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Cobertura dos telejornais pode atuar na proteção contra o racismo

 

Espancamento em loja do Carrefour de Porto Alegre em 2020 é consideravelmente mais lembrado por telespectadores dos jornais que deram destaque ao caso, conclui pesquisa

Wladimir Gramacho* e Carlos Oliveira**, The Conversation Brasil

Manifestação em filial do Carrefour, no Rio, contra o espancamento até a morte de Beto Freitas ( Foto: Carl de Souza/AFP))

 

Apesar de, durante muito tempo, o mito da “democracia racial” ter sido difundido no Brasil, a compreensão atual é de que o país sustenta estruturas racistas em diversos níveis e aspectos sociais.

Atlas da Violência 2021 revela que a chance de uma pessoa negra ser morta é 2,6 vezes superior à de uma pessoa não negra, o que representa uma vulnerabilidade 162% maior à violência letal. Mas a cobertura dos telejornais sobre casos de racismo pode ser uma proteção importante à população negra no país, como procuramos explicar neste artigo.

Sabe-se que a cobertura midiática pode desempenhar um papel crucial na solução de problemas sociais por ter o poder de influenciar a ordem de temas que a opinião pública considera serem importantes. Esse fenômeno, conhecido como teoria do agendamento, sugere que, quando a mídia dá maior destaque a um tema, a opinião pública acaba falando mais sobre esse assunto. Em outras palavras, a mídia não necessariamente influenciaria a forma como as pessoas pensam, mas sim sobre o que elas pensam e conversam. Ainda que essa teoria tenha mais de 30 anos, não havia ainda um estudo sobre esse efeito no Brasil.

O caso que estudamos ocorreu em 19 de novembro de 2020, véspera do Dia da Consciência Negra, quando o mecânico João Alberto Silveira Freitas foi espancado e asfixiado por dois seguranças brancos numa loja do Carrefour, em Porto Alegre (RS). Sua morte foi amplamente divulgada pela mídia, que, naquele ano, também havia dado destaque ao caso de George Floyd, assassinado nos Estados Unidos em condições semelhantes.

Nosso trabalho realizou uma análise de conteúdo do Jornal Nacional e do Jornal da Record sobre o assassinato de João Alberto, durante os 14 dias seguintes à sua morte. Depois, aplicamos uma pesquisa de opinião (survey) a 2.017 indivíduos para saber de que notícias mais se lembravam. Os resultados foram publicados dias atrás na revista Contemporanea.

Na primeira etapa, classificamos e descrevemos cerca de 21 horas de conteúdo desses dois programas ao longo de duas semanas após a morte de João Alberto. Identificamos que cada jornal cobriu o caso de formas bastante distintas. Durante esse período, o Jornal Nacional dedicou quase uma hora (9,35%) de todo seu conteúdo ao caso, enquanto o Jornal da Record dedicou apenas doze minutos (1,92%) ao assunto.

Os outros temas noticiados pelos telejornais, entre o mesmo período dos dias 20 de novembro e 3 de dezembro de 2020, também foram bem diferentes. As pautas do JN foram majoritariamente compostas pela pandemia de Covid-19 (16,44%), a política brasileira e as eleições municipais daquele ano (13%), a vacina contra a Covid-19 (9,36%), o caso João Alberto (9,35%) e o meio ambiente (9,10%).

Por outro lado, no JR, as prioridades foram a política brasileira e as eleições municipais (10,26%), a pandemia de Covid-19 (9,65%), a economia (9,29%), a violência em geral (8,04%), e o presidente Jair Bolsonaro (7,61%).

Além da diferença de cobertura sobre o caso João Alberto, a composição da pauta do JR deu menos espaço para notícias sobre a pandemia e a vacina contra a Covid-19, e reservou maior tempo às ações do presidente Jair Bolsonaro e ao debate sobre a economia. Esse resultado reforça descobertas anteriores que indicam uma cobertura mais favorável ao governo Bolsonaro pelo Jornal da Record do que pelo Jornal Nacional, e que mostram como a audiência do Jornal da Record foi mais reticente a vacinar seus filhos e filhas contra a Covid-19.

Audiência do JN lembra mais

Na segunda etapa, examinamos as respostas de 2.017 entrevistados em uma pesquisa de opinião (survey) on-line, cuja implementação ficou a cargo do Instituto Brasileiro de Pesquisa e Análise de Dados (IBPAD). A amostra incluiu cotas de idade, gênero, região e classe social, com 48% dos participantes declarados negros.

Nosso interesse aqui era saber de que notícias mais se lembravam. Para não criarmos viés sobre as respostas, utilizamos perguntas abertas, logo no início do questionário. Perguntamos qual era a notícia recente de que mais se lembravam. Em seguida, perguntamos de que outra notícia se lembravam, obtendo assim as duas principais lembranças de cada entrevistado.

Nossa análise estatística revelou que quem assistia com maior frequência ao jornal da TV Globo citou o caso “João Alberto” ou “racismo” como notícias das quais mais se lembravam em primeiro ou segundo lugar. O mesmo não ocorreu com quem declarou que assistia mais ao jornal da TV Record.

Levando em consideração que o Jornal Nacional noticiou o assunto quase quatro vezes mais que o Jornal da Record, inferimos que a maior cobertura televisiva – mesmo em tempos de utilização intensiva da internet, redes digitais e aplicativos de troca instantânea de mensagens – tem o poder de manter um tema presente na mente das pessoas, como sugerido pela teoria do agendamento.

O fato de assistir ao JN foi a única variável analisada que resultou numa associação estatisticamente significativa com a lembrança dessa notícia, conforme a figura abaixo, descartando qualquer influência de fatores sociodemográficos, incluindo a raça dos participantes do estudo.

Coeficientes de um modelo de regressão logística que estima as chances de mencionar o assassinato de João Alberto ou o racismo como assuntos mais lembrados do noticiário. Pesquisa Quem se lembra de João Alberto: Efeitos de agendamento da TV sobre um caso de racismo

Podemos concluir, portanto, que a maior exposição de um tema pelo noticiário tende a estar associada a uma maior lembrança do assunto pela audiência. Nesse caso, também foram percebidos efeitos de agendamento do JN no caso da pandemia de Covid-19 e da vacina contra a doença. O JN exibiu 64% a mais de conteúdo sobre a pandemia no período analisado e 82% a mais sobre a vacina do que o JR.


*Pesquisador visitante na Universidade Laval (Canadá), Coordenador do Centro de Pesquisa em Comunicação Política e Saúde Pública (CPS), Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília (FAC/UnB)

**Pesquisador do Centro de Pesquisa em Comunicação Política e Saúde Pública, Universidade de Brasília (UnB)

Declaração de transparência

O estudo científico no qual foi baseado este artigo é resultado do projeto de pesquisa “A comunicação no enfrentamento da pandemia de COVID-19”, financiado pela Fundação de Apoio à Pesquisa do Distrito Federal/FAP-DF (00193-00000229/2021-21) e pelo Comitê de Pesquisa, Inovação e Extensão de combate à COVID-19 da UnB/COPEI (23106.102855/2021-24). O estudo reportado neste artigo contou com a consultoria de programação, tratamento e coleta de dados do Instituto Brasileiro de Pesquisa e Análise de Dados (IBPAD).

Carlos Oliveira não presta consultoria, trabalha, possui ações ou recebe financiamento de qualquer empresa ou organização que poderia se beneficiar com a publicação deste artigo e não revelou nenhum vínculo relevante além de seu cargo acadêmico.

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