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A corrida colonial das big techs

Bruno de Pierro

Pesquisadores unem esforços para entender como grandes empresas de tecnologia estão inaugurando o que consideram ser uma nova era colonial

Imagem: Gerd Altmann / Pixabay

A noção de que coletar e comercializar quantidades imensas de informações pode ser um negócio altamente lucrativo não é de agora. Em 2006, o matemático britânico Clive Humby declarou que “os dados são o novo petróleo.” A expressão virou mantra repetido até hoje por executivos de gigantes do setor de tecnologia digital, as chamadas big techs. Porém, diferentemente do combustível fóssil, dados não são recursos naturais. Precisam ser produzidos, apropriados e processados para que gerem riqueza. A formação de um mercado global de dados, nos últimos anos, fortaleceu articulações entre o capital financeiro e as plataformas digitais, contribuindo para o avanço da inteligência artificial e da internet das coisas. O desenvolvimento de tais tecnologias, por sua vez, depende do abastecimento contínuo de dados da população extraídos de fontes diversas, como mídias sociais e sistemas de computação em nuvem disponibilizados por empresas de tecnologia a hospitais, escolas, universidades e órgãos governamentais.

Dispondo de bases de dados cada vez mais variadas, as big techs conseguem explorar padrões de comportamento de consumidores, comercializar perfis para departamentos de marketing e melhorar o desempenho de seus algoritmos de aprendizagem de máquina, a fim de analisar e identificar tendências para o desenvolvimento de novos produtos e serviços. “É um tipo de exploração que busca converter os fluxos da existência humana em dados”, disse ao Ciência na rua o filósofo mexicano Ulises Mejias, professor da Universidade do Estado de Nova York (SUNY), nos Estados Unidos.

“A extração deliberada de informações pessoais resulta, em última instância, em uma nova forma de colonização da vida”, afirma Mejias, um dos fundadores da Tierra Común, uma rede de pesquisadores de vários países, entre eles Brasil, Argentina, Itália, Reino Unido e Estados Unidos, lançada em 2020 com o objetivo de estabelecer o chamado “colonialismo de dados” como campo de pesquisa nas ciências sociais. Influenciado por estudos decoloniais – que propõem revisar o processo de construção histórica da modernidade, evidenciando seus efeitos nos países e nas populações que foram colonizadas – o grupo busca oferecer uma abordagem inédita à análise dos impactos políticos e socioeconômicos relacionados à atuação das big techs no mundo.

Para Mejias, o fato de algumas poucas empresas lucrarem com a exploração de dados, muitas vezes gerados a partir de informações de interesse público, deve ser entendido não apenas como uma nova face do capitalismo, mas como a continuação de uma longa e complexa história do pensamento colonial. “O que ocorre hoje com os dados encontra respaldo no colonialismo histórico, que perpetua sua lógica na sociedade contemporânea por meio de novas relações de exploração e dominação.”

Embora guarde semelhanças com a exploração de riquezas naturais e minerais que marcou o período colonial ao longo de vários séculos, o colonialismo de dados apresenta peculiaridades que eliminam a simples oposição entre “metrópoles ricas” e “colônias pobres”, disse ao Ciência na rua o sociólogo britânico Nick Couldry, da London School of Economics and Political Science, no Reino Unido. “O colonialismo de dados promovido pelas big techs produz efeitos mais acentuados em países em desenvolvimento”, reconhece. “No entanto, o problema é global, afinal a extração de dados pessoais também ocorre em países desenvolvidos.”

Na avaliação de Couldry, o fenômeno assinala o início de uma nova era, impulsionada nos últimos tempos por movimentos de privatização e desapropriação dos serviços públicos – tendência sustentada por políticas de austeridade. Couldry e Mejias tratam do assunto no livro The costs of connection: How data is colonizing human life and appropriating it for capitalism (Stanford University Press, 2019).

“A oferta de plataformas que auxiliam na gestão de inúmeras atividades administrativas representa um alívio para muitas instituições públicas que precisam reduzir gastos com pessoal e com o processamento de dados”, informa Couldry. Muitas dessas plataformas, ele explica, são oferecidas gratuitamente por empresas de tecnologia, interessadas em abastecer seus sistemas de inteligência com uma massa gigantesca de dados. Mejias e Couldry chamam a atenção para o fato de que o papel de “guardião de dados públicos” tem sido transferido do Estado para big techs como Amazon, Google, Facebook e Microsoft, que dispõem de capacidade computacional extraordinária.

