democracia, o que ela é agora e o que ela pode ser. Daí se reúne o conhecimento em volta disso, de maneiras muito variadas e com perspectivas diferentes. Não é que todo mundo trabalha com a mesma tese na cabeça ou quer demonstrar a mesma coisa. Ou seja, não é uma escola, nesse sentido, mas tem esse compromisso democrático de base, sem o qual não dá para fazer ciência. No fundo, fazer ciência, produzir conhecimento, depende de haver um ambiente democrático não só no lugar onde se produz conhecimento, mas no planeta.
Em entrevista recente para o programa de rádio Pesquisa Brasil, você falou sobre o esgotamento do pacto tecnocrático entre ciência e política e sobre a necessidade de a ciência se relegitimar, encarando o “público” como composto por sujeitos de direito e não meros receptáculos de conhecimento. Poderia explicar? E você vê movimentos robustos nesse sentido?
Essa é uma questão fundamental para a sobrevivência da ciência e do conhecimento. A ideia de que tem alguém que sabe alguma coisa e tem alguém que tem que aceitar o que essa primeira pessoa diz, porque ela tem a autoridade do conhecimento, é profundamente tecnocrática e, nesse sentido, é algo que, do ponto de vista democrático, as pessoas não aceitam mais. E com boas razões.
Claro, poderíamos pensar um mundo em que todo mundo faz ciência. Mas, mesmo num mundo em que todo mundo produzisse conhecimento e fizesse ciência, cada um faria numa determinada área, ninguém teria conhecimento global. Então, para que as pessoas possam se apropriar da ciência, esse é o ponto, cada um ser capaz de tornar a ciência como algo seu. Algo que você diz, “Não sei exatamente o que o pesquisador faz e fez para chegar a esse resultado, mas sei que esse resultado tem a ver com uma maneira pela qual eu organizo a minha vida, uma maneira pela qual eu me identifico com uma determinada visão de mundo”. A ciência precisa fazer parte da vida cotidiana. E, para isso, ela não pode ser uma coisa que fica apartada, num mundo separado, que é reservado para quem sabe. Por isso a noção de divulgação científica é complicada, porque parte de “tem um sujeito que sabe e que divulga” ou “que difunde”.
O processo de apropriação da ciência envolve muitas dimensões, por exemplo, ter desde muito cedo na escola a possibilidade de produzir conhecimento, de fazer ciência, seja em que nível for. E de as pessoas, nesse processo de aprendizagem, mesmo as que não vão se tornar cientistas depois, dizerem: “isso aqui é um jeito de pensar e é um jeito de organizar o mundo que é interessante, não vai ser o do meu trabalho, mas eu consigo ver como isso funciona”. Quer dizer, não é uma caixa preta, sobre a qual alguém diz: “olha, o que lhe interessa não é saber como essa caixa funciona, o que interessa é o resultado”. Não, me interessa a caixa, eu quero saber. Porque a ciência é muito fascinante e ela tem muito a ver com aspectos importantes da vida. Vamos pensar que a ciência e o conhecimento são financiados pela sociedade toda, então a sociedade tem mais do que o direito de saber não só do resultado que sai daquilo, mas como aquilo é feito. Por quê? Porque muitas vezes você começa uma pesquisa buscando um determinado resultado, buscando um determinado produto, guiado por uma determinada hipótese, e no meio do caminho você descobre que não é aquilo, e o que você procurava no início desaparece, se torna uma outra coisa, e a sua maneira de entender essa coisa mudou também.
Isso é o que é fascinante no processo científico, porque tem uma parte do proceso científico que é simplesmente trabalho braçal, duro, cotidiano, sem negociação. Mas tem uma parte que são esses momentos da pesquisa, depois de anos, em que você chega num lugar e fala: “uau! Eu achei que tinha uma encruzilhada aqui, mas não tem, tem só um caminho e não é o caminho que eu esperava”.
