Rafael Grohmann, DigiLabour*
foto da home: arquivo pessoal
Depois de publicar A Ciência do Comum (em português e inglês) e Pensar Nagô, Muniz Sodré, professor da UFRJ, agora está pesquisando a lógica algorítmica da sociedade incivil e como os algoritmos sequestram a fala comum. No último domingo, 10 de novembro, Sodré publicou na Folha de S. Paulo o texto “Sociedade Incivil e Barbárie”, em que já trata do assunto. O recém nomeado membro da Academia de Letras da Bahia conversou com aDigiLabour sobre o que tem chamado de sociedade incivil, como os algoritmos operam a partir disso e como retomar o “comum”. Recomendamos também a entrevista que fizemos em 2015 com Muniz Sodré: “a comunicação eletrônica é epistemóloga”.
DIGILABOUR: O que você tem chamado de sociedade incivil?
MUNIZ SODRÉ: O que estamos chamando de sociedade incivil é um novo tipo de máquina tecnossocial. Não mais apenas uma máquina pública, isto é, não mais apenas a do Estado e sim todas as máquinas organizacionais (empresas, fundações etc.) do capital, comprometidas com a reorganização do mundo pela tecnociência e pelo mercado, assim como informacionalmente articuladas. Dessa articulação daria conta o conceito de midiatização, fenômeno complexo e politicamente avesso à regulação do Estado e parceiro de formas novas de institucionalização. É nesse contexto que a hegemonia do capitalismo financeiro, da cultura algorítmica e do biopoder dá margem à hipótese de emergência de uma espécie de ponta-cabeça da velha sociedade civil, onde mutações socioeconômicas desconstroem os laços representativos entre povo e Estado –– portanto, a política em sua forma parlamentar –– em benefício de formas tecnológicas e mais abstratas de controle social. Para autores como Michael Hardt, essas mutações constituiriam evidências do evanescimento da sociedade civil, tal como reinterpretada por Gramsci, na esteira do pensamento hegeliano–– conceito que, como já vimos, tem servido para a sustentação de diferentes posições políticas em países de todo o mundo, como uma espécie de atributo essencial de qualquer democracia, por indicar a infraestrutura institucional de mediação política e negociação pública. Mas Hardt fala em sociedade “pós-civil”… Disso discordamos por não concebermos um “pós” à hegemonia. Trata-se mesmo de uma luta por hegemonia em novos termos.
DIGILABOUR: De que maneiras essa sociedade civil apresenta lógicas algorítmicas?
SODRÉ: No âmbito expansivo da midiatização (articulação estrutural da mídia com organizações e instituições sociais), a comunicação eletrônica converte as tecnologias da informação em dispositivos de machine learning (expressão mais corrente para inteligência artificial) e, por meio da rede eletrônica, introduz um novo paradigma, com uma estrutura de interconexão invisível, em que tudo é, ao mesmo tempo, conexão e passagem na superfície reticular –– e na interioridade das pessoas, tornadas meros relés de transmissão ––, assim como segredo criptográfico (com horizonte de tecnologia quântica) nos subterrâneos operativos. Trata-se de verdadeiro oligopólio, ao mesmo tempo econômico e cultural ––– mas predominantemente maquinal –– das variáveis que compõem a existência do sujeito em sua cotidianidade. Ou seja, o efeito oligopolístico de rede, produzido por economia, cultura e eletrônica, implica um verdadeiro sequestro da fala comum por algoritmos ––– portanto, uma substituição do campo semântico consensual por idioletos técnicos irrespondíveis ––– assim como uma redução a zero do pensamento ponderado. A velocidade é o vetor de um novo tipo de exaustão do sentido, em que a palavra não significa nada ou pode mesmo significar o seu contrário, a depender do modo de circulação ou, mais pontualmente, a depender do sistema a que pertence.
DIGILABOUR: Como você tem compreendido o papel dos algoritmos na comunicação contemporânea?
SODRÉ: Em termos organizacionais ou empresariais, tudo gira ao redor da indústria do século XXI: a tecnologia da informação, a partir da qual o substrato real do fenômeno pode ser designado como inteligência artificial. Esta expressão serve para caracterizar o que alguns designam como “a quarta revolução industrial”, definida pela combinação da inteligência artificial de robôs com seres humanos. Para a adequada compreensão dessa interface homem-máquina, dois termos impõem-se: algoritmo e conectividade. Algoritmo é um processo iterativo e finito (um conjunto de regras lógicas) destinado à resolução de problemas ou à execução de tarefas. Conectividade é o acesso instantâneo tanto a pessoas quanto a objetos. São termos técnicos, mas também bandeiras de uma nova utopia, que se manifesta no discurso dos especialistas em computação como a de “um mundo inteligente, conectado e seguro”. Não se trata, portanto, de progresso técnico stricto-sensu, mas de tecnologia em sentido amplo como possibilidade de transformação de indústrias, de produção de novos modelos de negócios e, mesmo, de subjetividades. O discurso crítico a todo esse processo costuma visar os predicamentos de uma globalização financeira avessa à realidade existencial das populações e teleguiada pelos imperativos do capital-mundo. Nessa crítica, comunicação não seria a pura e simples materialidade tecnológica de máquinas e redes, ou seja, a evolução da rede eletrônica não é um mero aspecto técnico (aumento de velocidade para a telefonia, maior definição de imagens etc.) e sim uma espécie de ponto de viragem organizacional em que o fluxo de dados em tempo real para a realidade virtual enseja uma ordem social de conexões perfeitas entre entidades humanas ou não. Trata-se de um novo ordenamento societário.
DIGILABOUR: Como resgatar o comum em meio às lógicas algorítmicas?
SODRÉ: O agir coletivo pode ser constitutivo de um comum. Ou se poderia também dizer constitutivo do com, que filósofos apõem a termos designativos de coexistência e convivialidade etc.: ser-com, estar-com etc. Os atos de perceber, sentir, pensar, conhecer, empenhar-se e fazer implicam o levar-se a si mesmo ao encontro (“com”) de um comum, que é o centro aglutinador da instituição. Não se trata de nenhuma “essência” da vida social, mas de uma convergência de ações que institui um sentido de coletividade e pertencimento. Para Laval e Dardot, comum é o princípio que anima a atividade coletiva dos indivíduos e preside ao mesmo tempo à forma de autogovernos políticos e locais. Ambos empenham-se em “refundar o conceito de comum de forma rigorosa, rearticulando práticas que no dia de hoje encontram nele o seu sentido com certo número de categorias institucionais, às vezes muito antigas, que fizeram do comum, na história ocidental, um termo ao mesmo tempo valorizado e maldito”. Esse conceito vem ocupando o centro das preocupações teóricas de filósofos, juristas e economistas que, segundo Laval e Dardot, “têm multiplicado os seus trabalhos, constituindo assim pouco a pouco o domínio cada vez mais rico dos commons studies”. Mas o desafio, para eles, consiste em “passar do plano das experiências concretas dos commons (no plural) a uma concepção mais abstrata e politicamente ambiciosa do comum (no singular). Em resumo, comum passou a ser o nome de um regime de práticas, de lutas, de instituições e de investigações que apontam para um futuro não capitalista”.