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Uma aventura sob medida: a construção da Pesquisa Fapesp – capítulo VI
Divulgação científica

por | 30 ago 2019

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Algumas questões relativas a ciência e tecnologia no Brasil parecem andar em círculos nada virtuosos, ao longo de décadas. Uma delas é um recorrente estado de penúria imposto por governos de distintas orientações à mais antiga agência de fomento à pesquisa no país. Neste ano de 2019, por exemplo, o quase estrangulamento financeiro do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) – sim, porque é dele que se trata – e a ameaça nele contida de deixar mais de 80 mil pesquisadores de todos os níveis, a partir de setembro, sem as bolsas de que dependem para produzir conhecimento e, com frequência, sobreviver, resultam de um contingenciamento de pouco mais de R$ 300 milhões de seu orçamento aprovado.

Quase duas décadas e meia antes, entretanto, em carta publicada na Science de 7 de abril de 1995, Jorge Guimarães, experiente pesquisador e gestor de ciência e tecnologia, naquele momento professor visitante na Universidade do Arizona, parabenizava a equipe responsável por uma anterior edição especial da revista norte-americana dedicada à ciência na América Latina (volume 267, edição 5199 de 10 de fevereiro de 1995) e relatava que, na maior parte do tempo de seu mandato como diretor do CNPq, tivera que lutar contra a administração e a burocracia governamental para manter um orçamento razoável.

“O problema era, e ainda é, conseguir ampliar os auxílios à pesquisa sem afetar o orçamento das bolsas”, dizia Guimarães. Acrescentava que, como a Science apontara, acontecera um “declínio cataclísmico em gastos com P&D no Brasil, especialmente nos anos 1991-1992, o período mais crítico da presidência de Collor de Mello”. Observava ainda que “apesar dessa política irresponsável, a produção da comunidade científica brasileira experimentou um crescimento incrível: as publicações nos mais respeitados periódicos internacionais aumentaram de 2.951 artigos, em 1986, para 4.267, em 1993, e seu impacto também aumentou substancialmente”.

Já no governo de Fernando Henrique Cardoso, em maio de 1997, a edição 20 do Notícias Fapesp informava com certa elegância na primeira página do boletim que “CNPq e Fapesp ampliam cooperação para financiamento de auxílios à pesquisa”. Chamava para a notícia da página 6 (na verdade, 7) que, sob o título “Cooperação entre CNPq e Fapesp viabilizam financiamento a auxílios”, começava por informar que “parte significativa dos auxílios à pesquisa concedidos pelo CNPq, em 1995, para pesquisadores ligados a instituições do Estado de São Paulo, foram assumidos, este ano, pela Fapesp. Um acordo de cooperação entre as duas instituições permitiu que fosse contornado, assim, o atraso na liberação desses recursos para pesquisa, decorrente de problemas de caixa do órgão federal”.

Em razão disso, o texto detalha, estavam sendo financiados pela Fundação, naquele momento, 182 dos projetos contemplados pelo Conselho, no valor global de R$ 2,6 milhões, de um total demandado de mais de R$ 3 milhões. Em contrapartida a esse apoio, o CNPq financiaria parcialmente a participação da Fapesp, da ordem de US$ 4 milhões, no projeto Soar, um grande empreendimento internacional de US$ 28 milhões para a construção e operação de um telescópio de quatro metros de diâmetro no Chile (é importante lembrar que na época havia quase paridade entre real e dólar, com a moeda americana equivalendo a R$ 1,06 no início de maio de 1997) .

O acordo pareceu muito positivo a José Galizia Tundisi, pesquisador dos mais respeitados do país em ecologia e gerenciamento de recursos hídricos, então presidente do CNPq. “Primeiro, porque articula recursos estaduais e federais e aprofunda a relação entre agências federais e estaduais para a resolução de problemas e de financiamento de projetos da área de C&T”, dizia. Para além disso, “liberado de um débito que se arrastava desde 1995”, o CNPq poderia prever recursos para novas demandas com mais tranquilidade, .

São abissais, é claro, as diferenças de tratamento dispensado a ciência e tecnologia e, principalmente, de políticas para o setor baseadas na compreensão de seu papel estratégico em governos tão distantes em sua natureza e práticas quanto os de Collor, FHC e o atual. De todo modo, em termos de financiamento às atividades de pesquisa científica e tecnológica e de uma consequente expansão da produção científica do país, os melhores anos em tempos recentes foram, preferências partidárias e ideológicas à parte, os dos governos de Luís Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff (2003-2016). Os dados nesse sentido são claros e vão aparecer com a evolução desta narrativa.

