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Como fabricar um zumbi… sem matar ninguém

Texto: Alberto Díaz Añel
Tradução e adaptação: Tiago Marconi

‘A noite dos mortos-vivos’ (Image Ten)

Quando falamos de monstros, o tema da morte está sempre presente. Sem dúvidas porque os associamos à intenção de nos matarem, motivo pelo qual geralmente ninguém quer estar perto deles. Mas também algumas dessas criaturas estão diretamente associadas à ausência de vida. Como exemplos, podemos citar o monstro de Frankenstein, que tem uma vida “emprestada” graças à eletricidade, o Conde Drácula, que deve sua vida longa justamente ao fato de não ter nenhuma, ou mesmo a múmia, que, apesar de poder se mover desajeitadamente, não deixa de ser um cadáver que busca vingança pela profanação de sua tumba.

Mas se falamos de mortos-vivos, que exemplo melhor do que os monstros mais bem sucedidos dos últimos anos: os zumbis? Sem dúvidas os vemos com cada vez mais frequência no cinema e na televisão, embora sua fama seja mais tardia do que a de seus colegas monstros, já que começaram a chamar a atenção lá pelos anos 60 do século XX.

O tema dos “mortos-vivos” tem origens muito remotas, que podem remontar a relatos da antiga Mesopotâmia de cerca de 4 mil anos atrás, ou a uma das mais famosas histórias provenientes do Antigo Egito, em que Osíris, após ser assassinado por seu irmão Seth, volta brevemente à vida graças a sua amada Ísis (ainda que esse seja mais território da múmia que dos zumbis).

A partir do século XIX, a literatura resgatou esses personagens, ainda não batizados com o nome pelo qual os conhecemos hoje. para citar alguns exemplos (além do monstro de Frankenstein), podemos nomear ‘Herbert West: Reanimador’ (1922) de H.P. Lovecraft, ou alguns personagens das novelas de Edgar Allan Poe, como ‘A queda da casa de Usher’ (1839) ou ‘A verdade sobre o caso do senhor Valdemar’ (1845). É importante destacar que os mortos “reanimados” pelo personagem de Lovecraft, incontroláveis, violentos e incapazes de pronunciar palavras inteligíveis, foram uma prévia do que várias décadas depois marcaria o estereótipo dos zumbis que hoje conhecemos.

Como sempre, o cinema se encarregou de “modelar” esses monstros, e não foi senão com a estreia de ‘A noite dos mortos-vivos’ (1968), dirigido por George Romero, que o público fixou em suas retinas essas criaturas que voltam da morte, com uma notável decadência de seus corpos, movimentos lentos e desajeitados em grupo, e com fome de carne humana. A história de se alimentarem de cérebros aparece um par de décadas adiante, em ’A volta dos mortos-vivos’ (1985).

A partir do clássico de Romero, os filmes e séries de zumbis não pararam de chegar às salas de cinema e telas de TV. Assim como fomos invadidos por pandemias zumbis originadas por um vírus, como é o caso de ‘Guerra Mundial Z’ (2013) e da saga ‘Resident Evil’ (seis filmes entre 2002 e 2016), ambas inspiradas em videogames.

Cartazes da saga ‘Resident evil’, dos anos 2002, 2004, 2007, 2010, 2012 e 2016, respectivamente

Também desfrutamos de algumas comédias que zombaram impunemente desses personagens, como ‘Todo mundo quase morto’ (2004) e os dois ‘Zumbilândia’ (2009 e 2019). Inclusive alguns roteiristas e diretores se atreveram a parodiar clásssicos da literatura, como em ‘Orgulho, preconceito e zumbis’ (2016), baseado no famoso romance de Jane Austen ‘Orgulho e preconceito’. Para os fãs de séries televisivas, não podemos deixar de mencionar ‘The walking dead’, com 10 temporadas ininterruptas demonstrando que o humano pode ser um inimigo da humanidade ainda pior do que os próprios zumbis, e tampouco nos atreveríamos a esquecer os quse invencíveis “caminhantes brancos” de ‘Game of Thrones’ (2011-2019). E , por último, como esquecer quando os desajeitados movimentos “zumbíferos” foram transformados na célebre coreografia (repetida à exaustão em muitos filmes) do videoclipe ‘Thriller’ (1984), de Michael Jackson?

