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RETROSPECTIVA 2016

por | 26 dez 2016

O convite chegou por e-mail e de surpresa, quando ele já se preparava para substituir os trajes acadêmicos por bermuda, camiseta e havaianas, para curtir com a família as tão aguardadas férias, em destino ainda incerto e não sabido (sempre deixa para resolver as viagens na última hora, à espera das promoções, para desespero da esposa e dos filhos. Dá certo). ‘Ilustríssimo senhor pesquisador, considerando sua produção de excelência e também as efetivas e relevantes contribuições prestadas à área das Ciências Políticas, temos a honra de convidá-lo a participar do Colóquio Internacional ‘Um mundo em crise’, que acontecerá na Universidade de Barcelona entre os dias 10 e 15 de janeiro de 2017, ficando sob sua responsabilidade específica a coordenação da mesa de debates ‘As tensões políticas no Brasil de 2016’. Certos de podermos contar com sua colaboração e ilustre presença, aguardamos a confirmação e agradecemos’.

Depois de breve consulta à família – as férias foram por tabela também resolvidas, iriam todos juntos e depois esticariam mais uma semana na capital da Catalunha, para conhecer a Igreja da Sagrada Família e o Camp Nou -, respondeu a mensagem com um singelo e objetivo ‘agradeço a confiança e confirmo participação’. Metódico e cuidadoso, aproveitou os dias que antecedem Natal e Ano Novo para mergulhar na organização da apresentação. Tirou de cima do armário uma pasta-arquivo preta e empoeirada. Tossiu. Espirrou. Nela estavam guardados recortes de fontes variadas (com anotações, comentários, impressões, divagações, devaneios e dúvidas existenciais) sobre o governo Dilma, o processo de impeachment, a administração Temer e temas afins. Como o material tinha sido separado mês a mês, não foi difícil rabiscar um primeiro esqueleto das reflexões que pretendia levar para Barcelona.

JANEIRO – O rito para o impeachment definido pelo Supremo Tribunal Federal parece ter arrefecido os ânimos políticos. Acho que o governo Dilma ganhou fôlego. Só impressão, otimismo de começo de ano? O que será que está sendo articulado durante o recesso do Congresso Nacional? Dilma bate duro na Lava Jato e critica as delações sem provas. Atenção – força-tarefa de Curitiba começa a dar destaque para apartamento no Guarujá e sítio em Atibaia, que seriam de Lula. Até aqui – especulações. Aguardar provas.

FEVEREIRO – Lula insiste que não é dono do apartamento nem do sítio. Alerta- Dilma vaiada no Congresso Nacional, reabertura dos trabalhos legislativos. Não é bom sinal. Erro de análise – calmaria ficou em janeiro. Reavaliar. Surgem denúncias de pagamento de propina em contas na Suíça ao marqueteiro João Santana. Discutir com orientandos a questão do financiamento de campanhas e a participação do empresariado nacional na privatização do Estado. Caixa 2: como acabar com a prática? Ex-namorada afirma que recebeu pagamentos de FHC por meio de empresa no exterior. Notícia bateu e voltou, sumiu rápido do noticiário. Por quê? Critérios de noticiabilidade? Pesquisar. João Santana é preso. Será que ele vai falar, contar o que sabe? Impeachment passa novamente a ser considerado.