Entretanto, para o que aqui nos interessa, ou seja, mostrar um pouco da aventura que foi a construção da revista Pesquisa Fapesp, explorando, no estudo que está por trás desse relato, as bases políticas de tão fascinante experimento editorial, importa muito a percepção de um forte predomínio histórico de estabilidade no sistema paulista de ciência e tecnologia em oposição a um forte predomínio de instabilidade no sistema nacional de ciência e tecnologia (por desconhecimento meu, seria temerária qualquer tentativa de estabelecer por ora comparações com outros sistemas estaduais, o que demandaria a mim muito mais estudos nesse sentido).

É estimulante, num estudo de comunicação, quando afloram evidências daquilo que se toma com pressuposto, não só de dados e análises estatísticas, mas também de textos jornalísticos visceralmente comprometidos com o rigor da informação – outros, não aqueles que estão em nosso foco primário de análise, caso dos que integram a Pesquisa Fapesp. A já citada edição especial da Science sobre a ciência na América Latina está exatamente nesse lugar.

Mas antes de expor o porquê dessa avaliação, vale deixar que falem um pouco mais brasileiros que se manifestaram nas páginas de cartas da revista algumas edições após o trabalho primoroso sobre pesquisa na América Latina.

O físico Cylon Gonçalves, por exemplo, reconhecido pelo vigor de seu trabalho à frente do Laboratório Nacional de Luz Síncrotron (LNLS), elogiava “a descrição justa e precisa” da reportagem de Eliot Marshall sobre o instituto, mas, sobre o título, “Physicists hand-build a synchrotron”, externava o receio de que induzisse a uma visão equivocada. Argumentava que talvez a palavra “manufacturate” fosse mais apropriada do que “hand-build” para oferecer uma ideia precisa do que ali se passava.

O LNLS, numa experiência não muito distinta da que atravessara a Organização Europeia para a Pesquisa Nuclear (CERN) em seus primeiros anos, na década de 1950, segundo Cylon, ou mesmo o Fermi National Accelerator Laboratory (Fermilab), no final dos anos 1960, estava fabricando ele mesmo muitos de seus componentes “porque não encontrava competência nas empresas locais para fornecê-los dentro das especificações desejadas e a custos razoáveis”. Nesse processo, o laboratório ia aperfeiçoando sofisticadas ferramentas e desenvolvendo processos inovadores, “como o corte a laser para laminações dos imãs do anel de armazenamento”.

Desde o início, a estratégia do LNLS fora construir o máximo possível no país, ainda que em muitos casos resultasse mais barato comprar no exterior, explicava seu diretor. A escolha não era ditada por questões de ordem meramente financeira, mas pela determinação de desenvolver e incorporar localmente tanta tecnologia quanto fosse pragmaticamente possível. A mesma estratégia orientava o desenvolvimento do projeto com a ajuda mínima de especialistas e consultores estrangeiros. “O tipo de cooperação internacional que o LNLS procura é exemplificado pelo acordo com o Center for Advanced Macrostructures and Devices LNLS, ou seja, uma parceria em que ambos os lados contribuem e se beneficiam”, ele dizia.

Já a carta do então embaixador brasileiro junto aos Estados Unidos, Paulo Tarso Flecha de Lima, é especialmente eloquente em torno da questão que nos ocupa, relativa aos sistemas nacional e paulista de C&T. E há mesmo nela palavras alusivas a uma espécie de disputa mal disfarçada entre as duas instâncias que soa um tanto fora de lugar, ainda que se compreenda a defesa do país que cabia ao embaixador. Diz ele a certa altura:

“Um leitor do artigo de Eliot Marshall, “Agency is refuge in funding wilderness” (p. 812), pode ser levado a concluir que os esforços de financiamento no Brasil são de dois tipos, o do governo federal e o do estado de São Paulo, e que este último é virtualmente impecável enquanto o primeiro é burocrático e ineficiente. De acordo, governos estão longe de serem perfeitos e os cientistas brasileiros sentiram os efeitos de vários anos de problemas econômicos que o país só agora está começando a superar.”

E prossegue ainda a esse respeito: “Entretanto, ressaltar desconfianças particulares quanto às vias de concessão dos auxílios à pesquisa como uma questão de ineficiência federal versus eficiência estadual é ignorar largamente o fato de que existe um Sistema Brasileiro de C&T, que realmente funciona como tal e em formas numerosas demais para relacionar aqui. Para citar apenas uma, mencionada em outro artigo (“Physicists hand-build a synchrotron”, p. 813), tanto o governo federal, através do CNPq, quanto o estado de São Paulo apoiaram e continuarão a apoiar o Laboratório de Radiação Síncrotron em São Paulo, que é um laboratório nacional sob a alçada do CNPq e Ministério da Ciência e Tecnologia – da mesma forma como funcionam laboratórios nacionais nos Estados Unidos”.