Google Data Center, em Iowa, nos Estados Unidos (foto: Chad Davis)

Os pesquisadores observam que governos do Sul global, que inclui países em desenvolvimento e ex-colônias de industrialização tardia, estão mais dispostos a firmar parcerias com multinacionais digitais, a maioria sediada em clusters tecnológicos como o Vale do Silício, na Califórnia. “Embora ainda tenham poder e legitimidade para coletar dados públicos, essas nações optam por ceder essa função a corporações estrangeiras, capazes de fornecer soluções ‘disruptivas’ já prontas”, sublinha Mejias.

Nos países mais ricos, a transformação de ações e comportamentos humanos em dados – ou “dataficação”, como cunhou a pesquisadora holandesa José van Dijck, da Universidade de Utrecht, nos Países Baixos – também é uma realidade, mas enfrenta mais resistência. “Países como França e Alemanha têm suas próprias empresas de tecnologia digital com capacidade de desenvolver sistemas inteligentes e processar grandes quantidades de dados”, explica o sociólogo Sérgio Amadeu da Silveira, do Centro de Engenharia, Modelagem e Ciências Sociais Aplicadas da Universidade Federal do ABC (UFABC). “Isso cria uma espécie de barreira que impede o escoamento deliberado de dados para os supercomputadores das big techs norte-americanas”, diz Silveira, que integra o grupo Tierra Común.

O pesquisador cita o exemplo do Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados, aprovado em 2016 pela União Europeia (UE). “Essa legislação não se preocupa apenas em garantir a privacidade dos indivíduos, mas também chama a atenção para a dimensão econômica da relação entre governança de dados e dependência tecnológica.”

Em julho do ano passado, a Justiça da UE invalidou a transferência de dados pessoais entre os países do bloco e os Estados Unidos por considerar que o pacto Privacy Shield não os protegia de forma adequada, afetando empresas que operam no continente europeu, mas armazenam seus dados no outro lado do Atlântico, como Google e Facebook.

O Privacy Shield é um acordo celebrado em 2016 entre a Comissão Europeia, órgão executivo da UE, e o governo dos Estados Unidos, autorizando a transferência de informações de cidadãos europeus para banco de dados sediados naquele país. Em dezembro, Wojciech Wiewiorowski, supervisor de proteção de dados da União Europeia, declarou à imprensa que um novo acordo de transferência de dados entre o bloco e os Estados Unidos não deverá ser assinado tão cedo.

No Brasil, a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD), em vigor desde setembro de 2020, busca garantir ambiente mais seguro e controlado para o processamento de dados administrativos e institucionais. Contudo, para Silveira, a LGPD não tem robustez suficiente para frear o avanço do colonialismo de dados promovido pelas big techs no país. “A lei leva em consideração a proteção de dados pessoais apenas do ponto de vista individual, não coletivo. Não impede, por exemplo, que informações de interesse público ou mesmo estratégicas, como cadastros de órgãos de governo e de universidades públicas, sejam processados fora do país.”

Avanço do “solucionismo”

A crise econômica agravada pela pandemia reforçou o discurso do “solucionismo tecnológico”, conceito desenvolvido pelo bielorrusso Evgeny Morozov, estudioso dos efeitos sociais e políticos das tecnologias digitais. “As empresas de tecnologia, depois de se apossarem de um dos mais preciosos recursos contemporâneos – os dados –, agora têm influência sobre governos sem dinheiro e sem imaginação e podem, assim, se vender como salvadoras inevitáveis e benevolentes aos burocratas”, avalia Morozov no livro Big Tech: a ascensão dos dados e a morte da política (Ubu, 2018).

Para Morozov, o solucionismo promovido pelo Vale do Silício considera que qualquer problema da sociedade pode ser resolvido por meio de aplicativos, sensores e softwares inteligentes fornecidos por startups. Silveira chama a atenção para o fato de que o isolamento social impulsionou o uso de sistemas de compartilhamento de conteúdo em nuvem, especialmente no campo da educação. “A maioria desses serviços é gratuita, mas exige cadastramento de pessoas e instituições, o que significa mais dados entrando nos datacenters das empresas.”

