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Pesquisadores explicam arqueologia da arquitetura repressiva no DOPS de Belo Horizonte

A partir de plantas baixas da época, da observação do estado atual do prédio e do depoimento de pessoas que foram torturadas durante a ditadura civil-militar na antiga sede do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) na capital mineira, artigo (link aqui) dos pesquisadores Pedro Fermín Maguire e Denise Neves Batista Costa, ambos ligados ao Programa de Pós-graduação em Antropologia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) investiga como a arquitetura do prédio colaborou para a criação de um ambiente destinado a intensificar o sofrimento dos torturados. O Ciência na Rua conversou por e-mail com os pesquisadores. Confira abaixo a entrevista.

Como vocês resumiriam seu estudo?

O objetivo do estudo, até o momento foi desenvolver uma abordagem arqueológica examinando as marcas na estrutura arquitetônica do prédio que foi sede do DOPS-MG durante a ditadura civil-militar. Analisamos a materialidade remanescente no local, com o foco na prática da “tortura científica”. Exploramos a genealogia do termo e utilizamos como fonte documental, principalmente, pesquisas desenvolvidas pela CIA na década de 1950, que deram origem a este termo e também serviram de base para a prática da tortura no Brasil no contexto ditatorial. A discussão que fazemos é em torno destas práticas, que estão citadas nos chamados Manuais Kubark – os documentos produzidos pela CIA para disseminar as “técnicas de interrogatório”, que nada mais são do que técnicas de tortura.

Essa abordagem arqueológica da arquitetura se insere em qual ou quais campos do conhecimento? É uma área própria?

Nosso estudo se insere numa linha de pesquisa chamada Arqueologia da Repressão e da Resistência; o campo da arqueologia iniciou a sua relação com as pesquisas sobre violações de direitos humanos nos anos 80, e continua em vários países da América do Sul: na Argentina, no Chile, no Uruguai etc. No Brasil, é uma subárea da arqueologia que tem se expandido na última década, principalmente a partir de trabalhos como o de Pedro Funari, Andrés Zarankin e José Alberioni em seu livro “Arqueologia da Repressão e da Resistência: a América Latina na era das Ditaduras (décadas de 1960/1980)”, publicado em 2008. No caso, quando falamos do termo “repressão e resistência” estamos nos referindo a temáticas que envolvem conflitos, guerras, ditaduras e etc nos séculos XX e XI.

As terminologias para tratar desses temas variam, podendo ser “arqueologia do conflito”, “arqueologia das ditaduras”, entre outras. No caso da abordagem arqueológica da arquitetura, como o próprio nome já diz, temos como foco de estudo a materialidade dos prédios, das estruturas arquitetônicas relacionadas aos diversos contextos.

Consideramos de relevância arqueológica a materialidade arquitetônica desses espaços porque as atividades repressivas – e também as de resistência – acontecem dentro de locais específicos, sejam eles delegacias, centros clandestinos de detenção, ou até mesmo escolas. A forma com que são utilizados, muitas vezes tendo sua estrutura reformada e adaptada para exercer a função repressora, se insere numa sistemática que conforma toda a ideologia de um regime ditatorial. Consideramos os lugares/espaços/prédios como elementos participantes e de relevância para a eficácia e manutenção desses regimes na época.

Mas, além disso, a arqueologia da arquitetura tem resultado em novas metodologias de análise, metodologias essas que vêm já de uma bibliografia e estudos sobre a arquitetura, e nos possibilitam reflexões e análises mais complexas sobre os prédios e espaços.

O que é tortura científica?

Pedro Fermín Maguire e Denise Neves Batista Costa

A “tortura científica” ou “tortura psicológica” consiste numa série de métodos e técnicas que foram estudados e desenvolvidos com respaldo científico para servir enquanto prática de tortura. Essas práticas vão além da “tortura medieval”, cujo enfoque era no físico, no corpóreo, isto é, passam para o plano mental e sensorial. Esses estudos são citados na obra do historiador Alfred McCoy, que aprofunda a relação da CIA enquanto organização que financiou, aplicou e disseminou essa tortura científica de forma ampla nos contextos de ditadura na América Latina.