Fragmento do videoclipe ‘Thriller’ (1984)

De qualquer forma, embora os primeiros zumbis modernos apareçam na obra de Romero, nela não se utiliza esse nome para designar os mortos-vivos, eles são chamados de ghouls, que viriam a ser demônios do folclore árabe que se alimentam de cadáveres. Romero inclui o termo “zumbi” na sequência ‘O despertar dos mortos’ (1978), embora não estivesse muito de acordo com usá-la, já que para ele essa palavra se aplicava especificamente aos escravos “não mortos” descritos no vodu haitiano. Quase quatro décadas antes do filme cult e Romero, outro filme não tão conhecido mostrou claramente a associação entre a religião procedente da África ocidental (e muito arraigada no Caribe) e a criação de mortos-vivos. Chamou-se ‘Zumbi branco’ (1932) e teve como protagonista um feiticeiro vodu interpretado por alguém muito conhecido pelos fãs de terror: Bela Lugosi.

cartaz do filme ‘Zumbi branco’ (Victor & Edward Halperin Productions)

Calma, já estamos nos aproximando da parte científica da história. Não se sabe muito sobre a origem da palavra “zumbi”. Muitos creem que provém da palavra antilhana “jumbie”, que quer dizer fantasma ou espírito, por sua vez derivada de “nzambi”, ou “espírito de uma pessoa morta”, no idioma kongo do centro-oeste da África. A questão é que os atuais zumbis devem seu nome a verdadeiros zumbis que teriam sua origem no terço ocidental da ilha caribenha de São Domingos (sim, onde Colombo pisou pela primeira vez o continente americano), que hoje conhecemos como Haiti.

Então os zumbis existem? Bem, sim e não. Digamos que não são mortos que ressuscitam e andam cambaleando por aí, em busca de um cérebro para se alimentarem, mas de alguma maneira são parecidos com isso. Não seria bem um assunto de vida e morte, mas sim com algumas substâncias que são capazes de enganar nosso cérebro.

Segundo a tradição do vodu haitiano, os zumbis são pessoas que voltam da morte graças à magia dos feiticeiros vodu, conhecidos como bokor. Aparentemente não apenas os ressuscitariam, mas também teriam controle sobre eles, algo muito bem descrito em ‘Zumbi branco’. E para quê fabricar um zumbi? Alguns dizem que os bokor faziam isso como castigo à vítima (e, de quebra, lhes infligiam em vida o temor de serem escravos depois de mortos), mas outros afirmam que o objetivo era ter mão-de-obra escrava para trabalhar nas plantações de cana-de-açúcar.

Parte dessas histórias foi confirmada pelo famoso caso de Clairvius Narcisse, um cidadão haitiano que disse ter sido convertido em zumbi por um bokor. Segundo conta a história, Clairvius foi envenenado por seu irmão após uma discussão e, morto, foi enterrado em 1962. Aparentemente esse veneno não era mais do que uma mistura de substâncias que lhe produziu um estado cataléptico (falaremos disso já já), pelo qual foi declarado morto, embora não estivesse. Pouco depois de seu enterro, um bokor lhe fez ingerir uma pasta feita com outras substâncias que lhe fizeram perder sua vontade e sua memória, e por isso passou a trabalhar como escravo em uma plantação de cana. Após o assassinato do bokor, em 1964, Clairvius recuperou sua sanidade e sua liberdade, mas esperou que seu irmão morresse para voltar a ter contato com a família. Finalmente morreu (dessa vez de verdade) em 1994.

Bem, agora sabemos que podemos criar um zumbi graças a substâncias que de alguma maneira afetam o sistema nervoso de diferentes formas. Em um caso, simulam a morte, em outro, se apoderam da vontade. Mas realmente existem essas substâncias ou é tudo uma fantasia baseada em mitos religiosos caribenhos? A história de Clairvius fez alguns cientistas se interessarem em estudar esses pós e pastas que supostamente os bokor utilizavam para criar seus próprios escravos. Entre eles se encontrava o antropólogo Wade Davis, que nos anos 1980 investigou o tema e conseguiu obter amostras do que se conhece como coupe poudre, ou “pó zumbificador”.

Entre os componentes principais que Davis encontrou no coupe poudre se encontrava a tetrodotoxina, uma neurotoxina produzida no fígado e ovários de algumas espécies de baiacu. No Japão existem cozinheiros que possuem uma licença especial (obtida após rigoroso exame) para cortar esses peixes e preparar um prato muito popular (e potencialmente perigoso) conhecido como fugu. A maestria desses profissionais reside em eliminar as partes do peixe onde a tetrodotoxina está mais concentrada e deixar aquelas em que as doses produzem apenas uma pequena sensação de adormecimento na língua e nos lábios de quem o consome. Hoje em dia, ainda se registram umas poucas mortes por consumo de fugu no Japão, mas a maioria é de pescadores que não têm a perícia suficiente para o tratamento do pescado.

Baiacu em tanque (Chris 73 / Wikimedia Commons), Fugu (pxfuel) e molécula de tetrodotoxina (isizawa / Pixabay)

E como atua a tetrodotoxina em nosso corpo? Bloqueia os canais de sódio que participam na geração do impulso nervoso nos neurônios e no coração (algo que vimos em detalhes em Raios, rãs e monstros: a faísca que nos dá vida). Em grandes doses, é mortal, mas em pequenas doses (como no pó que os bokor utilizam) pode produzir um estado próximo à morte, ou catalepsia, em que se produz uma paralisia quase total dos músculos, e a respiração e o ritmo cardíaco são quase indetectáveis, motivo pelo qual se crê que a pessoa está morta e ela acaba sendo enterrada viva. O pior de tudo é que a toxina não pode chegar ao cérebro, então a pessoa intoxicada permanece consciente e com seus sentidos funcionais.

