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A abordagem brasileira para enfrentar a covid-19 é baseada em ciência?

Marcos Buckeridge

Biólogo questiona a pouca disponibilidade de dados brutos sobre a epidemia no Brasil

Drive thru de testagem de covid-19 em Florianópolis (Foto: Leonardo Souza /PMF/FotosPublicas)

A determinação da longitude foi um dos grandes problemas da navegação marítima mundial. O problema só foi resolvido no século XIX, quando o relojoeiro inglês John Harrison conseguiu construir um relógio tão preciso que permitia as frotas de navios saberem sua posição exata no mar e com isto não se desviarem de suas rotas. Antes disto, os desvios eram tão grandes que frotas inteiras foram perdidas por não saberem a sua localização. Um caso famoso é o do desastroso choque de uma frota inglesa com as Ilhas Scilly, comandada pelo Almirante Clowdislay em 1707.

Em tempos de covid-19 estamos tendo um problema análogo. Para tomar decisões de como fazer a sociedade “navegar” em meio a incertezas, precisamos de informações precisas de onde estamos. Por isto, os dados sobre os números de casos e óbitos são cruciais. Governos em todos os níveis produzem e compilam esses dados, que usam para a tomada de decisões. Atualmente, esses dados são cruciais para decidir sobre o isolamento social total ou parcial durante a pandemia. Em resumo, como os navegantes no mar, temos que saber onde estamos e saber para onde vamos.

O número total de casos é importante para que saibamos quando poderemos atingir a capacidade máxima do nosso sistema de saúde. Mas neste caso só se podem fazer estimativas. De fato, é provável que nunca sequer saibamos quantos casos tivemos durante esta crise. Isto porque é muito difícil de obter o valor absoluto de cápsulas de vírus presentes em todos os indivíduos de uma população de humanos tão grande quando a brasileira. Apesar de ser possível, é pouco provável que populações desse tamanho possam ser testadas completamente. Além disto, podemos perguntar se isto traria algum resultado relevante para a tomada de decisões.

Saber o valor absoluto de casos é importante, mas amostrar corretamente para saber o andamento do número de casos na população pode ser mais relevante ainda. Acredito que, para a tomada de decisões de alcance mais amplo, a amostragem seja mais importante do que conhecer o número absoluto de casos.

Fazer a amostragem e analisar os dados embute o mesmo problema da medida da longitude. É através da forma das curvas de evolução do número de casos que podemos saber para onde o sistema está caminhando. Medidas constantes, precisamente anotadas e com datas corretas, são fundamentais. Mesmo que não seja o valor absoluto dos casos, elas representam uma amostra da população que nos permite acompanhar o processo com a maior precisão possível. Numa situação de pandemia em que há uma grande ameaça de um desastre socioeconômico, tais medidas deveriam funcionar como o relógio de Harrison.

No caso da COVID19, alguns objetivos são cruciais. Primeiro, não podemos espalhar mais ainda a doença; segundo, não podemos tomar decisões precipitadas, pois aumentam a possibilidade de erro; terceiro, precisamos sair da crise com impacto mínimo do ponto de vista socioeconômico.

No primeiro caso, não há outra opção a não ser o isolamento social, pelo menos até encontrarmos um tratamento ou termos uma vacina. Já a falta de articulação entre o segundo e o terceiro pode ter efeitos desastrosos e muito amplos sobre a sociedade. Para não tomarmos decisões precipitadas, a qualidade das curvas e as modelagens são essenciais. E para saírmos com impacto mínimo da crise, o que é de longe mais complexo e complicado, temos que nos adiantar e produzir cenários futuros. Como a tomada de decisões e a qualidade do processo de saída são interdependentes, qualidade dos resultados será diretamente proporcional à qualidade dos dados científicos que embasam as decisões. Em outras palavras, como os impactos socioeconômicos são como uma panela de pressão próxima de explodir, ter precisão é absolutamente crucial para minimizar os impactos que virão.