Não por acaso o faturamento das cinco maiores companhias de tecnologia em valor de mercado – Apple, Amazon, Alphabet (que controla o Google), Facebook e Microsoft – multiplicou-se nesse período. Segundo informações da agência Dow Jones Newswires, essas empresas registraram aumento de 18% da receita no trimestre encerrado em setembro.

O caso da Microsoft é emblemático: nos primeiros meses da pandemia, o faturamento da Azure, a plataforma de nuvem da multinacional, cresceu 47% em comparação com o mesmo período em 2019. A demanda por esse tipo de serviço aumentou com a intensificação do trabalho remoto, em virtude da quarentena. Plataformas como Azure e Google Cloud são gratuitas para funcionalidades básicas. Para utilizar todos os recursos do sistema, o usuário precisa pagar.

USP adota ferramentas do Google desde 2016 (foto: Hector.carvalho CC BY-SA 3.0)

Coleta de dados em universidades

Um dos setores mais assediados pelas big techs é o da educação superior, como mostra um mapeamento feito pela Iniciativa Educação Aberta, composta pela Cátedra Unesco em Educação a Distância (EaD) da Universidade de Brasília (UnB) e o Instituto Educadigital. O estudo constatou que mais de 70% das universidades públicas brasileiras têm seus servidores de e-mail delegados a empresas como Microsoft e Google. “Por meio do uso de plataformas dessas empresas, grande parte das instituições entregou dados pessoais de seus funcionários e alunos para essas companhias”, informa Tel Amiel, professor da Faculdade de Educação da UnB e coordenador da Cátedra Unesco em EaD.

Um mapa com a distribuição geográfica das universidades que utilizam serviços de empresas digitais está disponível no site Educação Vigiada. Uma delas é a Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) que, procurada pela reportagem, informou apenas que o tema ainda está em discussão interna. A Universidade de São Paulo (USP), que também integra o levantamento, confirmou que adota desde 2016 ferramentas gratuitas do G Suite for Education (atualmente denominado Workspace), uma plataforma do Google que permite, entre outras coisas, armazenar e compartilhar documentos em nuvem e utilizar serviços de e-mail customizados para o ambiente acadêmico.

“O sistema atende a todas as unidades da universidade, totalizando aproximadamente 250 mil usuários”, informa João Eduardo Ferreira, superintendente de Tecnologia da Informação (TI) da USP. Ele explica que o gerenciamento das contas é de total responsabilidade da USP. “O convênio e o contrato assinados com o Google asseguram que os dados da universidade não podem ser explorados nem publicizados pela empresa.” Ferreira conta que a Superintendência de TI chegou a avaliar a viabilidade técnica e financeira de diferentes plataformas digitais, incluindo opções de software livre. “À época, concluímos que as soluções do Google apresentavam a melhor relação custo-benefício a curto, médio e longo prazo.”

Ocorre que, em maio, as universidades brasileiras que mantêm parceria com o Google foram informadas pela empresa que o serviço de armazenamento em nuvem deixará de ser ilimitado a partir de 2022. Com a mudança, cada instituição terá 100 TB para dividir entre todos os usuários, conforme informou o site Tecmundo. Devido a isso, algumas universidades já começaram a pensar em alternativas, já que o novo modelo é considerado insuficiente. O Google confirmou que encerrará o serviço ilimitado em julho de 2022. A justificativa é que “o armazenamento não vinha sendo utilizado de forma otimizada.” A USP explicou à reportagem que o contrato hoje em vigor prevê armazenamento ilimitado e que deverá buscar novas opções diante de novos cenários que se apresentem.

Proteção de dados

Parcerias regidas por contratos capazes de garantir que os dados públicos não serão explorados comercialmente são exceções, alerta Amiel. Quando a equipe do mapeamento solicitou os contratos às universidades, verificou que na maioria dos casos as instituições assinaram apenas um termo de uso ou simplesmente fizeram adesão on-line das plataformas. “É uma relação obscura, uma vez que termos não são claros quanto à coleta e o processamento de dados de alunos, professores, funcionários e gestores. Portanto, não temos clareza do risco à violação de privacidade”, afirma.

