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A língua como tecnologia de resistência e reinvenção

reportagem de Lucas Veloso

Com organização de Ailton Krenak, evento em SP e no RJ debateu extinção de línguas indígenas

Ailton Krenak (foto: acervo MCI)

Sábado, 10h30 da manhã, com um calor beirando os 30ºC em São Paulo, o ambientalista e ativista indígena Ailton Krenak subiu ao palco para discursar a uma plateia ansiosa e interessada nas palavras do mais recente membro da Academia Brasileira de Letras. Logo nas primeiras falas, comentou sobre sobre a importância da língua, sobretudo dos povos indígenas brasileiros.

“As línguas são uma tecnologia de resistência, mas também de reinvenção de nós mesmos”, comentou. “Abordar a língua materna nesse sentido vai além de todo o esforço que as academias fizeram nos últimos 30 anos e de todas as agências que alertaram sobre a pré-erosão das línguas do planeta”.

O problema do desaparecimento afetou o indígena diretamente. Sua etnia, o povo Krenak, sofreu um desastre na história do contato com a língua dos colonos e dos vizinhos, que foi consumindo a memória linguística dos seus avós e bisavós. A ponto de sua geração, que agora está com cerca de 70 anos, não ser mais falante da língua desde a infância. Hoje, ele defende que, se a potência da língua for perdida, a capacidade de intervir no mundo também diminui.

As conversas foram frutos do evento Língua Mãe, ocorrido nos dias 18 e 19 de maio, em São Paulo, no Museu das Culturas Indígenas do Estado de São Paulo, e dia 22, no Rio de Janeiro, no Centro Cultural Banco do Brasil.

Nas palavras de Krenak, o evento foi pensado para debater e pensar a afirmação das diversas línguas indígenas na cena da disputa política pelos territórios originários e seu apagamento ao longo dos séculos, mas também evidenciar os esforços para revitalização dessas línguas. Criado como um “encontro-ritual”, a curadoria das atrações ficou nas mãos do indígena e da dupla formada pela filósofa e escritora Suely Rolnik e Andreia Duarte, diretora de cinema.

A extinção das línguas

A mobilização em prol das línguas se justifica. Em 2016, a Organização das Nações Unidas (ONU) proclamou que 2019 seria o ‘Ano Internacional das Línguas Indígenas’. Na época, a partir de dados do Atlas das Línguas Ameaçadas no Mundo, publicado em 2010 pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), calculava-se que 40% das línguas indígenas corriam o risco de desaparecer, sendo a maioria delas de povos indígenas. A estimativa era de que, a cada duas semanas, uma língua dessas populações desaparece e, assim, extingue parte dessas próprias culturas.

O encontro também abriu diálogo com a Década Internacional das Línguas Indígenas, instituída pela Unesco para o período de 2022 até 2032. A organização reconhece que estas línguas guardam saberes ancestrais sobre seus territórios, sobre a floresta, sobre os processos de cura e são instrumentos de combate contra a crise climática.

“Ora, se as árvores podem acabar, se as pedras podem derreter, se nós mesmos podemos derreter em algum tempo e não sermos capazes de utilizar só as mentes na terra devido ao aquecimento excessivo, precisamos buscar tecnologias para nos preparar”, indicou Krenak. Para ele, a extinção de uma língua é a perda de um modo de vida. Quando uma língua desaparece, um modo de vida deixa de estar no catálogo da humanidade. “Aqui, vejo a importância de nossa resiliência e das possibilidades de escapar das adversidades que a humanidade enfrenta”.

Ainda segundo o indígena, ao ocupar uma cadeira na Academia Brasileira de Letras, notou a “monotonia do monolinguismo”. Foi aí que se sentiu na obrigação de levar “uma sinfonia de 305 povos com suas línguas” para a instituição. “Uma língua pode dormir e ser revitalizada. Não são apenas os indígenas que correm risco de perder sua cognição e expressão linguística. Esse ninho da palavra envolve uma maneira maravilhosa de entender o mundo”, emenda.

O evento

Na primeira edição, a curadoria procurou reunir nos encontros, ao longo de três dias, ao lado de apresentações, exemplo do Grupo Miitxya Fulni-ô, de Águas Belas, Pernambuco, e performances, como de Lilly Baniwa representantes de povos de diferentes territórios – Maxakali, Krenak, Guarani, Tupi, Baniwa, Kokama, Pataxó, Terena,  Kaingang, Xavante, Guajajara, além de pesquisadores e ativistas das línguas indígenas para tratar dessa questão cara ao Brasil: a monocultura da língua portuguesa.

“O que acho mais interessante pensar é que essas línguas, e no caso do Brasil, as mais de 300 línguas, instituem outros mundos que não apenas esse que estamos acostumados. Ao fundar outras formas de viver por meio da linguagem, isso nos dá muitas possibilidades de prospectar como podemos criar a nossa vida, pessoalmente e coletivamente”, afirmou Andreia Duarte, uma das curadoras.

Já na opinião de Suely Rolnik, os movimentos dos indígenas e dos afrodescendentes têm ativado suas línguas ancestrais. “Juntar vozes destes movimentos que operam na direção deste tensionamento, injetando a música que se compõe entre elas nas veias do corpo social brasileiro, é o gesto com o qual o evento participa deste movimento”.

Para Krenak, a curadoria do evento serviu para para entender o que está acontecendo com as línguas nativas do planeta, uma preocupação que deveria ser mundial, segundo ele. “É impressionante como a ecologia das línguas está sofrendo a mesma erosão que os ecossistemas naturais. Nosso encontro tem uma motivação histórica e uma causa imediata”.

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