Um movimento calculado de dissenso político, a ideologia individualista e desconfiança em relação à imprensa foram algumas das explicações para a dificuldade da adoção do distanciamento físico que se tem observado no Brasil. A medida conhecida de maior eficiência para diminuir a transmissão do vírus Sars-CoV-2 foi tema do webinar “Covid-19: aspectos e razões da resistência ao distanciamento”, no dia 14 de maio, organizado pelo Ciência na rua, em parceria com a Rede CoVida, a Agência Bori e a Agência Mural de Jornalismo nas Periferias.
Participaram da conversa o cientista político André Singer, da Universidade de São Paulo (USP), o psicanalista Christian Dunker, também da USP, o antropólogo Carl Kendall, atualmente na Universidade Federal do Ceará (UFC), e os jornalistas Lucas Veloso, da Agência Mural, e Sabine Righetti, da Agência Bori, com mediação de Mariluce Moura, do Ciência na rua.
Desde a primeira fala, de Singer, de alguma forma reverberada por todos os demais, ficou clara a necessidade de distinguir a resistência daqueles que não podem praticar o distanciamento por razões materiais – seja a necessidade de sair para trabalhar, seja a condição de habitação – da resistência de quem não aceita que o distanciamento precisa ser feito. Para o primeiro grupo, foram levantadas questões sobre o que pode ser feito para permitir que ele possa adotar o distanciamento físico. Singer, mais para o fim da conversa, mencionou os auxílios governamentais e a necessidade de lutar para que sejam ampliados, “Infelizmente não estamos num bom momento para isso no Brasil, mas temos que insistir”.
Sobre as razões de quem tem a possibilidade material de praticar o isolamento e ainda assim resiste, a discussão foi mais ampla. Singer apontou para as ações do governo federal, e especialmente de Jair Bolsonaro, de negar a importância do distanciamento, para o individualismo inerente à ideologia neoliberal construída e aprofundada por 40 anos e para a desconfiança em relação à imprensa, além de uma tendência das pessoas mais jovens se preocuparem menos com a questão, uma vez que o risco para elas, caso infectadas, é menor. Esse motivo foi corroborado também pelas falas de Veloso e Righetti.
Kendall lembrou que compreender a transmissão de coronavírus não é fácil, especialmente para quem não tem formação como biólogo ou médico. Ele enfatizou a defesa do uso do termo “distanciamento físico” como preferível a “distanciamento social”.
Dunker analisou o efeito das ações políticas que buscam desacreditar a importância do distanciamento na psique da população. Citou Maquiavel – “se for para fazer o mal, faça de uma vez, de forma clara” – para explicar o processo de incorporação das leis pelos cidadãos para lidar com sacrifício, contrariedade e perda, três dimensões impostas pelo procedimento de quarentena – “Isso produz em cada um de nós uma espécie de obediência a uma autoridade simbólica, marcada pela unidade dessa referência simbólica que coloca uma lei que vale para todos”. Avaliou que, no caso brasileiro, isso foi afetado pelo retardo na resposta e pela formação calculada de um dissenso. “Cada país enfrenta a covid a partir do seu processo histórico anterior, no Brasil a gente tinha pauperização e tinha divisão social discursiva muito intensa. Então, o que acontece? Nesse momento em que precisamos de unidade na nossa referência simbólica, há um movimento que produz calculadamente dissenso”, observado em atitudes como a negação do que dizem a ciência e a imprensa ou em tentativas de negociação, do tipo “a doença é grave, mas será que não tenho uma proteção mística que vai me colocar fora do grupo de risco?”. Lembrou que, além de lideranças políticas, lideranças religiosas reforçaram a criação desse dissenso, tema também abordado por Veloso.
O psicanalista tratou ainda da transitivização do sofrimento, ou de sua ausência, no caso brasileiro: “Todo sofrimento, ao contrário dos sintomas, envolve uma espécie de contágio ou de compartilhamento: se estou sofrendo, aqueles que gostam de mim sofrem junto, e eu sofro junto quando vejo aqueles a quem estou ligado sofrendo também. Daí a ideia de que essa é uma experiência profundamente individual, que concerne aos corpos biológicos, mas é fundamentalmente uma experiência coletiva, de como estamos nessa contrariedade, nessa perda, vivendo isso, interpretando o sofrimento do outro porque o sofrimento do outro faz parte do meu sofrimento. E quando essa transitivização acontece de forma mais extensa, como vemos em outros países, ocorre a ideia de que preciso usar a máscara não porque vou me proteger do vírus, mas porque vou proteger o outro do vírus. E se todos nós protegermos o outro, sairemos dessa situação com menos contaminação. Ou seja, a transitivização do sofrimento é decisiva para pensarmos a partir do outro”. Ele avaliou que, aqui, o discurso buscou individualizar o sofrimento, concorrendo para a ideia de que cada um deve se virar sozinho.
Veloso, além de reverberar as questões de desigualdade, introduziu o tema das fake news, contando o exemplo de um boato que correu sobre boldo ser uma alternativa de tratamento contra o vírus, o que levou vizinhos de sua mãe a ir pedir um pouco da planta, que tem em casa. Perguntou o que jornalistas e cientistas podem fazer juntos para ajudar a vencer a baixa adesão ao distanciamento.
Righetti, olhando a partir da comunicação de ciência, apontou outros fatores para o fenômeno: a baixíssima educação científica no país, nas redes pública e privada; a falta de costume de se ouvir cientistas – 90% da população não sabe dizer o nome de um pesquisador ou instituição de pesquisa e de repente se vê pressionada a ouvir o que eles têm a dizer; um movimento anticiência que já vem de algum tempo (alegações de que a Terra seria plana, difamação de universidades como lugar de “balbúrdia”); o uso político da situação – enquanto os cientistas falam coisas “chatas”, políticos dizem que não há problema em ir malhar na academia, e as pessoas escolhem acreditar no que preferem; além da indústria de fake news já mencionada.
Nas perguntas do público surgiram os temas do uso da pandemia para reforçar o autoritarismo, situação de comunidades indígenas da Amazônia, consequências psíquicas de médio e longo prazos da quarentena, entre outros. A conversa completa, que durou quase uma hora e meia, pode ser conferida no vídeo abaixo.