MARÇO – Dilma começa a mexer no ministério, em busca de apoio político. Dá tempo? Andrade Gutierrez fala em caixa dois para a campanha/chapa da presidenta, 2014. Eduardo Cunha vira réu na Lava Jato pela primeira vez. Pode um presidente da Câmara acusado de corrupção e lavagem de dinheiro conduzir um processo de impeachment? Legitimidade? Reflexão fundamental. Discutir com colegas e com juristas. PIB caiu 3,8% em 2015. Pilares econômicos desmoronando. Dilma perde discurso. Lula fala em perseguição política. Temer fala em reunificar o país contra a crise. O vice assumiu a conspiração? Marcelo Odebrecht condenado a 19 anos de prisão. Panelaço forte e Fora, Dilma no Dia da Mulher. Revolta da classe média = irreversível. Jornais falam em um milhão na Paulista. Será que o governo consegue segurar? Condução coercitiva de Lula. Moro pode tudo? Balão de ensaio para eventual prisão do ex-presidente? Vazam áudios de conversa entre Lula e Dilma. Evidente violação de garantias fundamentais. Ilegalidade flagrante. Gravíssimo. Cuidado. Não se brinca com a democracia. Histeria coletiva. Cem mil na Paulista contra o impedimento. Tem jogo. Planilha da Odebrecht cita mais de trezentos políticos, mas Jornal Nacional não identifica nomes. Gilmar Mendes impede Lula de ser ministro. Aqui – divisor de águas. Governo acuado, estragado, atordoado, perdido. Sinais de debandada da dita base aliada. Impeachment avança na Câmara. PMDB abandona o governo. Estamos só no terceiro mês do ano.

ABRIL – Manifestações ganham as ruas. Brasil dividido em vermelhos e amarelos. Editorial de capa da Folha de São Paulo sugere ‘nem Dilma, nem Temer’ e pede eleições. Mudança de discurso? Por quê? Jornal Nacional bate duríssimo no governo e no PT, todos os dias. Revista Veja segue o mesmo caminho. Orquestra da mídia toca afinada. É preciso compreender com mais profundidade o papel decisivo dos meios de comunicação na construção do impeachment. Lula não consegue articular votos. Centrão abandona o governo. Traições e deserções. Quem dá mais? Presidencialismo de coalizão. Governabilidade. Estudar a fundo, reler artigos já publicados. Impedimento aprovado na Câmara. Noite de horrores. São nossos representantes, eleitos pelo voto popular. Teve até deputado defendendo em plenário tortura e torturador. Nas ruas, surge o Fora Temer! Vice negocia ministérios, mesmo com Dilma ainda no cargo.

MAIO – STF afasta Cunha da Câmara. Agora? Com impeachment já aprovado? Por quê? Razões? Prêmio de consolação? Vale questionar. Ouvir colegas juristas, de novo. Temer assume. Ministério branco e só de homens. República Velha. Fim dos ministérios da Cultura e dos Direitos Humanos. Gravações de Sergio Machado denunciam pacto macabro entre políticos-empresários-judiciário, incluindo STF, para derrubar a presidenta e estancar a sangria da Lava Jato. Convicção: foi golpe. Tese das pedaladas é frágil, não se sustenta. Não há crime de responsabilidade. Gravações de Machado somem rapidamente do noticiário. Ministros demitidos.

JUNHO – Economia não reage. Aecio, Jucá e Sarney aparecem em delações. Começa a ser formatada a emenda do teto de gastos. Que temeridade! Vinte anos sem investimentos em Saúde e Educação. Movimentação nas ruas, Fora Temer. Sergio Machado afirma que Temer negociou propina com a Odebrecht para campanhas do PMDB. OAS relata propina para Aécio. Só Dilma vai mesmo pagar essa conta? Não há mais panelaços.

JULHO – Cunha renuncia à presidência da Câmara. Rodrigo Maia é eleito. Temer comemora. Governo ameaça e diz que ‘sem teto de gastos, terá de aumentar impostos’. Soa como chantagem. Bom momento para discutir taxação das grandes fortunas. A agenda é outra, conservadora e liberal. Lula vira réu na Lava Jato. Parece evidente a tentativa de impedir que o ex-presidente se candidate em 2018.

AGOSTO –  Impeachment corre no Senado. Temer vaiado na abertura da Olimpíada, no Maracanã. Constrangedor. Presidente vive encastelado em Brasília, não pode sair às ruas. Serra recebeu 23 milhões de reais da Odebrecht! Continua ministro? Continua. Protestos populares? Não. Indignação seletiva? Fundamental refletir sobre essas variáveis. Vale artigo específico. Dilma se defende no Senado, com muita dignidade, mas é definitivamente afastada da Presidência.