De acordo com Amiel, ainda que não utilizem as informações das universidades para fins de publicidade, as big techs podem, se acordado pelas partes, explorar dados para fazer previsões e desenvolver novos produtos educacionais para a comunidade acadêmica – uma estratégia de mercado que também ajuda a fidelizar clientes. “Além disso, não é incomum as empresas passarem a cobrar por serviços que inicialmente eram gratuitos ou para aumentar a capacidade de armazenamento em suas plataformas”, informa.

Amiel diz esperar que as universidades brasileiras se adaptem à LGPD, tendo em vista proteger dados pessoais e sensíveis, incluindo matrículas acadêmicas e registros de servidores públicos. Para isso, as instituições precisam investir em infraestrutura computacional e treinamento de pessoal. Silveira, no entanto, faz uma ressalva. “Não se trata de condenar as universidades por estabelecerem esse tipo de parceria com as big techs, porque a maioria delas vem sofrendo, nos últimos anos, com redução de verbas.”

Isso, segundo Silveira, torna ainda mais atraente a possibilidade de utilização de plataformas gratuitas. “Também não é o caso de ser contra o uso de tecnologias digitais. Espera-se que as instituições públicas adotem uma postura mais crítica em relação a essas empresas, ao menos exigindo delas contratos transparentes. Além disso, é preciso apostar em soluções que incentivem o desenvolvimento tecnológico local. Não podemos ser apenas uma colônia para extração de dados.”

Limitações

Obstáculos impostos pelas big techs, como falta de transparência, podem dificultar o desenvolvimento de trabalhos empíricos sobre o tema, reconhece Silveira. Softwares de inteligência artificial desenvolvidos por empresas como Google e Facebook são considerados sistemas opacos ao escrutínio externo – e por isso são chamados de “algoritmos caixa-preta”. “Os estudos sobre colonialismo de dados não podem ficar restritos a discussões apenas teóricas. É preciso produzir pesquisas com base em indícios que possam ajudar a entender como grandes empresas tratam concretamente os dados coletados.”

Silveira iniciou na UFABC uma linha de pesquisa que busca investigar pedidos de patentes depositados pelas big techs. “Para além das informações sobre propriedade intelectual, as patentes geralmente fornecem descrições de como dispositivos ou tecnologias digitais funcionam e o que são capazes de fazer. Analisar esse tipo de conteúdo pode fornecer pistas importantes para inferir sobre o comportamento e as pretensões das empresas.”

Essa abordagem, no entanto, ainda é incipiente. “A dinâmica de comercialização e uso de dados pelas big techs permanece extremamente obscura. Ninguém sabe como essas empresas operam seus bancos de dados”, salienta o brasileiro João Carlos Magalhães, pesquisador do Instituto Humboldt para Internet e Sociedade, na Alemanha. Para aprofundar os estudos sobre colonialismo de dados, Magalhães tem investigado como grandes companhias de tecnologia buscam atuar no fornecimento de soluções inovadoras para a execução de projetos sociais realizados em parceria com órgãos públicos.

Como exemplo, Magalhães cita o Projeto Horus, lançado pela Microsoft na Argentina, que busca automatizar o monitoramento de programas sociais. Em outubro, o governo da Paraíba anunciou a implantação da iniciativa no município de Campina Grande, que deve adotar um sistema de inteligência artificial da Microsoft para coletar dados de famílias beneficiárias do programa Criança Feliz, criado em 2016 pelo governo federal, que oferece auxílio a gestantes, crianças de até 3 anos e suas famílias inscritas no Bolsa Família.

A Microsoft comunicou que está empenhada em garantir que seus sistemas de inteligência artificial sejam desenvolvidos com responsabilidade e guiados por princípios éticos. “Nossa abordagem em relação à privacidade e proteção de dados é baseada na crença de que os clientes são donos dos seus próprios dados”, informou a empresa por meio de nota enviada à reportagem.

“A tecnologia em si pode contribuir para análises de programas sociais e a melhoria de ações no setor público”, reconhece Magalhães. “Porém, as big techs não são motivadas apenas pelo senso de responsabilidade social quando decidem se envolver em iniciativas desse tipo.” De acordo com o pesquisador, dispor de dados mais diversos – que também incluam informações de grupos sociais mais vulneráveis – ajuda a treinar algoritmos de inteligência artificial.

