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Revisão dos casos de microcefalia de 2012 a 2015 leva a novas indagações sobre as causas da epidemia
Distribuição por ano de casos de microcefalia na Paraíba

Distribuição por ano de casos de microcefalia na Paraíba

Distribuição por ano de casos extremos de microcefalia na Paraíba

Distribuição por ano de casos extremos de microcefalia na Paraíba

 

Uma notável força tarefa foi posta em marcha pelo Círculo do Coração de Pernambuco, de 1º a 31 de dezembro de 2015, para resgatar a medida do perímetro cefálico de 16.206 bebês nascidos entre 2012 e 2015 na Paraíba. A partir daí, um grupo de pesquisadores liderados pela cardiologista Sandra da Silva Mattos, conseguiu demonstrar que há subnotificação da ocorrência de microcefalia na Paraíba nos últimos quatro anos – os números seriam bem maiores do que aqueles que aparecem nas estatísticas oficiais — e lançar uma série de interrogações a respeito das causas efetivas da epidemia de microcefalia anunciada em novembro passado.

Naquele estado, um dos nove que integram o epicentro da epidemia, 21 centros médicos foram peças chave para os rápidos resultados obtidos no levantamento e estudo subsequente. Todos colaboram desde 2012 com a Rede de Cardiologia Pediátrica e Perinatologia do Círculo do Coração Pernambucano coordenada por Sandra Mattos, que a essa altura tem dados cardiovasculares de 100 mil recém-nascidos.

Os resultados foram apresentados em artigo submetido ao Boletim da Organização Mundial da Saúde (OMS) em 29 de janeiro passado, e postados em seu site aberto sobre Zika em 4 de fevereiro. A partir daí, vários veículos internacionais difundiram as conclusões da pesquisa brasileira, com foco sobretudo na subnotificação, que mascara os dados efetivos  das ocorrências de microcefalia no país, e na informação  de que o pico dessas ocorrências se deu em 2014. Ou seja, se deu antes que o Zika, cuja entrada no Brasil supostamente teria ocorrido na Copa do Mundo de 2014, pudesse ter algum efeito sobre bebês nascidos a termo. De todo modo, o artigo observa que houve um aumento significativo das formas extremas de microcefalia na Paraíba nos últimos meses de 2015.

Com dados detalhados e exame minucioso da subnotificação, o que o artigo propõe é, em paralelo a um esforço pela notificação adequada das ocorrências, uma série de indagações sobre o próprio conceito da microcefalia e sobre outras possíveis causas da epidemia atual, para além da associação — baseada em fortes evidências, mas ainda não definitivamente estabelecida — entre Zika vírus e microcefalia.

Por um lado, “há crianças com 32 centímetros de perímetro cefálico, limite que foi estabelecido pelo Ministério da Saúde para se definir microcefalia, absolutamente normais e com cérebro completamente normal”, observa a médica Juliana Sousa Soares de Araújo, primeira autora do artigo e coordenadora de perinatologia do Circulo do Coração Pernambucano, em fase de doutoramento orientado por Sandra Mattos na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Por outro, há números que não fecham com as estatísticas oficiais, mesmo que se tome os percentuais mais baixos das medidas padrão de ocorrência de microcefalia por 100 mil habitantes, e curvas de crescimento da epidemia que não batem com o padrão até aqui difundido de que ela explodiu subitamente entre outubro e novembro de 2015.

Confronto com os números reais – A expectativa baseada na literatura especializada é de que a microcefalia ocorra em 1 a cada 6.250 a 8.500 nascidos vivos. Trata-se de “um achado clínico, não de uma doença. Ela é definida como uma circunferência occiptal- frontal da cabeça menor do que esperado por idade gestacional e gênero”, diz o artigo dos pesquisadores brasileiros.

O crescimento do crânio, ponderam os autores, depende das forças de expansão do cérebro, por isso a microcefalia é de saída considerada como um indicador de cérebro menor que o normal. Mas há naturalmente controvérsias em torno da medida que define a existência ou não dessa condição, e características étnicas também devem ser levadas em consideração nessa discussão.  “Ainda mais complexo é estabelecer as implicações clínicas de um cérebro com tamanho abaixo do usual”, acrescentam.

Enquanto se processava o levantamento do perímetro cefálico dos bebês, o registro de casos de microcefalia no Brasil, desde novembro de 2015, estava em torno de 3 mil, 85% dos quais no Nordeste. Na Paraíba, com uma população de 3,95 milhões de habitantes (o país tem estimados 203 milhões de habitantes), 500 casos tinham sido relatados e havia sido confirmada pela primeira vez a presença do zika no líquido amniótico de dois fetos com microcefalia.

