jornalismo, ciência, juventude e humor
De Itapuã à Sapucaí, passando pela academia

Desfile da Viradouro na Sapucaí (Foto: Raphael David/Riotur)

De formas distintas, duas vezes o valor do conhecimento científico foi reconhecido, festejado e premiado no carnaval deste ano, em suas manifestações mais espetaculares (atenção, soteropolitanos e recifenses, no sentido de espetáculo constituído mesmo, sem ofensas!), ou seja, os desfiles das escolas de samba do Rio de Janeiro e de São Paulo.

Na cidade que já foi um dia chamada de “o túmulo do samba”, apesar de Adoniran Barbosa e muitos outros bambas, mas que conseguiu nos últimos anos reinventar até seu carnaval de blocos – foram quase 900 cadastrados em 2020 – vigorosamente espalhados por dezenas de bairros, a louvação do conhecimento e da educação foi enfática e direta. A Águia de Ouro cantou “O poder do saber. Se saber é poder… quem sabe faz a hora, não espera acontecer”, e com esse enredo arrebatou seu primeiro título de campeã das escolas paulistas do grupo especial, em 43 carnavais.

A escola mirou a evolução do conhecimento desde as primeiras simbolizações e invenções técnicas do H. sapiens até imaginados cenários futuros baseados no desenvolvimento da inteligência artificial. E nesse percurso abriu um espaço especial para festejar Paulo Freire (1921-1997), o patrono da educação no Brasil e um dos mais respeitados pensadores da educação do século XX em todo no mundo – bela resposta, a propósito, à abissal ignorância e torpe truculência de quem ousou há poucos meses chamar de “energúmeno” o brilhante pernambucano.

Já no Rio, no sambódromo idealizado pelo antropólogo mineiro Darcy Ribeiro (1922-1997) – na verdade outro grande educador-sonhador – e projetado pelo arquiteto carioca Oscar Niemeyer (1907-1912), uma espécie de gênio em sua área, o conhecimento científico foi indiretamente homenageado em sua circularidade essencial, uma de suas características, digamos, mais incompreendidas. E garantiu à Unidos do Viradouro o título de campeã que a escola de Niterói, fundada em 1946, não conquistava desde 1997.

Expliquemos um pouco esse lance da circularidade: o enredo “Viradouro de alma lavada” foi baseado no trabalho musical e cênico das “Ganhadeiras de Itapuã”. Criado em 2004, esse grupo artístico tinha desde sua formação o propósito de resgatar culturalmente a força das mulheres trabalhadoras “de ganho” da antiga colônia de pescadores dos arredores de Salvador, imortalizada, entre outras composições, pela bela Saudade de Itapuã, do baiano Dorival Caymmi.

Quem são? Escravas, até o fim do século XIX, que precisavam de recursos para comprar sua liberdade e, adiante, mulheres livres que batalhavam para assegurar sua subsistência e a de suas famílias, valiam-se todas (e valem-se ainda!) das chamadas atividades de ganho – a rigor, um amplo leque de serviços que abarca da preparação e venda, em tabuleiros, caminhando largas distâncias pelas ruas, dos mais variados quitutes (cocadas, pés de moleques, pamonhas, doces, acarajés, abarás etc.) à lavagem de roupas para famílias abastadas (e aí se encaixam as lavadeiras da lendária lagoa do Abaeté), entre vários outros trabalhos.

Sigamos: em 2008, o grupo das “Ganhadeiras de Itapuã”, já com uma presença marcante na cena musical de Salvador, entusiasmou uma pesquisadora de educação musical, com olhar muito atento à atuação das mulheres. Professora da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) desde 1993, Harue Tanaka-Sorrentino, 49 anos, estava então na cidade, para um doutorado na Escola de Música da Universidade Federal da Bahia (EMU-UFBA), esboçando um estudo comparativo dos trabalhos de três diferentes grupos de cultura popular (um feminino, de coco, na Paraíba, um masculino, o Ilê, de Salvador, e um misto, de maracatu, em Pernambuco), quando viu uma apresentação das Ganhadeiras na Casa da Música, em Itapuã.

A paixão foi arrebatadora. E os próximos quatro anos, incluindo um na Universidade do Porto, em Portugal, seriam inteiramente dedicados a compreender e explicar, em termos de educação musical e dentro de marcos acadêmicos, as ganhadeiras de Itapuã e a longa história de resistência, superação e criação musical (afinal, não é isso a música de seus pregões?) das “filhas de ganho” que o grupo busca iluminar com música, movimentos coreografados de seus corpos e transmissão de saberes.

O resultado do mergulho vertiginoso está numa tese de mais de 476 páginas coalhada de fotografias e um volume de anexos que eleva o conjunto a 550 páginas, recheado de músicas, mais um cd e um dvd, defendida na UFBA em 2012.