Para que a zumbificação seja completa, a pessoa é desenterrada uns poucos dias depois, e lhe dão outro pó, que contém outras duas drogas, atropina e escopolamina (essa última também conhecida como burundanga), que são componentes da planta Datura stramonium (falamos um pouco disso em Salada de monstros), mais conhecida como trombeta ou zabumba ou, para que não reste dúvida, “pepino zumbi”. Ambas as substâncias podem se unir a outro tipo de receptores proteicos envolvidos na transmissão do impulso nervoso, os receptores muscarínicos. Em condições normais, esses receptores participam na regulação de processos autônomos que nosso corpo efetua quando descansamos ou após comermos, como salivação, diminuição do ritmo cardíaco, produção de lágrimas, excitação sexual, digestão, micção e evacuação (nada que um zumbi faria). Ao se unir a esses canais, tanto a atropina como a escopolamina atuam como seus bloqueadores, gerando efeitos contrários aos citados, por exemplo, aceleração do ritmo cardíaco e dilatação da pupila. Em doses mais altas, o uso dessas drogas produz um estado de delírio e desorientação, sobretudo devido à geração de alucinações, poendo levar também a uma profunda amnésia. Supõe-se que a administração contínua dessas drogas era o que permitia ao bokor dominar a vontade do novo zumbi e assim escravizá-lo.

Trombeta (FotoRieth / Pixabay) e moléculas de atropina (em cima) e escolpolamina (embaixo)

Nas amostras obtidas por Davis também apareciam outras substâncias tóxicas provenientes do sapo-cururu (Rhinella marina), e componentes irritantes secretados por pererecas dominicanas (Osteopilus dominicensis), junto com restos humanos, de plantas e de outros animais, como lagartixas e aranhas. Nem todos os colegas de Davis estavam de acordo com suas conclusões, já que as substâncias mencionadas, sobretudo a tetrodotoxina, a atropina e a escopolamina, apresentam grandes dificuldades na hora de dosá-las de forma a produzirem os efeitos desejados pelos bokor sem que conduzam a uma morte verdadeira.

Como vimos, os zumbis existiram (ou existem?), e ainda que não se pareçam muito às criaturas canibais popularizadas por George Romero em seus filmes, algo em seus sistemas nervosos não vai muito bem, seja por uma infecção viral ou pela administração de drogas naturais. E, claro, está cada vez mais difícil escapar deles. Mas como a realidade muitas vezes supera a ficção, podemos ficar relaxados quanto a uma hipotética invasão de zumbis comedores de cérebros. Por um lado, e embora pareça inacreditável, o Departamento de Defesa dos Estados Unidos lançou em 2011 uma estratégia para combater um potencial apocalipse zumbi [nota do Ciência na Rua: a estratégia é fictícia, como se vê no link]. Esse plano é conhecido como CONPLAN 8888-11, constitui uma estratégia militar dividida em três partes e até classifica os inimigos em oito categorias diferentes, dependendo da causa de sua transformação em zumbis. Como se não bastasse, o Centro de Prevenção e Controle de Doenças norte-americano também publicou um plano de preparação, para informar ao público sobre como responder em caso de ataque zumbi. Agora podemos dormir mais tranquilos.

Capa da graphic novel ‘Pandemia zumbi’, publicada pelo CDC dos Estados Unidos

Ciência Monstruosa é um projeto do pesquisador e comunicador científico argentino Alberto Díaz Añel, que o Ciência na rua está adaptando para o português. Confira abaixo os textos já publicados.

Vampiros: quanto mais longe, melhor (publicado em 3 de julho de 2020)
Vampiros e doenças do sangue (publicado em 10 de julho de 2020)
Os lobisomens e o crescimento dos pelos (publicado em 17 de julho de 2020)
Podemos matar o que não está vivo? (publicado em 24 de julho de 2020)
Como o corpo se defende? (publicado em 31 de julho de 2020)
O essencial é invisível aos olhos (publicado em 7 de agosto de 2020)

À flor da pele (publicado em 14 de agosto de 2020)
Ciência Monstruosa: os tijolos da vida (parte 1) (publicado em 21 de agosto de 2020)
Ciência Monstruosa: os tijolos da vida (parte 2) (publicado em 28 de agosto de 2020)
Raios, rãs e monstros: a faísca que nos dá vida (publicado em 21 de setembro de 2020)
Salada de monstros (publicado em 16 de outubro de 2020)
Divide e multiplicarás (publicado em 2 de junho de 2021)
As duas ou mais faces da vida (publicado em junho de 2021)

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