Empresas como Google, Facebook e Microsoft são cada vez mais pressionadas a instituir processos para que suas plataformas digitais reconheçam diversidades étnico-raciais e de gênero. Sabe-se que mecanismos de busca e mídias sociais reforçam preconceitos.

“O colonialismo de dados reproduz padrões de dominação de grandes centros urbanos e de grupos demográficos específicos quanto a raça, classe e gênero”, analisa Tarcízio Silva, que em sua pesquisa de doutorado em desenvolvimento na UFABC investiga casos de racismo algorítmico. Nesse sentido, novas relações assimétricas de poder são observadas. “A existência de um oligopólio tecnológico, que domina grande fatia da produção intelectual e comunicacional dos cidadãos, é empecilho para o uso construtivo da internet voltado para o bem social”, diz Silva, que também é pesquisador da Mozilla Foundation, nos Estados Unidos.

Alternativas concretas

Incentivar a utilização de softwares livres de código aberto, especialmente em instituições públicas, é fundamental, defende Mejias, da SUNY. Muitos desses sistemas executam as mesmas funções que programas desenvolvidos por grandes corporações. Um exemplo é o NextCloud, um serviço de hospedagem de arquivos semelhante ao Google Drive. “A vantagem do software de código aberto é que o usuário tem autonomia para operá-lo em seus próprios servidores, podendo customizar ferramentas de acordo com seus interesses”, explica Tel Amiel, mencionando uma iniciativa lançada recentemente no âmbito da parceria entre a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) e a UnB.

Trata-se do site Escolha Livre, que disponibiliza um guia com recomendações de recursos tecnológicos abertos para educadores e gestores de universidades. “A utilização de sistemas próprios de gerenciamento de arquivos ocorre apenas em casos isolados”, diz Amiel. “Adotar softwares livres para gerenciar sistemas de informação de universidades e outros órgãos públicos é viável, mas exige vontade política.” A incorporação dessas tecnologias também demanda mobilização de recursos e pessoal, reconhece o professor da UnB. “É preciso fazer configurações, adaptar componentes de hardware e dispor de técnicos para a manutenção do sistema.”

Para Silveira, a difusão do uso de softwares livres não diz respeito apenas à vontade política dos gestores. “Muitos nem sabem que há alternativas e outros pensam que programas de código aberto não têm a mesma qualidade daqueles ofertados pelas grandes empresas do Vale do Silício.” Ele ressalta que a condição de colônia digital em que se encontram muitos países do Sul global, entre eles o Brasil, também se expressa no modo como as big techs influenciam a elaboração de leis e planos governamentais que, no fim das contas, ajudam a sedimentar ainda mais o poder que elas detêm.

No final de 2019, o governo federal lançou uma consulta pública sobre a elaboração da estratégia nacional de inteligência artificial. “Analisei as contribuições que foram feitas para a elaboração desse plano. A maioria vinha de empresas internacionais de tecnologia, como IBM, Google e Facebook”, conta Silveira, que destaca um documento publicado pela Business Software Alliance (BSA), principal associação da indústria de software mundial, representante de várias big techs. Nele, a BSA defende que a estratégia brasileira “deve reconhecer expressamente o papel exclusivamente importante que as transferências transfronteiriças de dados desempenham no desenvolvimento e uso da inteligência artificial.”

“O colonialismo histórico gerou alicerces por meio de violência brutal. Já o colonialismo de dados é baseado em relações sociais alinhadas com o capitalismo. A violência, nesse caso, é simbólica, silenciosa e ameaça a liberdade humana”, afirma Nick Couldry, para quem a tradição de pesquisa sobre o colonialismo histórico na América Latina pode colocar a região em posição de destaque nos estudos envolvendo a exploração de dados.

Para isso, é importante que a comunidade acadêmica preserve a autonomia de pesquisas que buscam investigar o impacto da tecnologia na sociedade, afirma Fernanda Bruno, professora do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). “Por mais que universidades estabeleçam acordos com as big techs, para usar suas plataformas ou produzir conjuntamente novas tecnologias, há espaço na academia para que as ciências sociais e humanas lancem um olhar crítico sobre a forma como essas corporações atuam.”

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