A ideia de uma certa disputa de espaço e narrativas fica mais evidenciada no parágrafo seguinte, quando o embaixador Flecha de Lima aborda a questão da implantação e difusão da Internet no Brasil, processo em que é conhecido e bem documentado o papel pioneiro da Fapesp:

“E contrariamente ao que alguém pode concluir do primeiro artigo, a extensão da Internet para todos os cantos do Brasil não é, em absoluto, um programa da estadual Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), mas federal, tocado em estreita cooperação entre Fapesp, Laboratório Nacional de Computação Científica (que é outro nó principal da Internet) e CNPq, financiado pelo governo federal, o parceiro que realmente está pagando pelo estabelecimento, manutenção e atualização do backbone nacional e estendendo o suporte técnico aos “pontos de presença” em centros locais e regionais que estão rapidamente se multiplicando por todo o Brasil, graças à Rede Nacional de Pesquisa”.

Vejamos o quê, no panorama da ciência brasileira apresentado no especial da Science sobre a América Latina, provocou a reação vigorosa do embaixador. Afinal, estávamos no começo de 1995, o PSDB era, pela primeira vez, o partido à frente do governo federal e também do governo do estado de São Paulo, portanto, não se tratava de uma disputa político-partidária.

Depois do editorial de apresentação do material (“Points of light in Latin America”, página 807), assinado por Tim Appenzeller, em que a foto relativa ao Brasil era a de um tambaqui, com a legenda sob o título deliciosamente ambivalente, “Captura fresca para a ciência”, e a explicação “O tambaqui é um emblema da mal compreendida biologia da várzea Amazônica”, a parte brasileira propriamente do especial abria com uma reportagem, nas página 811-812, sobre as pesquisas do T. cruzi. Apresentava os projetos mais relevantes em curso ou programados, em especial o do mapeamento e sequenciamento genético do T. cruzi, liderado pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), que vinha sendo planejado desde 1993 em importantes reuniões internacionais (ver mais a esse respeito em https://chagas.fiocruz.br/biologia-molecular/).

Havia espaço aí também para as primeiras pesquisas em cristalografia de proteínas lideradas por Glaucius Oliva. “Um esforço mais amplo no design racional de medicamentos está em andamento na Universidade de São Paulo, em São Carlos, liderada por um biólogo estrutural de formação britânica, Glacius Oliva. Um dos alunos de pós-graduação de Oliva estudou com o cristalógrafo Wim Hol, da Universidade de Washington, em Seattle, aprendendo a cristalizar uma variedade de proteínas do tripanossoma e a capturar imagens de raios-X de suas estruturas. Oliva e seu grupo pretendem usar essas estruturas para projetar e testar medicamentos que inibiriam enzimas do T. cruzi”, diz o texto. Oliva, a propósito, viria a presidir o CNPq de 2011 a 2015.

Na página 813 a Science tratava do Laboratório Nacional de Luz Síncrotron (LNLS) em texto já referido. E na página 814, trazia a reportagem sobre pesquisas ambientais na Amazônia, incluindo o estudo do tambaqui como um objeto para algumas análises significativas nesse sentido, com o título “Homely fish draws attention to Amazon deforestation”, numa tradução livre, “Peixe simples (ou caseiro) chama atenção para o desmatamento da Amazônia”.

É claro que não foram essas reportagens que provocaram a reação do embaixador Flecha de Lima, e sim, como ele mesmo já indicara, o pequeno texto sobre a Fapesp, “Agency is refuge in funding wilderness” – em tradução livre para o português, “Agência é refúgio na selva do financiamento”, encravado entre as páginas 812 e 813 do especial (tradução disponível aqui).

Num dos trechos mais instigantes do relato, o jornalista Eliot Marshall escreve: “O equivalente brasileiro da Fundação Nacional de Ciência dos EUA — Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, conhecido por seu obsoleto acrônimo, CNPq — concentra-se em uma variedade de programas direcionados, estipêndios e institutos de pesquisa, deixando pouco dinheiro para projetos de iniciativa dos pesquisadores. A outra grande agência federal de fomento à pesquisa e desenvolvimento, a Financiadora de Estudos e Projetos (FINEP), favorece empreendimentos de alta tecnologia. Falando reservadamente, pesquisadores dizem que veem essas duas instituições como burocracias típicas: lentas, introspectivas, desperdiçadoras e políticas. Mas existe uma importante agência de financiamento que cientistas de todo o Brasil conhecem e admiram: um fundo rotativo para ciência e tecnologia administrado pelo estado de São Paulo, chamado Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP)”.