Ora, quando a Viradouro, que recebera de Zezé Mota um cd do grupo, decidiu tomar as Ganhadeiras de Itapuã como tema de seu enredo, foi essa tese alimento abundante para a concepção do belo e esfuziante desfile na Sapucaí visto, em duas noites/madrugadas (23/2 e 29/2), por alguns milhares de pessoas no sambódromo e, via tv e internet, por milhões de pessoas em qualquer parte do mundo.

De certa forma, foi justamente à circularidade do conhecimento e à cultura científica em espiral, que em sua dinâmica pode atingir públicos cada vez mais amplos, como proposto por Carlos Vogt (A utilidade do conhecimento, editora Perspectiva), que o desfile da Viradouro aludiu: um fenômeno cultural localizado (o coro das Ganhadeiras de Itapuã) é observado e reelaborado como conhecimento científico (a tese); como tal, serve ao ensino de ciência e à formação de novos cientistas no campo considerado; feito espetáculo, atinge o quadrante do ensino para a ciência, à maneira das exposições nos museus e, mostrado no sambódromo, transmitido por potentes meios audiovisuais, volta à sociedade em escala muito mais larga.

O desfile da Unidos do Viradouro parece conter assim, para além de todos os seus notáveis sentidos éticos, estéticos, históricos e políticos, uma estonteante aula magna sobre uma teoria cara aos que se dedicam à divulgação científica.

As Ganhadeiras de Itapuã (Foto: Ricardo Prado/Divulgação)

“Um coro, um grupo, um corpo…”

A frase acima inicia o primeiro capítulo da tese “Articulações pedagógicas no coro das Ganhadeiras de Itapuã”, que carrega o título “As filhas do ganho”. Ela é emblemática para Harue Tanaka porque foi uma das primeiras anotações que, completamente fascinada, fez num pedaço de papel qualquer, com um lápis emprestado, na noite de seu primeiro encontro com o grupo, contou ela ao Ciência na rua.

“Um coro, um grupo, um corpo… Assim são “As Ganhadeiras de Itapuã”. Outros já foram os nomes, dentre eles, “Coro das Ganhadeiras de Itapuã”, mas hoje ficou conhecido por Grupo Musical ou Grupo Cultural Ganhadeiras de Itapuã, Ganhadeiras de Itapuã ou, simplesmente, Ganhadeiras” (página 14).

Na manhã do sábado, 29 de fevereiro, um tanto rouca porque na noite anterior, depois de trabalhar o dia inteiro na universidade, ensaiara para apitar em 8 de março, dia internacional da mulher, uma nação de maracatu, atividade que não faz muito tempo era vetada a mulheres, ela inicia nossa conversa telefônica de duas horas afirmando que “somos todas ganhadeiras. Todas nós lutamos contra as intempéries para ganhar liberdade, lutamos hoje ainda para ter liberdade financeira e não nos submetermos às violências da sociedade patriarcal”.

Harue tem uma trajetória um tanto surpreendente na universidade, porque apenas seis meses depois da graduação em piano, aos 22 anos, e ainda cursando direito na mesma UFPB, tornou-se professora concursada da própria UFPB. Como isso foi possível? A universidade abrira concurso para preencher cinco vagas de professor da Escola de Música e, entre conselhos para que concorresse e outros para que não fizesse essa loucura, ela concorreu. Passou em primeiro lugar (e olhe que entre os concorrentes encontravam-se dois doutores!), preencheu uma das vagas e as demais, não preenchidas em música, foram remanejadas para outras áreas.

Foi, portanto, já na condição funcional de professora que, invertendo os termos de um percurso normal nos dias de hoje, ela fez especialização e mestrado em educação popular na Federal da Paraíba, enveredando já pelas questões de gênero – daí sua dissertação sobre a bateria da escola de samba Malandros do Morro , “Diário de uma ritmista aprendiz” – e, finalmente, chegou à Bahia para o doutorado e a orientação que tanto queria com Alda Oliveira.

A UFBA era então uma das poucas universidades brasileiras a oferecer doutorado em música e Harue visitara anos antes, uma única vez e rapidamente, Alda Oliveira. Ficara bastante interessada na abordagem teórica que a professora desenvolvera sob o nome de Pontes, e é essa abordagem que constituirá o marco teórico da tese sobre as ganhadeiras.

Apenas com cinco dias que estava em Salvador, sua anfitriã a levou para uma apresentação das Ganhadeiras de Itapuã. Ela mal sabia o impacto que isso teria em sua vida. Escreveu na abertura da tese em 2012:

“Quantas são? A princípio pareciam ser tantas que nem consegui contar, mas o que importa? “Somos um corpo só”, diriam elas, uma só voz bradando sons de outrora, remontando a uma época em que as vozes, por vezes, eram sufocadas pelo trabalho; outras, aliviavam a labuta diária” (página 14).