Em biologia, há alguns tipos de curva que funcionam como uma espécie de norma. Elas servem para entender fenômenos como o crescimento de órgãos, indivíduos e populações. Quando medimos tamanho, massa ou a ocorrência de alguma doença, é das curvas de ocorrência do fenômeno que queremos estudar e de análises subsequentes de vários tipos, que nós, cientistas nos valemos. Por isto, numa pandemia como a do novo coronavírus, as curvas são aquelas que na vida de um cientista da biologia é ocorrência comum e precisam ser analisadas de forma simples e clara. Para isso, é necessário o preenchimento correto dos dados dia a dia. E os resultados dos testes devem ser adicionados na data correta. Quando isto não acontce, há um impacto direto no formato da curva.

Uma destas curvas é a chamada a Curva Sigmoidal. No início ela apresenta uma forma similar a uma letra “J”. Depois, quando atinge o topo, acaba formando uma letra “S”.

No caso da covid-19, se olharmos os dados de ocorrência contados em número de casos novos por dia, a composição esperada desta curva seria um “S” até atingirmos o máximo de pessoas contaminadas. Ficaríamos num platô por algum tempo e depois o número de casos novos cairia, formando um “S” ao contrário. A curva inteira – um “S” contra um “S” invertido – chama-se Curva de Gauss [efn_note]Um gráfico deste tipo é encontrado nos relatórios da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo (https://www.saude.sp.gov.br/cve-centro-de-vigilancia-epidemiologica-prof.-alexandre-vranjac/areas-de-vigilancia/doencas-de-transmissao-respiratoria/coronavirus-covid-19/situacao-epidemiologica). Ver por exemplo o dia 13/4.[/efn_note].

Durante estas semanas em que a pandemia da covid-19 atingiu o Brasil, as perguntas que temos feito diariamente desde março de 2020 são: 1) estamos subindo? 2) quão rápido estamos subindo? 3) quando chegaremos ao topo? 4) chegamos no topo? Em seguida, as que faremos são: quanto tempo ficaremos no topo? Estamos descendo? Quanto tempo levará? Podemos sair do isolamento?

Desde que a pandemia chegou ao Brasil, e os casos começaram a aumentar por volta de 10 de março de 2020, as curvas de crescimento dos casos deveriam nos ajudar a responder se estamos ou não subindo e na medida que evoluíram ao longo dos primeiros 15 dias. E também nos ajudar a responder quão rapidamente estamos caminhando. Alguns argumentam que o Brasil é muito grande, muito complexo e que seria difícil acompanhar a curva do país, pois cada região e cada cidade mostraria algo diferente. No entanto, se olharmos os dados acumulativos de aumento nos casos, veremos que algumas das grandes capitais (São Paulo, Rio de Janeiro, Manaus, Recife e Porto Alegre) possuem o mesmo padrão (Figura abaixo). Portanto, a complexidade embutida nos dados não é tão grande assim. Por esta compilação que fiz a partir do site da Fiocruz, que como uma boa instituição científica, mostra os dados que usa, ainda estamos na parte “J” da curva. Iniciamos a subida a partir do dia 20/3/2020 e parece que ainda estamos subindo. Mas se olharmos bem os dados de São Paulo, estamos subindo mesmo, ou já atingimos um platô?

Ao olhar a curva de São Paulo, vemos que há claramente uma variação semanal nos dados. O número de casos aumenta no meio da semana e cai nos fins de semana. O que isto significa? Seria isto um análogo aos relógios anteriores ao construído por Harrison, ou seja, imprecisos? Se for, estamos à mercê dos desvios por estarmos navegando sem as medidas precisas de “longitude”.

Quando olho para aqueles dois pontos correspondentes aos dias 15 e 16/4/2020 na curva de São Paulo, fico em dúvida. Seriam eles o efeito de algum acúmulo de amostras com erro de anotação nas datas em que os casos foram reportados? Ou são reais? Daí surge um problema para interpretar os dados. Todo fim de semana, os dados sugerem que estamos chegando ao platô, ou pelo menos completando o “S” da curva sigmoidal. Mas aí chega a segunda-feira, a terça-feira e vemos que não, não chegamos. Isto nos mantém permanentemente indecisos. Talvez numa ansiedade parecida com a do Almirante Clowdisley ao navegar sem um relógio preciso que lhe indicase com precisão a longitude.

