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Direita autoritária e democracia ameaçada: como chegamos e para onde vamos?

Laura Araujo

Esgarçamento de estruturas partidárias e plasticidade de forças conservadoras foram ingredientes da crise política; “estilo Trump” pavimentou caminho da direita no Brasil

Mar a Lago – Flórida, 07/03/2020) Donald Trump recebe a visita do Senhor Presidente da República Jair Bolsonaro em visita oficial aos EUA Foto: Alan Santos/PR – Via FotosPúblicas

A contestação do resultado das eleições de 2014 deu o pontapé na crise política que, em 2021, se expressa na rejeição à democracia e na utilização da “trollagem” como instrumento de mobilização popular. De lá para cá, um impeachment depôs a presidente Dilma Rousseff, e Donald Trump ascendeu à presidência dos Estados Unidos utilizando uma retórica antidemocrática e táticas típicas das redes digitais para insuflar seguidores. No Brasil, a eleição de Jair Bolsonaro em 2018 se aproveitou da onda conservadora e do modus operandi visto dois anos antes nos Estados Unidos. A pulverização partidária da direita brasileira também colaborou para sua vitória.

Esse foi o panorama do quarto webinar da série “Novos estudos para decifrar o Brasil contemporâneo”, realizado pelo Instituto Ciência na Rua no dia 21 de outubro. O encontro “Os trolls e as chances da democracia”, transmitido via Youtube, reuniu os cientistas políticos André Singer e Bruno Bolognesi, com mediação de Mariluce Moura, diretora do Instituto Ciência na Rua.

André Singer é professor do Departamento de Ciência Política da Universidade de São Paulo (USP) e autor de ‘Os sentidos do lulismo’ (2012) e ‘O lulismo em crise’ (2018), ambos publicados pela Companhia das Letras. Bruno Bolognesi leciona na Universidade Federal do Paraná (UFPR) e é coordenador do Laboratório de Partidos e Sistemas Partidários (LAPeS), da mesma universidade. A inspiração para o título do webinar foi um artigo de Singer publicado no caderno Ilustríssima da Folha de S. Paulo de 19 de setembro, “Após marcha troll de Bolsonaro sobre São Paulo, democratas precisam isolar direita lunática”.

Bolognesi é pesquisador da articulação partidária da direita brasileira, e contou que, em comparação com as direitas chilena e argentina, por aqui os movimentos conservadores nunca contaram um forte enraizamento institucional. “Antes do governo Bolsonaro, a direita brasileira era mais frágil se comparada a outras direitas, mais orgânicas e históricas. Era uma direita muito fragmentada, com pouco enraizamento na sociedade civil. Ela sempre teve apoio, mas não era algo institucionalizado”, apontou. A pulverização da direita em diversos partidos a deixava à mercê da cooptação por projetos antidemocráticos e de agenda autoritária – precisamente o que ocorreu nas eleições de 2018. Nos últimos anos, também assistimos à perda de força de partidos políticos tradicionais, entre os quais a direita se dividia e por meio dos quais atuava no Estado.

A desestabilização partidária causou uma perda de referências e de poder de articulação, abrindo caminho para a ascensão de grupos autoritários. “Após 2006 temos uma fragmentação por cima, com os partidos perdendo tamanho nas bancadas e diminuindo. Partidos como PSDB, DEM e PMDB ficam menores, e foram surgindo partidos médios e pequenos. A consequência é um sistema com muitos partidos fisiológicos, que é uma avenida aberta para a cooptação de um líder carismático”, resumiu.

Para André Singer, o momento brasileiro é de ameaça à democracia. A atual conjuntura é resultado de um processo iniciado em 2015, quando a eleição da presidente Dilma Rousseff foi alvo de acusações de fraude pelo candidato perdedor do pleito, e agravada em 2018. Singer endossou a fala de Bolognesi ao apontar que, de fato, a direita brasileira já vinha de um cenário de fragmentação – que tem algo de proposital. “Existe um descolamento entre estrutura ideológica e a partidária. Há uma certa tendência dos partidos de direita ao que Gramsci chamava de transformismo. Eles preferem se apresentar como algo ideologicamente diluído, o que permite estar em qualquer governo”, afirmou. A base social da direita, por sua vez, sempre foi significativa.

Segundo o professor da USP, a novidade está no que ele chama de autocratismo de viés fascista – que Trump “lançou” e Bolsonaro representa no Brasil. A experiência norte-americana com seu ex-presidente é fundamental para compreender o que acontece hoje em solo brasileiro e em outros países onde a direita tem ganhado força. “Esse fenômeno está marcado pela ascensão de Trump em 2016. Ele tomou o Partido Republicano de fora para dentro e chegou ao poder com uma posição claramente antidemocrática. Na democracia, a regra é ‘se eu perder a eleição, eu aceito’, e ele desde o início deixou claro que não seguiria essa máxima”, disse Singer.