SETEMBRO – Temer viaja para a China. Mas continua sem poder sair do Palácio do Planalto, com medo das vaias. Cem mil na Paulista num domingo para Fora Temer! Surpresa. Entender. Espasmo ou tendência? Reformas da Previdência e da legislação trabalhista em marcha. Desmonte do projeto social da Constituição de 1988. Câmara cassa Cunha. Serviços prestados, carta fora do baralho. Powerpoint do Dallagnol contra Lula vira meme nas redes sociais. Patético. Desemprego cresce. Arrecadação despenca.

OUTUBRO – PT dizimado nas urnas, eleições municipais. Esquerdas na defensiva, sem projeto e sem lideranças. Crise profunda de identidade. Como reconstruir essa agenda? Venceu o discurso do ‘gestor’ e do ‘não político’. Constatação – há um caldo proto-fascista consolidado. Momento muito delicado. Estado de exceção com verniz de legalidade conferido pelo Judiciário? Pensar muito sobre isso. Câmara aprova PEC dos gastos. Cunha preso. E se ele resolver contar o que sabe? Governo assustado. Odebrecht afirma que pagou propina para José Serra na Suíça. Fica por isso mesmo. De novo. STF assume protagonismo político. Esse ativismo militante do Judiciário não é bom.

NOVEMBRO – Pausa para digerir a vitória de Donald Trump nos Estados Unidos. Caos no Rio de Janeiro. Sergio Cabral é preso. Ministro da Cultura denuncia Geddel Vieira Lima por usar cargo público para alcançar vantagens privadas. Também sugere que foi pressionado por Temer para atender os pedidos de Geddel. Privatização do Estado. Cai Geddel.

DEZEMBRO – Renan vira réu no Supremo. Apoio à Lava Jato nas manifestações de rua, com menos gente. Temer é poupado. Por quê? Essa indignação seletiva não pode passar despercebida. Marco Aurélio Melo afasta Renan da Presidência do Senado. Renan  ignora a liminar, derrubada no dia seguinte pelo STF. Que Estado de Direito é esse? Pode descumprir decisão judicial? Começam a vazar delações de executivos da Odebrecht. Caixa dois para Alckmin em dinheiro vivo. Dez milhões de reais a pedido de Temer para campanhas do PMDB, em acertos e encontros realizados no Palácio do Jaburu. Caju, Mineirinho, Kafta, Primo, Todo Feio… Jornal Nacional dedica quase trinta minutos para bater em Temer. Folha embarca na mesma onda. Veja exibe delações na capa. Quero entender melhor essa guinada nas narrativas jornalísticas, que agora acuam o governo. Rifaram Temer? Chapa cassada pelo Tribunal Superior Eleitoral no primeiro semestre do ano que vem? Indiretas? Jobim ou FHC? Reprovação a Temer dispara. Falta o editorial de primeira página… Presidente condena vazamentos. Antes podia, agora não pode mais? PEC do teto aprovada. Resgatar estudos que mostram que Saúde e Educação serão sucateadas. É provável que o Congresso seja hoje o último bunker do governo. Desenvolver essa hipótese. Disputas entre Legislativo e Judiciário. Reforma da Previdência em pauta. Ataques à Consolidação das Leis do Trabalho por Medida Provisória. Dezembro maluco, imprevisível. 2016 não acaba!

Ao final do rascunho da apresentação, fez questão de anotar, para não esquecer, numa espécie de desabafo derradeiro: “O Brasil não é para amadores (Tom Jobim?). Quem disser que não está confuso ou atordoado com o que está acontecendo no Brasil está mentindo. A retrospectiva televisiva de 2016 terá de ser transmitida ao vivo, para dar conta das delações de última hora. Que a força esteja conosco em 2017”.

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