Isto até que não prejudica tanto as decisões, pois pode ser que seja simplesmente uma incapacidade de marcar os tubos para depois colocar os dados no dia certo de forma a ter um gráfico que produza uma expressão mais próxima do real. Mas se algo tão simples como marcar a data no tubo e registrar no dia correto parece não estar sendo feito adequadamente, será que dá para confiar nos dados?

Um incômodo para cientista é não poder acompanhar com precisão científica o que está acontecendo. Poderíamos ajudar muito mais se tivéssemos os dados brutos. Porém, a única forma de acesso às curvas tem sido através de gráficos prontos e mapas publicados na mídia e nas redes sociais. Ou então olhando número por número em gráficos que permitem a visualização dos dados. Não há repositórios com os dados brutos que deem livre acesso para podermos fazer análises e modelagens de diferentes formas. Portanto, podemos dizer que o governo brasileiro, em todos os seus níveis, parece se comportar de forma hermética, escondendo os dados brutos e forçando a sociedade, inclusive os seus cientistas, a olhar o fenômeno através da “lente analítica” criada por alguns técnicos e cientistas selecionados pelo governo.

Seria esta uma forma democrática de proceder? Não. Podemos chamar esta uma forma científica de proceder? Não. Porquê?

Primeiro devo dizer que não há aqui uma questão de desconfiança no trabalho que muitos técnicos e colegas cientistas estão fazendo. O problema é que, na ciência, um único tipo de análise não conta como paradigma para abordar qualquer fenômeno. O que conta é um conjunto grande de análises, que geram pontos de vista distintos, muitas vezes até contraditórios. Haverá discordâncias entre cientistas, mas isto é normal. No fim, há sempre um processo seletivo em que a melhor descrição possível do fenômeno acaba sendo revelada. É a partir desta visão coletiva, como ocorre há décadas nos relatórios Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas da ONU (o IPCC), que a sociedade vai conseguindo entender problemas altamente complexos e de natureza interdisciplinar.

Fala-se muito em “usar a ciência”. Porém, no Brasil isto não está sendo feito em sua plenitude. Não há disponibilidade de dados brutos para que possam ser analisados e contemplados todos os ângulos possíveis. A ciência moderna vem tirando a falsa crença de que um único cientista é o descobridor de algo. A ciência está mais para aquela fábula que conta sobre a chegada de um elefante em uma aldeia de cegos. Quando vários dos habitantes entram em contato com o animal conhecido, mas nunca antes visto por ali, cada um vai chegando a conclusões distintas. Quem pega na orelha irá pensar que é um abanador, quem segura a tromba dirá que é uma mangueira, quem apalpa uma das pernas dirá que é um tronco de árvore. Só depois que os vários habitantes cegos confrontam as suas diferentes conclusões é que se torna possível concluir com certeza que é um elefante. A ciência, que é uma das ferramentas mais potentes que a humanidade já produziu para conhecer o universo e a Terra, funciona como um coletivo. Sempre foi assim, apesar das visões romanceadas e dos prêmios para quem chega à conclusão final se aproveitando das descobertas de uma cadeia de outros cientistas que abordaram o fenômeno anteriormente.

O relógio de Harrison foi construído para uma competição por um prêmio dado pelo governo Britânico em 1714. Houve vários projetos competindo livremente e todos tiveram chance de abordar o problema. Num estado como São Paulo, que tem mais de 100 mil cientistas ativos, bem financiados e bem treinados, será que os dados brutos não deveriam ser rapidamente disponibilizados a toda comunidade científica para que possamos ter uma visão sistêmica e com isto assegurar uma saída melhor para o problema extremamente complexo em que a pandemia nos colocou? Isto, sim, seria aplicar ciência num momento tão importante na história mundial e do Brasil.

 

Marcos Buckeridge é diretor do Instituto de Biociências, membro do Instituto de Estudos Avançados, Universidade de São Paulo e ex-presidente da Academia de Ciências do Estado de São Paulo.

 

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