Dois experimentos que foram chave para a elaboração dos Manuais Kubark foram os realizados pelo psicólogo Donald Hebb e o psiquiatra Ewen Cameron, ambos financiados pela CIA, com os experimentos situados na McGill University, no Canadá, na década de 1950. Já naquela época começaram a experimentar “aparelhagens” novas como o uso do eletrochoque, e a manipulação dos sentidos, como a privação dos estímulos sonoros ou da visão e tato. A intenção era destituir as pessoas de sua consciência e muitas vezes de sua sanidade. O uso de hipnose também indica a ideia da “lavagem cerebral” por meio dos experimentos.

Foi uma forma de utilizar o aparato científico para que através do psicológico e do sensorial fossem desenvolvidos métodos do que chamam de controle da mente, levando as pessoas a extremos; no contexto de tortura, foi utilizado enquanto metodologia mais eficaz para interrogatórios, para subjugar e torturar de formas antes não conhecida.

Existe um limite claro entre técnicas de interrogatório e tortura? Qual?

A luta contra as práticas de tortura pode ser descrita como uma longa jornada contra o seu emprego por instituições religiosas, estatais e de policiamento no mundo inteiro. Não podemos esquecer que, por muito tempo, a tortura foi uma parte integrante dos processos penais. A definição legal do que constituiria tortura para banir esses procedimentos dos processos legais tem sido uma das preocupações fundamentais desse esforço. São bem conhecidos os documentos de convenções internacionais, como a Convenção de Genebra (1864 e 1906 respectivamente) que perseguia as agressões contra soldados presos de exércitos inimigos, ou da Convenção das Nações Unidas (1984) contra a tortura. Por sua clareza e seus aspectos materiais, vale destacar a definição da CNV (Comissão Nacional da Verdade) de 2014. Em seu relatório, a CNV detalhava que condições insalubres, ameaças, e isolamento das pessoas de seu meio social e familiar constituem formas de tortura.

Infelizmente, alguns estados têm investido em se utilizar de definições limítrofes para operar nas fronteiras daquilo que era permitido e legalizar práticas que claramente intensificam o sofrimento do detento ou interrogado.

Foi o caso da chamada “tortura científica” ou “tortura psicológica”, cuja própria formulação criava falsa dicotomias entre torturas “fortes” e “fracas” ou torturas “físicas” e “psicológicas” para permitir algumas práticas ambíguas e acobertar a simples tortura.

Em começos do século XXI, também foi o caso do “waterboarding”, que é outra maneira de falar em afogamentos, e uma forma crudelíssima de tortura cuja definição e uso foram longamente discutidos em relação aos detentos de Guantánamo nos Estados Unidos. O uso desse tipo de técnicas tem sido denunciado e ilegalizado várias vezes, assim como o seu disfarce sob uma linguagem tecnicista e cientificista para sustentar o seu uso por supostos expertos.

Qual é a importância do ambiente para deixar interrogados no estado mental almejado pelos interrogadores? Que estado mental é esse?

Os Manuais Kubark utilizavam o termo “ambiente” para se referir a maneiras de afetar as sensações do interrogado sem tocar diretamente o corpo dele. Alterações das condições térmicas do quarto, por exemplo, que afetavam a maneira na qual o interrogado iria se sentir. Os manuais também falavam em induzir a colaboração do interrogado, trasladando ele de um cômodo com uma situação mais desconfortável para outra mais amena. O ambiente era uma das maneiras para fazer ao interrogado sentir dependência do seu interrogador, faze-lo regredir a um estado de submissão ou, idealmente, fazê-lo identificar seu interrogador com uma figura paterna.

A tortura, em muitos casos, se dá com a vítima tendo os olhos vendados. Neste caso, o ambiente deixaria de ser um elemento a ser avaliado nas práticas de tortura?

