Por Laura Araujo
Longe de simples golpe palaciano, a Independência do Brasil mobilizou diversas forças sociais, estabeleceu as bases do Estado nacional e ajuda a explicar o país de hoje
“Ouviram do Ipiranga as margens plácidas…”, começa o Hino Nacional brasileiro, composto em 1831. Quando essa letra foi escrita, o protagonista do evento evocado no verso inicial já não andava pelos campos do Ipiranga, ou mesmo do Brasil. O ano de 1831 marca o fim do Primeiro Reinado, quando Dom Pedro abdicou do trono em favor de seu filho, que viria a ser Dom Pedro II. Aqueles eram os anos iniciais do Brasil constituído como nação soberana, uma trajetória iniciada oficialmente em 7 de setembro de 1822 e que se estende até os dias atuais. Exaltada por determinados atores políticos e problematizada por outros, há quase 200 anos a Independência é objeto de análises e debates que estão longe de se esgotar.
Em sintonia com esse vigor historiográfico, o Instituto Ciência na Rua promoveu no dia 4 de novembro o webinar “Sombras da Independência no Brasil de hoje”, dando sequência ao projeto “Novos estudos para decifrar o Brasil contemporâneo”. O evento reuniu os historiadores João Paulo Garrido Pimenta e Maria Aparecida Silva de Sousa, com mediação das jornalistas Mariluce Moura, diretora do Instituto Ciência na Rua, e Luka Franca, coordenadora em São Paulo do Movimento Negro Unificado (MNU-SP).
João Paulo Garrido Pimenta é professor titular do Departamento de História da Universidade de São Paulo (USP). São de sua autoria títulos como “Estado e nação no fim dos impérios ibéricos no Prata (1808-1828)” (Hucitec, 2006) e “A independência do Brasil e a experiência hispano-americana (1808-1822)” (FAPESP/Hucitec, 2015). Maria Aparecida Silva de Sousa leciona no curso de licenciatura em História da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB) e é pesquisadora da História do Brasil Colônia e Independente, com ênfase no estado da Bahia.
Pimenta explicou que a Independência não pode e nem deve ser deixada de lado no estudo da História brasileira, uma vez que ela e os eventos que a sucederam definiram os alicerces do Brasil. Ordenamento jurídico, estrutura política, cultura: todas as ferramentas e traços dos quais dispomos coletivamente, enquanto brasileiros, de certa forma remontam em 1822. Por isso, mesmo que para alguns seja um tema “antipático”, é impossível virar-lhe as costas. “O Brasil ‘foi sendo criado’ e segue intacto, o que é uma ideia estranha. Porque cada vez que a gente quer disputar a nação fala-se em criar uma nova nação, mas ninguém propôs isso. Todas as noções [sobre o Brasil] mantêm-se debaixo de um guarda-chuva comum do brasileiro, e esse é um bom motivo pra falar da Independência”, pontuou o professor da USP.
O uso político da data nada tem de novidadeiro. Na primeira vez em que isso aconteceu, sua memória ainda estava fresca para os brasileiros: era 1823. Desde então, diferentes governos evocaram o 7 de setembro de 1822 para reforçar suas próprias características e visões de nação. Foi o caso da ditadura civil-militar, que em 1972, no governo Médici, fez dos 150 anos da Independência um estandarte das suas próprias concepções de Brasil. Com isso, não é estranho que nas décadas de 1980 e 1990, após a redemocratização, o tema fosse visto com reservas pelos estudiosos. “Tudo isso tornou a Independência um tema antipático. Mas ela sempre foi estudada e tratada em perspectiva crítica, em estudos que tinham como fim a explicação da História”, esclareceu Pimenta.
A repulsa exercida até hoje pelo 7 de setembro é a maior testemunha da sua vitalidade. “A Independência só pode ser antipática porque sempre foi atual. Ela sempre serviu a interesses políticos, partidários e sociais porque de alguma forma tinha alguma coisa a dizer sobre os momentos em que esses usos políticos eram feitos”, contou o professor. Além disso, ao contrário do que costumava ser pregado, a Independência não foi um fato sem grandes desdobramentos. “Ela foi um processo de transformação maior do que se acredita, e não um simples acordo entre elites ou aliança palaciana para manter o status quo colonial. Ela foi sim um movimento revolucionário, de criação de um Estado e uma identidade que existem até hoje, e isso pauta a força com que ela chega a nós”, resumiu.
Segundo Pimenta, o 7 de setembro de 2021 demonstra que não existe uma cartilha preestabelecida para o uso da simbologia da data – ou que, se existia, Jair Bolsonaro a jogou fora. “Como qualquer tema, a Independência é reconstruída como memória e vai atualizando o passado. Este ano, houve o cancelamento oficial das tradicionais comemorações cívicas em 7 de setembro. Em 2020 isso já tinha acontecido, mas a questão sanitária estava envolvida. Mas este ano não só houve o cancelamento como sua substituição por outra manifestação, que vocês sabem como foi. Nunca antes houve uma privatização do 7 de setembro, e isso tornou ele ainda mais significativo”, apontou. Os novos usos para a data e o debate provocado por essas tendências, que não cessam de se reinventar, reforçam o caráter atual da Independência e a renovação do interesse pela História. “Essa dupla dimensão, da antipatia e atualidade, tipificam um momento de criatividade que estamos vivendo – intelectual, crítica, militante. Muitos brasileiros estão se voltando para o estudo da História para buscar luzes sobre o presente. Nesse contexto, a Independência está desempenhando a tarefa de iluminar alguns aspectos do presente, com o aumento do interesse pelo passado”, observou Pimenta.