É importante poder ter essa experiência de que não conseguir alcançar o resultado que esperava não é um fracasso, porque pode levar a outra coisa. E não confirmar um resultado também é um resultado científico. É algo importante para as pessoas sentirem que esse tipo de raciocínio é uma forma de pensar interessante por ela mesma. E que pode nos levar a pensar nossa própria vida de maneiras diferentes. É um jeito de trabalhar que é interessante, então esse tipo de coisa precisa ser pensado, que a ciência não está só entregando alguma coisa, ela está querendo que a pessoa participe de alguma coisa, não num nível mais cotidiano, muitas vezes braçal, chato, repetitivo, que a ciência tem, mas nesse aspecto inventivo, nesse aspecto mesmo de controle social do investimento público.
Então não dá mais para ser o técnico que diz: “eu estudei isso, você não estudou, você tem que aceitar o resultado”, não é assim que funciona mais, e é bom que seja assim, porque a ciência morre se as pessoas não se apropriam dela, elas precisam se apropriar.
Sobretudo eu tenho uma certa expectativa de que essa nova maneira de a ciência se legitimar – que as pessoas sejam levadas em conta nos diversos âmbitos – também venha acompanhada da produção de uma certa atitude de que estamos em emergência climática, que a ciência não é alguma coisa que está muito distante da sua vida, pelo contrário, é sua aliada, e uma aliada fundamental para a sobreviência da vida no planeta. Então, se a ciência for capaz dessas duas coisas, de dizer: “estou aqui disposta a trabalhar para que a superação do maior desafio que a espécie já enfrentou”, e se ela fizer isso de maneira aberta, que não seja a maneira tecnocrática habitual, ela pode se tornar ainda mais interessante do que é. Se ela não fizer esse movimento, acho que vai só reforçar os argumentos de quem acha que a universidade não serve para nada, que a ciência não serve para nada, que o conhecimento não serve para nada.
E você vê a ciência se movimentando nesse sentido? Ou ela não está conseguindo dar essa resposta?
Acho difícil falar da ciência como um todo porque tem iniciativas que não são majoritárias ainda. Mas sobretudo minha expectativa não é em relação a um simples movimento por parte da própria comunidade científica, mas um movimento que vem de baixo. Principalmente das pessoas jovens, hoje adolescentes e pré-adolescentes, que estão se engajando e fazendo essa ligação fundamental entre emergência climática e necessidade da ciência. Esse tipo de movimento acho que empurra as pessoas. Uma característica muito forte do Cebrap também é de acreditar que movimentos sociais são coisas que empurram numa determinada direção as instituições e a política. Então vejo esse movimento de base como muito importante.
Me preocupa quando a resposta da comunidade científica é, por exemplo, “nós não temos mais tempo a perder, não podemos mais ficar discutindo com gente que ainda põe em dúvida a emergência climática, a hora é de ação”, acho que não se entendeu o que está acontecendo. E ficar dizendo para as pessoas “eu não vou mais discutir com vocês porque eu sou cientista, eu estudei isso, isso é óbvio, e estamos perdendo tempo precioso discutindo com você que acha que a Terra é plana, que acha que não existe aquecimento global etc”, esse é o tipo de atitude que põe em risco a ciência. Veja, pode ser que tenha uma porcentagem de terraplanistas, pode ser que tenha uma porcentagem de céticos do clima que não sejam capazes de convencimento. Não é esse o problema. A questão é que esse tipo de atitude em relação a esses grupos é interpretada pelo resto da sociedade como uma arrogância tecnocrática. Então, não é só aquele grupo específico que está sendo atingido por aquela atitude, é toda a sociedade que se sente atingida. Ou uma parte boa da sociedade que se sente desprezada por esse tipo de raciocínio. Portanto, é muito mais uma questão de atitude, realmente, e de como mudar essa atitude. Quer dizer, espero que haja movimentos mais amplos dentro da sociedade científica para mudar a atitude, mas acredito muito que esse movimento que vem de baixo é o que vai mudar a comunidade científica. Acredito nisso.