Não, simplesmente seria mais uma maneira de tentar quebrar a vontade do interrogado através da percepção sensorial dele, só que reduzindo os estímulos ao mínimo. As pesquisas dos psicólogos financiados pela CIA tinham mostrado que, privado dos estímulos sensoriais, o cérebro humano tende a se voltar contra si próprio e se debilitar. Então seria mais uma maneira de agredir o interrogado e, idealmente, quebrar sua vontade. O isolamento sensorial com olhos vendados ou com capuz – os dois muito frequentes desde a Guerra Fria- seria mais uma forma de agressão contra o interrogado. Um elemento que contribuiria ao estado de confusão gerado por esse afastamento da pessoa do seu meio social. Uma mudança para um ambiente desconhecido que os manuais Kubark ainda recomendavam fazer de maneira súbita, prendendo a pessoa muito cedo de manhã para desestabilizar também sua orientação temporal.

Como o ambiente determina ou sugere relações de poder? Como a disposição de salas, gabinetes e celas no DOPS de BH exemplifica isso?

“Sauna” e “poço” no DOPS-MG

Os espaços podem determinar relações de poder e hierarquia na medida em que sua formação posiciona determinados indivíduos em determinados pontos estratégicos dentro dos prédios, corroborando a ideia do isolamento espacial de um grupo, priorizando a circulação de uns em detrimento de outros etc. Num contexto de aprisionamento, o que se observa é que a forma com que o espaço é desenhado e organizado possibilita uma eficácia do sistema em questão. No caso da ditadura e do DOPS-MG, podemos identificar como as adaptações feitas na estrutura do prédio foram formas de aprimorar o aparato repressor e o caráter clandestino do aprisionamento e da tortura dentro da delegacia.

Dentre as formas de identificar as estratégias de confinamento, isolamento e controle nos espaços, utilizamos em nosso projeto o Modelo Gamma de análise, que foi proposto inicialmente por Hillier e Hanson na década de 1980 nos Estados Unidos. Este modelo serve para analisarmos como os cômodos estão dispostos nos prédios e através de um gráfico elaborado a partir da localização destes cômodos na planta arquitetônica conseguimos perceber quais cômodos estão em condição de isolamento ou são de fácil acesso e circulação. Pensando estes dados em cruzamento com a função específica dos cômodos, no caso, quem eram as pessoas que podiam circular por aqueles espaços ou quem eram os confinados e “reféns” daquela estrutura, entendemos como alguns cômodos foram dispostos especificamente para assegurar este isolamento, aprisionamento.

Sala revestida com cortiça do DOPS-MG

No DOPS-MG existem dois cômodos que foram construídos e modificados durante o período ditatorial. São cômodos que têm características explícitas de ter sido utilizados enquanto salas de tortura, um deles tem as paredes recobertas por cortiças, proporcionando um isolamento acústico do espaço, e outro tem vestígios do que já foi uma sauna, e a marca de um antigo “poço” no chão. Identifica-se enquanto salas de tortura pela presença destes elementos, que conseguimos associar com práticas citadas nos Manuais Kubark. Através da análise Gamma, pudemos perceber que a localização destes cômodos é extremamente estratégica, e ainda que a primeira vista não pareça, dado que ambos estão próximos à parte frontal e de divisa da delegacia com a rua, são de acesso bastante restrito, dada a dependência que têm de cômodos chave, que eram ocupados por pessoas que determinavam quando tais cômodos seriam acessados ou não. Também percebemos que pela sua localização, a circulação dos presos e presas de suas celas para os respectivos locais de tortura não era necessariamente pelo prédio principal, a vista de todos, mas por um acesso secundário, que existia apenas para essa função específica.

Esse é um exemplo de como o espaço interfere, determinando, conduzindo, sendo parte integrante de um sistema repressivo que, além de refletir uma ideologia, ele próprio a constitui.

No momento estamos desenvolvendo análises mais aprofundadas da arquitetura do DOPS-MG, para uma compreensão mais completa do que foi a repressão dentro daquela delegacia, e além disso está sendo criado um grupo de pesquisa de Arqueologia da Repressão e da Resistência na UFMG, para que mais pesquisas como esta sejam desenvolvidas, principalmente com foco no período ditatorial no Estado de Minas Gerais

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