Para a professora Maria Aparecida de Sousa, de fato o momento é de intensificação dos estudos, com descobertas que ampliam de forma significativa as impressões da historiografia tradicional a respeito do 7 de setembro de 1822. “Hoje podemos falar em ‘outras independências’, porque ela não foi um projeto formulado e concretizado exclusivamente por indivíduos do Rio de Janeiro e seu entorno, como Minas Gerais e São Paulo, e sim um processo extremamente conflituoso que se deu a partir das lutas e divergências políticas das províncias do Norte”, afirmou. Províncias como Bahia e Grão-Pará vivenciaram tramas de conflito e violência política no bojo dos movimentos relacionados à Independência. “O 7 de setembro não teve grande repercussão na época porque as províncias estavam em ebulição. Ou seja, foi uma data construída posteriormente. É um tema complexo, com várias questões já debatidas e outras que precisam ser aprofundadas. Falar sobre as origens do Brasil é falar do Brasil de hoje”, reforçou a professora da UESB.
Entre os conflitos regionais, estão o fato de que o Grão-Pará foi a última província a aderir à nova configuração político territorial chamada Brasil, fato ocorrido apenas em 1823. Pernambuco também mostrou resistência ao chamado da nova corte do Rio de Janeiro. Na rica Bahia, a Independência em relação a Portugal só veio a custo de uma guerra. Tropas portuguesas ocuparam a cidade de Salvador por vários meses, sendo derrotadas em 2 de julho de 1823 – quase um ano após o feito de Dom Pedro. O enredo da nossa Independência, portanto, foi muito mais agitado do que se acostumou a pintar. O mito de que o povo comum era ignorante ou indiferente ao processo da separação de Portugal também não tem amparo. “As pessoas estavam nas ruas e nas galerias do Senado, tentando influir na tomada de decisões. E alguns escravizados tentaram pensar sobre a própria concepção de liberdade”, esclareceu a professora.
Para Sousa, o que fica após 1822 é um mosaico de transformações e permanências. “A Independência propiciou transformações inegáveis. Não podemos reiterar a visão de que ela não mudou nada e foi apenas uma troca de mandatários. Houve mudanças políticas e econômicas inegáveis, com a construção de uma identidade tortuosa e com singularidades. Existem também permanências, entre elas o fato de que a Independência não resolveu problemas sociais como a escravidão e a precariedade da população livre. E me parece que alguns privilégios não apenas foram afirmados, mas ampliados”, destacou.
A jornalista Luka Franca fez um questionamento a respeito do tratamento da escravidão pelos agentes da Independência, tendo em vista que o dispositivo legal que permitia que algumas pessoas possuíssem outras sobreviveria 66 anos no Brasil independente. Pimenta seguiu a imagem das transformações e permanências, apresentada por Sousa, para explicar a questão. “Colocamos a escravidão no cômputo das continuidades, mas podemos dar um salto qualitativo e chamar de recriação da escravidão. Antes, era uma escravidão colonial, e passou a ser nacional. Os escravos que deixassem essa condição poderiam se tornar cidadãos brasileiros, o que pressupõe a concepção de um Estado nacional de lógica liberal constitucional. Mas a maior parte da sociedade estava disposta a bancar a escravidão. Por isso ela surgiu como força definidora da nação, e explica porque padecemos até hoje das suas marcas”, observou.
Sousa lembrou que estudos recentes reforçam quão entranhada a escravidão estava na sociedade dos 1800 – de Norte a Sul do Brasil, entre proprietários mais e menos abastados. “A força da escravidão é algo que precisamos admitir e entender, porque as relações escravistas são complexas. Estudos demonstram que existiram várias formas de escravidão e que ela estava nas entranhas da sociedade, daí o apego e resistência a discutir o fim da escravidão”, contou. A professora também lembrou que o tráfico de africanos escravizados enriqueceu muitos brasileiros, o que contribuiu para que o debate fosse protelado pelo menos desde o início do século 19, quando a Inglaterra começou a pressionar Portugal sobre o tema. “Mas é importante saber acerca da tradição rebelde dos escravizados. Há documentos registrando que o Recôncavo Baiano estava permeado de negros rebeldes, e que fazendeiros que instalassem suas plantações na região corriam o risco de ver seus escravos aprendendo a se revoltar”, completou a professora.
O debate com os historiadores também abordou questões como semelhanças e diferenças entre o processo de Independência no Brasil e em diferentes localidades do continente americano, como Estados Unidos, México e Haiti. Segundo Pimenta, é preciso ter em conta que as revoluções podem ter caráter político, anticolonial e social. No caso de Brasil e Estados Unidos, as independências tiveram apenas as primeiras duas características, e somente o Haiti reuniu as três. Além disso, enquanto na América Hispânica foi grande o contingente de indígenas envolvidos na luta contra a metrópole, no Brasil o protagonismo foi das populações de origem africana.
Também foi abordada a continuidade ou descontinuidade entre a Inconfidência Mineira e a Conjuração Baiana e o 7 de setembro de 1822. Para a professora da UESB, esses movimentos precisam ser vistos à luz das revoluções de fins do século 18. “É preciso situar o contexto revolucionário da época, com a independência dos Estados Unidos, a Revolução Francesa e Revolução Haitana, cada uma impactando e influenciando os indivíduos com suas leituras e interpretações. As ideias circulavam. Os escravizados, por exemplo, tinham o Haiti como referência. Já a Inconfidência foi mais restrita à elite e não tinha uma proposição de alargamento social”, afirmou.
As íntegras desse encontro e dos anteriores podem ser assistidas no canal do Ciência na Rua no Youtube.