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Para além das máquinas de adorável graça – livro explora relações entre cultura hacker e democracia

por Ariane Corniani*

Em Para além das máquinas de adorável graça: cultura hacker, cibernética e democracia, Rafael de Almeida Evangelista analisa as relações entre tecnologia e sociedade, um dos aspectos cruciais do capitalismo contemporâneo, com foco na cultura hacker. O livro publicado em julho de 2018 faz parte da coleção Democracia Digital, organizada pelo professor e sociólogo Sérgio Amadeu da Silveira e publicada pelas Edições Sesc SP.


Inicialmente, o autor introduz a ideia de cultura hacker a partir de três narrativas históricas de personagens notáveis e insere o leitor no universo tecnológico através das transformações no uso das tecnologias promovidas por esses personagens desde os anos 1950. Segundo Evangelista, para entender culturalmente os hackers é necessário olhar para os contextos políticos, os conflitos sociais, os choques culturais, portanto, é necessário conhecer a história das pessoas envolvidas, seus valores, as suas influências, para enfim compreender que hackers não são as pessoas e sim, as características atribuídas às pessoas.


Em seguida, Evangelista recorre à obra Hackers: Heroes of the Computer Revolution, de Steven Levy (1984), para contextualizar o leitor no ambiente social, práticas, hábitos e valores dos hackers: estudantes de engenharia e matemática de grandes centros de pesquisa dos Estados Unidos, fascinados por telefones, comunicação e controle de dispositivos. Com influência da ética hacker, os estudos de informática e ciência da computação surgem baseados em uma nova ciência interdisciplinar, a cibernética, uma “ciência de controle do homem, da máquina e da sociedade”, na definição canônica de Norbert Wiener (1948).


No entanto, Rafael Evangelista explica que essa revolução não aconteceu apenas nos grandes centros de desenvolvimento tecnológico-militar. A crescente popularização da informática atingiu também hackers amadores dos movimentos de contracultura, que se apropriaram das tradições de liberdade e compartilhamento da cultura hacker e a reinventaram ao seu modo, contribuindo também para as transformações tecnológicas e sociais dos anos seguintes. Com essas diversas formas de definição, surgiu um processo de disputa ideológica pelo termo hacker.


No terceiro capítulo, o autor revela a origem do título do livro, inspirado no poema de Richard Brautigan, All Watched Over By Machines Of Loving Grace, que evoca um futuro controlado pela harmonia mutuamente programada. Evangelista observa que o título propõe um trocadilho: watched over tanto pode significar vigilância como observação e colaboração ativa na execução de uma tarefa, ambiguidade também presente nas relações entre tecnologia e sociedade, que transformam as formas de governo, a produção de conhecimento e a economia.


Com exemplos comuns de plataformas como o YouTube e a Wikipedia ou de situações históricas recentes como a Primavera Árabe, o autor conclui que soluções tecnológicas para problemas políticos não são suficientes para o fortalecimento das democracias e podem reforçar ainda mais as assimetrias preexistentes, criando até mesmo uma guerra dos Estados contra os próprios cidadãos. As ameaças à democracia que surgem nesse contexto de avanço tecnológico são denominadas capitalismo de vigilância e capitalismo de plataforma.


Capitalismo de plataforma sugere uma economia colaborativa, de compartilhamento, com origem na ascensão de plataformas como AirBnB, Uber, Amazon e Facebook. No entanto, logo foi possível identificar incoerências nesse modelo, que na verdade não trata de compartilhamento, como concebido pela ética hacker e os movimentos de contracultura dos anos 1960, mas da maximização de exploração de bens por empresas centralizadoras das relações. Nessa relação de exploração surge um fenômeno mais complexo e agudo, o capitalismo de vigilância, “uma nova lógica emergente de acumulação econômica que pretende prever e modificar o comportamento humano como meio de produção de lucro e controle do mercado”, segundo Shoshana Zuboff (2015), professora de Harvard.


Evangelista conclui o livro no quarto capítulo argumentando que embora a cultura hacker e a cibernética tenham dado origem a essas novas formas de exploração no capitalismo, não são formas democráticas ou antidemocráticas por essência. O que a cultura hacker propõe são bases históricas e teórico-filosóficas para pensar os processos e as relações entre tecnologia e sociedade, uma dessas bases é conhecer e tomar controle da tecnologia para enfrentar a vigilância e o capitalismo de vigilância. De acordo com o autor, um dos enfrentamentos pode estar em pensar a alienação definida por Karl Marx (2013) de uma forma mais completa e complexa. Se o capitalismo de vigilância transforma dados de indivíduos em diversas fontes de lucros apropriados por poucos, para democratizar a tecnologia não basta difundir seu uso, é necessário considerar o controle da infraestrutura de comunicação.


Rafael Evangelista é bem sucedido ao apresentar o panorama histórico da cultura hacker de forma acessível, com uma linguagem simples e objetiva que foge aos academicismos, senso comum e jargões de aficcionados por tecnologia, os hackers, geeks, nerds, ativistas e outros grupos relacionados à cultura digital. Os capítulos são ilustrados com diversas histórias, algumas menos conhecidas e outras que já fazem parte do repertório popular, como a de Julian Assange e Edward Snowden, o que facilita a compreensão das relações entre as ideias originais e as forças que atualmente disputam o controle da tecnologia.


Para além das máquinas de adorável graça: cultura hacker, cibernética e democracia pode ser uma importante ferramenta para compreensão dos casos de manipulação do processo eleitoral brasileiro em 2018, que se deu por meio da compra de bancos de dados de eleitores e serviços de disparo de propaganda direcionada em plataformas de mensagens instantâneas, um exemplo recente porém pouco compreendido dos riscos da intensificação das assimetrias políticas produzidas pelo capitalismo de vigilância.

Referências bibliográficas

EVANGELISTA, Rafael. Para além das máquinas de adorável graça: cultura hacker, cibernética e democracia. Coleção Democracia Digital. Org. Sérgio Amadeu da Silveira. Edições Sesc. São Paulo, 2018.
LEVY, Steven. Hackers: Heroes of the Computer Revolution . Nova York: Doubleday, 1984.
MARX, Karl. A mercadoria. In: MARX, Karl. O Capital: Crítica da economia política. Livro I: O processo de produção do capital. Trad. Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2013, pp. 113-158.
WIENER, Norbert. Cibernética e sociedade: o uso humano de seres humanos . São Paulo: Cultrix, 1968.
ZUBOFF, Shoshana. Big Other: Surveillance Capitalism and the Prospects of an Information Civilization. Journal of Information Technology , v. 30, n. 1, 2015, pp. 75-89. Disponível em: < https://papers.ssrn.com/abstract=2594754 >. Acesso em: 20 nov. 2018.

* Ariane Corniani é fundadora do Minas Programam e estudante de Ciências Sociais na USP. A resenha foi escrita originalmente para a disciplina Sociologia do Capitalismo Contemporâneo.

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