E prossegue: “Pesquisadores adoram a FAPESP porque é tudo o que as outras agências não são: eficiente, focada na qualidade e tocada com os cientistas em mente. Essa tradição começou há mais de 30 anos, quando líderes progressistas do estado de São Paulo – o mais rico do Brasil – decidiram criar um fundo de pesquisa que operaria fora do sistema político usual. Eles incluíram na constituição estadual uma cláusula estipulando que 1% de todas as receitas do Estado, a cada ano, seria reservado para bolsas de pesquisa” Mais para o final, o texto diz: “A FAPESP é capaz de colocar a ciência em primeiro lugar em razão de sua independência. Pelo menos metade dos membros de seu conselho superior, nomeados pelo governador de São Paulo, tem formação técnica. Como resultado, diz Perez, ‘não precisamos alinhar nossas políticas às políticas do governo’. No entanto, isso pode mudar, porque a orientação técnica da FAPESP vem sendo protegida mais pela tradição do que pela lei”.

A gota d’água para a indisposição provocada pelo texto de Marshall possivelmente surgiu dessas poucas linhas: “…enquanto as coisas estão indo bem, a Fapesp quer se expandir. Segundo Perez, a agência espera oferecer uma nova série de auxílios destinadas a melhorar a infraestrutura de pesquisa e já começou a rolar a bola pagando para levar a Internet a todos os cientistas brasileiros, inclusive os de fora de São Paulo”. De fato, a Fapesp teve atuação direta em trazer a Internet ao país, no final dos anos 1980, em sua implantação e na montagem inclusive do serviço de domínio de registros. Em resumo, cuidava da Internet até a criação do Comitê Gestor e antes que fosse formada a Rede Nacional de Pesquisa.

Quando o especial da Science foi elaborado, a Fapesp não dispunha de qualquer estrutura de comunicação, nem mesmo de um simples assessor para a área. Os jornalistas da revista norte-americana foram buscando suas fontes por conta própria. No relato sobre a fundação paulista, além emergir a questão de sua solidez e estabilidade, aparece também seu arrojo e capacidade de planejamento. E dado que Perez é a única fonte citada, dá para inferir o quanto Marshall se encantou, compreensivelmente, pelo entusiasmo e intenso dinamismo do diretor científico da Fapesp, de 1994 a 2005.

Há uma curiosidade no material apresentado: a pesquisa genômica do Brasil na qual a Science põe fé é a do T. cruzi, que tem como seus objetivos declarados, 6 e 7, “construir expertise e colaborações Norte-Sul e Sul-Sul para pesquisa genômica, nas áreas de mapeamento, sequenciamento em larga escala, bioinformática, pesquisa sobre relação estrutura-função de proteínas etc; contribuir para o conhecimento geral sobre estrutura de genomas, biologia comparativa e evolução dos parasitos.” (https://chagas.fiocruz.br/biologia-molecular/).

Entretanto, quem de certo modo realiza exatamente esses objetivos é o projeto de sequenciamento genético da Fapesp, sobre o qual a Science não poderia naquele momento dar qualquer notícia, porque ele só começaria a ser concebido em maio de 1997. E, nos dois anos e meio seguintes, até sua bem sucedida conclusão no começo de 2000, esse projeto colocaria a fundação paulista, a Xylella fastidiosa, a clorose variegada dos citros ou praga do amarelinho e, enfim, a capacidade brasileira de produzir conhecimento científico de ponta nas principais revistas científicas e na mídia nacional e internacional de modo geral.

Segundo as informações da Fiocruz no link que aparece um pouco acima, “A sequência genômica do T. cruzi CL-Brener foi oficialmente publicada junto com as sequências genômicas completas de L. major e T. brucei, na revista Science em 2005. A montagem do genoma foi apenas parcial, devido às muitas dificuldades com sequências repetitivas, e a heterozigose do clone”.

Nesse percurso, o Notícias Fapesp modestamente vai cumprindo um papel de precisar e difundir para a imprensa as informações que vão dando conta do significado científico e político e dos avanços, passo a passo, do projeto pioneiro da genômica no Brasil, o do fitopatógeno X. fastidiosa. A edição 35 é um bom exemplo desse caminho, ao qual voltaremos no próximo capítulo.

Leia aqui o capítulo VII

 

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