O estudo do Círculo do Coração de Pernambuco decidiu classificar microcefalia usando três diferentes critérios para essa condição, ou seja, o do Ministério da Saúde, que entende que há microcefalia quando o perímetro cefálico está abaixo de 32 centímetros; o das curvas de Fenton, que a estabelece quando há um desvio do padrão igual a -3 por idade e gênero; e o da proporcionalidade, que envolve uma pequena equação, ((peso/2)+ 10) ± 2.

Os recém-nascidos foram classificados como portadores de microcefalia de acordo com cada um desses critérios. Um grupo em separado foi criado para bebês que preenchiam todos os três critérios e, por último, os que caíram no terço mais baixo de cada um dos grupos foram agrupados como casos extremos de microcefalia. Dependendo do critério usado, de 4% a 8% dos 16.208 bebês nascidos nos 21 centros médicos da Paraíba entre 1º de janeiro de 2012 a 31 de dezembro de 2015 apresentavam microcefalia. Se usados os três critérios em conjunto, 2% tinham microcefalia. Quando, entretanto, apenas os casos extremos foram considerados, preenchendo os três critérios, o percentual finalmente ficou dentro das esperadas taxas de microcefalia no mundo inteiro.

Vale observar que o Brasil oficialmente registrava 5,5 casos de microcefalia em cada 100 mil nascidos vivos, em 2000, e 5,7 casos em 2010. E aí, os registros de casos desde novembro de 2015 elevou essa proporção, segundo a pesquisa do Círculo, para 99,7 casos por 100 mil nascidos vivos, ou seja, em 20 vezes mais.

Ora, projetando os achados do levantamento realizado para os 58.147 nascidos vivos na Paraíba em 2014, a microcefalia atingiria naquele ano 4.652 bebês, se considerado o critério do Ministério da Saúde; ou 2.442 bebês, tomando-se as curvas de Fenton;  e 2.907, considerado o critério de proporcionalidade. Levando em conta simultaneamente os três critérios, 1.105 bebês seriam classificados como portadores de microcefalia.

Essas observações lançam luz sobre a necessidade de rever a situação cuidadosamente, alertam os pesquisadores pernambucanos.  “Muitas questões precisam ser respondidas antes de concluirmos qual é o problema que estamos enfrentando, como chegou até aqui e que consequências poderá trazer para a população brasileira nos próximos anos”, insistem.

E a primeira questão a ser enfrentada, acrescentam, é a verdadeira incidência da microcefalia no Nordeste. “A discrepância entre casos esperados e casos encontrados pode refletir uma substancial subnotificação dos casos nos sites oficiais em anos recentes, juntamente com uma crise epidemiológica ainda maior do que a presumida, ou simplesmente a necessidade de revisar os critérios de diagnóstico dessa condição”.

Outros trechos do artigo são enfáticos quanto à importância de determinar o significado clínico das formas mais brandas de microcefalia, que dizem respeito à maior parte dos casos relatados. “Poderia um perímetro cefálico de 31 ou 32 centímetros em um recém-nascido a termo, por exemplo, estar dentro dos limites normais para essa população em particular?  Componentes étnicos ou nutricionais poderiam explicar esses achados? Estamos diante de grandes números  de uma doença neurológica ou observando uma variação antropométrica de normalidade?”, interroga.

E quanto às causas da epidemia, o artigo não é menos incisivo ao propor novas perguntas.  Embora a associação da microcefalia com Zika vírus seja atualmente a possibilidade mais esperada, “muitos outros fatores potenciais devem ser considerados como a causa do surto” observa.

Os pesquisadores listam, entre eles, a possibilidade de reforço dos efeitos de infecções associadas, inclusive de infecções virais, como dengue e chikungunya, transmitidas igualmente pelo Aedes aegypti; a exposição a teratógenos, ou seja, substâncias danosas ao feto, como vacinas ou fármacos utilizados no início da gravidez; a má nutrição, anteriormente já associada a microcefalia, e que poderia ter um efeito intensificado quando combinada com outro fator etiológico. “Na verdade, a maioria dos casos relatados ocorreu em famílias de baixa renda”, pondera

Seja como for, o artigo considera que controlar o Aedes aegypti continua sendo uma estratégia de saúde pública capaz de trazer variados benefícios à população.  “Estamos diante de um novo e desafiador problema de saúde pública”, conclui.

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