jornalismo, ciência, juventude e humor
Primeira aula de jornalismo científico

por | 1 fev 2016

Em começo de semestre letivo, mergulhado na elaboração de propostas pedagógicas, resgatando pastas, fichas, anotações e papéis rabiscados e até amarelados e selecionando novas leituras a sugerir aos estudantes, tarefas sempre instigantes, acabo de me lembrar como a primeira aula da disciplina “Jornalismo Científico” é invariavelmente marcada por turbilhão de estranhamentos e por divertido jogo de convencimentos. Alunos voltando das férias, a natural preguiça ainda presente, os olhares pouco receptivos e de evidente desejo de pular na jugular do professor – ‘caraca, achei que tinha deixado a Matemática e a Física no ensino médio, e lá vem o Chico com fórmulas e equações. Que mala. Gosto de Política, de História, de Filosofia. Quero ser jornalista. Odeio os números’. Para não ser condenado logo no contato de estreia pelo ‘Tribunal das Humanas contra as Exatas’, evito entrar rasgando com Pitágoras, Darwin ou Einstein. Já que o curso é de Jornalismo, escolho começar com ‘era uma vez…’. A história da humanidade – devidamente resumida em melhores momentos, claro, para caber em hora e meia. Lembro que vivemos todos num universo que tem catorze bilhões de anos, de acordo com as evidências científicas. E como a ciência consegue fazer essas contas?, dispara alguém ainda bocejando e com expressão azeda e ranzinza, oito horas da manhã, num canto da sala, apenas uma sobrancelha erguida em tom desafiador. Uma dúvida. Bom sinal. A réplica – graças à radiação cósmica de fundo, que surgiu com a gigantesca concentração de energia que resultou na explosão inicial que deu origem às estrelas e aos planetas. Essas ondas eletromagnéticas continuam viajando por aí, podendo ser captadas por antenas de observatórios e estudadas por astrônomos. São chamadas de ecos do Big Bang. Silêncio, sem resmungos ou muxoxos. Autorização para seguir em frente, entendo. Digo que, há cinco bilhões de anos, a Terra era uma enorme bola de fogo, incapaz de abrigar vida. Estava tudo fervendo e borbulhando. Foi apenas há três bilhões de anos, aproximadamente, que as temperaturas tornaram-se mais amigáveis e o planeta começou a reunir condições de ser ocupado por seres vivos. Eram ainda muito rudimentares, célula única. Alimentavam-se e movimentavam-se graças às correntezas d’água. Não há ainda consenso sobre se essas primeiras manifestações de vida surgiram originalmente por reações químicas ocorridas aqui ou se foram trazidas de fora, carregadas por cometas e asteroides que desembarcavam por aqui com certa frequência. ‘Mas… a ciência tem dúvidas?’, arrisca uma jovem na primeira fileira de carteiras, com sincera expressão de angústia intelectual. Sorrio, satisfeito. Vamos lá. O bom cientista é movido por perguntas. Sempre tem dúvidas. A ciência é uma sucessão de verdades provisórias. O conhecimento possível, naquelas condições. ‘Nossa…’, deixa escapar a aluna, pensativa. Não quero perder a tímida empolgação que se anuncia. Pessoal, vida complexa mesmo, sistemas e órgãos, só começaram a aparecer há seiscentos milhões de anos. Entre 260 e 65 milhões de anos atrás, quem dominou o planeta foram os dinossauros. Eram os senhores da Terra. Os hominídeos, nossos ancestrais, só deram o ar da graça e começaram a descer das árvores há seis milhões de anos. ‘Quer dizer então que homens e tiranossauros viveram juntos… só que não!”, manda um garotão, que parecia acompanhar atentamente minha falação sem fim. Só na ficção científica, reforço. Homens das cavernas jamais deram com porretes ou clavas nas cabeças dos enormes dinossauros, por uma razão muito simples – viveram em tempos diferentes. Sabem como se chamava aquela que durante muitos anos foi considerada a nossa mais antiga ancestral conhecida, a nossa tatatatatatatataravó? ‘Era a Lucy, professor?’, sussurra um rapaz do fundão. Exatamente. Os fósseis dela foram encontrados em 1974, na Etiópia, um sítio riquíssimo de ossadas de ancestrais humanos. Ela viveu há 3,4 milhões de anos e recebeu esse nome como homenagem à música dos Beatles, ‘Lucy in the sky with diamonds’. O pesquisador que a descobriu era fã dos quatro de Liverpool. ‘Massa, professor!’. Mais recentemente, em 2009, outra ossada, também muito bem preservada, com 4,4 milhões de anos, um milhão de anos mais antiga que a Lucy, portanto, foi encontrada também na Etiópia. O nome? Ardi! ‘Que estranho. Por quê?’. Vem do nome científico, Ardipithecus afarensis. ‘Lucy, depois Ardi… era uma, agora é outra… Verdades provisórias de novo, Chico?’. Perfeito! Lucy não deixou de ser especial, importantíssima para a ciência. Apenas perdeu a coroa de mais antigo representante conhecido dos humanos. Mostro fotos e vídeos das duas. Empolgam-se. ‘Eram bem diferentes da gente, hein?’. Surgem os comentários paralelos, essa é mais alta, aquela é mais peluda, as ossadas estavam completas, olha o tamanho das mãos delas, achei que fossem mais altas. Deixo rolar. Querem falar, registrar as impressões. Quando chegamos à descoberta do fogo, ao bipedismo, à agricultura, à invenção da escrita e à fundação de cidades e grandes civilizações, o clima na sala já é muito menos arisco. Os alunos continuam desconfiados – ‘sei lá, ainda acho que a qualquer momento o Chico vai começar a cobrar movimento uniformemente variado e cálculo estequiométrico, aposto que essa bagaça vai cair na prova’. A sincera atenção, no entanto, é agora uma grata surpresa. Curiosos, línguas menos ferinas, espíritos desarmados, estão mais dispostos a ouvir. Porque a ciência é isso – uma fascinante e encantadora narrativa de mundo. Procura explicar, com todas as limitações nossas de cada dia, erros e acertos, os fenômenos desse mundão tão inóspito quanto acolhedor em que vivemos e as relações que estabelecemos com ele e entre nós mesmos. É sustentada por evidências e experimentações. Tem começo, meio, fim. Personagens. Enredos. Conflitos. Clímax. Ambientes. Idas e vindas. E finais que podem ser felizes – ou não, como diria Caetano Veloso. Se um estudo não der certo? Tenta-se de novo. Uma saga que não tem fim. É alimentada pelo espírito de aventura e por curiosidades. Repito, já nos últimos segundos do encontro – cientistas devem saber formular boas perguntas. Como os jornalistas. ‘Professor, valeu. A aula foi irada. Até a semana que vem’.


Francisco Bicudo é jornalista, professor universitário e cronista

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