O que poderia ser visto como uma ameaça vazia, dita da boca para fora, tomou corpo no início deste ano, quando a contagem de votos apontou a vitória do democrata Joe Biden. Insuflados pelo líder, apoiadores de Trump invadiram o Congresso em uma cena nunca vista. “Isso é de uma gravidade inédita, porque ficou claro que ele estava disposto a usar a violência no centro da democracia mundial, e de fato a usou”, observou o professor.
Mas será que Trump e o atual presidente brasileiro são fascistas? Para Singer, não exatamente. O que vemos hoje não é um fenômeno tipicamente fascista, uma vez que vários de seus elementos não coadunam com o que aconteceu na Alemanha e na Itália das décadas de 1930 e 1940. Um deles é o fato de que a atual onda não busca se organizar em partidos fascistas, e sim utilizar a tradicional máquina partidária da democracia para atingir seus objetivos autoritários. E nem mesmo a sólida estrutura partidária norte-americana conseguiu brecar a tomada do Partido Republicano pelo outsider Trump.

Isso porque a entrada de elementos fascistas na estrutura democrática conta com uma ferramenta bem utilizada por Trump e seus seguidores: a comunicação. “A melhor definição desse processo vem da Escola de Frankfurt. Na época, a propaganda era um fenômeno novo, que eles notaram que mobilizava aspectos inconscientes para adesão a uma liderança de caráter nitidamente autoritário e antidemocrático, que se impunha pela força. Acho que isso voltou, e a entrada disso no Brasil, associada aos problemas anteriores, leva a uma configuração dramática”, apontou Singer.

A estratégia da “trollagem” dá corpo a tendências autoritárias e, por sua natureza ardilosa, coloca as instituições em risco – como fez nos Estados Unidos em janeiro. “O troll é um fenômeno da internet onde se faz uma encenação propositalmente ambígua, que ninguém sabe se é sério ou brincadeira. Quando ela repercute sob a forma de forte rejeição, a pessoa diz que era uma brincadeira. Essa ambiguidade é constitutiva desta novidade política em curso, e é muito séria”, diz Singer. O movimento insuflado por Bolsonaro em 7 de setembro deste ano foi uma “trollagem”, segundo o cientista político. Ao incitar uma marcha nacional de apoio às Forças Armadas e ataques ao poder legislativo e depois recuar, Bolsonaro provoca a pergunta “mas ele quer ou não dar um golpe?”. O fato desse questionamento ficar sem resposta certa é o objetivo da estratégia “troll”. Como resultado, a estabilidade da democracia fica em permanente estado de insegurança.

Mariluce Moura questionou quais caminhos podem ser trilhados para que a democracia brasileira permaneça a salvo. Não existe resposta fácil, segundo os cientistas políticos. Para Bruno Bolognesi, uma articulação democrática que una direita, centro e esquerda é difícil – assim como a viabilidade de uma candidatura de “terceira via”. “Me preocupa esse quadro em que a gente não consegue coordenar e ter um arranjo partidário parecido com o que os portugueses fizeram. Minha vontade é que fosse fácil conseguir essa coordenação e juntar todo mundo em uma grande frente. A criação do fundo eleitoral só piora esse quadro, pois os partidos são sequestrados por grupos parlamentares em busca de recursos. E minha preocupação é que essa estratégia de se usar o Estado, os partidos e a comunicação cria um cenário caótico e propenso a lideranças que desejam minar a democracia”, apontou.

Já Singer defende que essa frente não se plasme nas eleições. “A frente que eu proponho é exclusivamente não eleitoral, para reconstruir a democracia no Brasil. Junto com o autocratismo de viés fascista, ocorre a erosão das democracias por dentro. Não estamos em face de golpes clássicos”, explicou. Para ele, a sociedade brasileira ainda não está devida e proporcionalmente mobilizada contra o processo antidemocrático. “As pesquisas de opinião mostram um isolamento relativo do segmento autoritário, mas as manifestações [a favor da democracia] não têm sido tão grandes e não têm tido viés de ampliação como se esperava”, alertou.

Para isso, é preciso que se defina, de uma vez por todas, contra o quê o País está lutando e qual a solução buscada. Uma frente única democrata precisa levantar a bandeira da democracia, defendeu Singer. Ela estando garantida, as diferenças podem e devem permanecer nas eleições. Além disso, as forças progressistas precisam apresentar um programa político e econômico para a sociedade. “Se não tivermos um programa de recuperação do país, teremos o recrudescimento das forças autoritárias porque elas respondem a um problema que estava colocado em 2018, a crise do capitalismo. Se pudermos ter uma eleição normal em 2022, precisamos apresentar um programa que permita a reconstrução do País”, defendeu.

Também não há uma resposta definitiva para o que pode frear o movimento autocrático. No entanto, de acordo com os convidados, a solução mais uma vez passa pela definição precisa do que precisa ser combatido, com ênfase nos desdobramentos da crise sobre os partidos e as redes sociais. A imprensa também possui um papel central no combate ao autoritarismo, ao lado das instituições públicas. O inquérito das fake news no Supremo Tribunal Federal, por exemplo, trabalha para que, ao investigar a máquina de propagação de notícias falsas, a “trollagem” antidemocrática deixe de ser vista como uma brincadeira sem consequência para os seus agentes.

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