(Foto: Ricardo Prado/Divulgação)

Mal sabia Harue, filha de um casal de profissionais liberais, Kotaro, engenheiro formado pelo Instituto de Tecnologia Aeronáutica (ITA), de São José dos Campos, e Junko, assistente social, irmã mais velha de três rapazes, que Salviano Almeida, produtor executivo das Ganhadeiras, Jenner Salgado, diretor musical, e sua mulher, Rutinalva Sena, e muitas coristas do grupo logo estariam incluídos entre seus grandes amigos, “para o resto da vida”. Esses encontros e lições que a vida vai propiciando sem aviso, ela diz, são um encanto do viver. Seguindo na tese:

Dessas vozes, dependia seu sustento, a busca de um sonho, o direito de “calçar sapatos” através da alforria, sua e de seus filhos e filhas. “Maria de Xindó canta e nós acompanhamos” (pelo microfone, disse Dona Nicinha, cujo apelido adotado por todos do grupo e pela comunidade a impede de usar seu nome artístico como ela preferia – Eunice Jorge). Essa foi a primeira impressão que tive sobre o grupo, na noite de 20 de fevereiro de 2008, quando as vi, pela primeira vez, em uma apresentação na Casa da Música (onde são habitué), localizada na Lagoa do Abaeté2, também chamada de Lagoa Sagrada ou Encantada pelos adeptos da religião do candomblé. A Lagoa é considerada morada de Oxum, orixá feminino, zeladora das águas doces.” (página 14).

A tese de Harue foi quase toda escrita no ano que passou em Portugal, perto de sua co-orientadora, Graça Mota. Ao retornar em 2011, havia que escrever só o último capítulo e se preparar para defendê-la. Mas o que a tese busca, exatamente?

A autora relata que, ao se “deparar com o coro, formado por afrodescendentes e, algumas, descendentes diretas de ganhadeiras”, vislumbrou a perspectiva de “lidar com mulheres que, atuando, retratavam o âmbito de suas próprias atividades laborais cujas práticas representavam (canto e pregão, dança, teatro) parte da história de seus antepassados (escravos e escravas de ganho).”

“Deste modo, encantei-me, também, pela história das ganhadeiras e pela história das Ganhadeiras (do grupo). Por conseguinte, o perfil, principalmente das integrantes desse grupo, influenciou nas diretrizes tomadas pela presente pesquisa, levando-me a optar definitivamente por estudar um grupo cujo núcleo era formado basicamente por mulheres e meninas, ou seja, o que contemplaria parte de um projeto pessoal inicial cujo interesse centrava-se no estudo de um grupo dentro das manifestações culturais brasileiras (nordestinas) com forte presença feminina” (página 22).

Harue havia constatado em seus estudos anteriores de grupos populares (o infantil Cavalo-marinho e a bateria de escola de samba Malandros do Morro) uma forte predominância de homens em papéis femininos, travestidos, e na execução dos instrumentos acompanhadores, enquanto às mulheres reservavam-se os papéis de cantoras e de execução dos chamados instrumentos leves. As Ganhadeiras lhe abriam uma outra possibilidade, a de estudar um coro de mulheres, “(…) notadamente, como as pessoas dentro do grupo aprendiam, particularmente, com o cerne voltado mais especificamente para as articulações pedagógicas supostamente presentes naquele meio. Nesse sentido, o ambiente, o grupo e a proposta de observar tais articulações entre “professores(as) e alunos(as)” tornaram-me cativa do referencial da Abordagem PONTES (AP)” (página 22).

O nome dessa abordagem com a qual Alda Oliveira e outros procuraram entender os mestres da Bahia de música popular, ela explica, é um acrônimo, faz referência a positividade, observação, naturalidade, técnica, expressividade e sensibilidade.

Na noite de 23 de fevereiro, Harue Tanaka chegava ao sambódromo quando suas amadas Ganhadeiras de Itapuã começavam a passar. Era uma tremenda emoção para quem escrevera, quase 10 anos atrás, que o grupo lhe mostrara como era capaz, entre tantas outras conquistas, de desenvolver suas próprias estratégias de aprendizado. E quanto a educação musical mais formal no Brasil ganharia ao se deixar entranhar dessas estratégias populares.

“[Foram] desenvolvendo seu próprio modo de aprender, criar, improvisar, fazer e fruir música, cada vez mais foram se medrando musicalmente através do fazer, experimentar, “tocar de ouvido”, através do ensaio-e-erro, da repetição, da imitação e dos referenciais pessoais de seus pares e das ganhadeiras, com base na experiência prática” (página 475).

À guisa de conclusão, ela diria, entre outras coisas:

“É importante que se frise, ainda, que [as articulações pedagógicas observadas] permitiram também que o estudo em questão despertasse para a necessidade de aplicarmos práticas dos meios populares de música conectando-as à realidade existente no amplo universo de educação musical existente em nosso país” (página 475).

E como não tomar essas práticas como construção de conhecimento ante os desfiles da Sapucaí?

Compartilhe:

Acompanhe nas redes

ASSINE NOSSO BOLETIM

publicidade