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O lugar da comunicação, os golpes da mídia

A primeira página da Folha de S. Paulo do domingo, 3 de abril, trouxe, ao lado esquerdo da manchete (“Governo absorve 72% do crédito do país em 2015”) um editorial em duas colunas, de alto a baixo, interrompido apenas no sexto final da página por um anúncio de carro.

Em retórica que ecoa famosos editoriais de 1964, em especial o “Basta!” e o “Fora!” do Correio da Manhã, respectivamente dos dias 31 de março e 1º de abril daquele nefasto ano, a Folha decide que “a presidente Dilma Rousseff (PT) perdeu as condições de governar o país” e informa que o jornal “passa a se incluir entre os que preferem a renúncia à deposição constitucional”.

Vê razões para o impeachment da presidente, mas não está seguro de que será aprovado. Concede que, “mesmo desmoralizado, o PT tem respaldo de uma minoria expressiva; o impeachment tenderá a deixar um rastro de ressentimento. Já a renúncia traduziria, num gesto de desapego e realismo, a consciência da mandatária de que condições alheias à sua vontade a impedem de se desincumbir da missão”.

A renúncia também de Temer o afastamento de Eduardo Cunha da presidência da Câmara dos Deputados por essa própria instituição ou pelo STF completam o receituário prescrito pela Folha para sanar a crise política que chacoalha o país.

E depois, o que viria?

“Dada a gravidade excepcional desta crise, seria uma bênção que o poder retornasse logo ao povo a fim de que ele investisse alguém da legitimidade requerida para promover reformas estruturais e tirar o país da estagnação”, decreta. Finaliza com uma exortação: “Dilma Rousseff deve renunciar já, para poupar o país do trauma do impeachment e superar tanto o impasse que o mantém atolado como a calamidade sem precedentes do atual governo”.

Deixemos temporariamente de lado a arrogância de um jornal cuja tiragem, num país com 203 milhões de habitantes, hoje não alcança a média diária de 300 mil exemplares e, sem procuração, propõe que o poder retorne ao povo, este mesmo povo que, a propósito, ele parece ter esquecido, levou Dilma Rousseff à presidência do país com mais de 54 milhões de votos. Antes apenas assinalemos que víamos aqui uma adaptação da narrativa que o jornal vinha fazendo, descrente talvez, a essa altura, dos rumos que antevia e passavam pelo impeachment. Mas hoje mesmo, 4 de abril, a Folha me corrige e diz publicamente que nunca defendeu o impeachment.

Uma tradição golpista

Sem entrar muito aqui nos meandros cheios de armadilhas sobre o que vem a ser fato, acontecimento, notícia ou narrativa jornalística, admitamos que o jornalismo realmente incorpora o senso comum sobre os fatos, mas, como propõe Muniz Sodré1, “principalmente um senso moldado pelo positivismo, doutrina cujo auge coincide com a ascensão prestigiosa da imprensa burguesa”. A ideia da objetividade jornalística, segundo a qual o jornalismo informativo deveria funcionar como um espelho do mundo real, acrescenta ele, “é também uma doutrina, de caráter profissional-industrial, apenas sem garantias acadêmicas, como é o caso do positivismo”.

O jornalismo trataria assim de conhecer fatos, girando em torno da história, para concretizar em notícia a informação jornalística. E nesse circuito é que ele opera realmente a construção de acontecimentos.

“…A mídia aparece como o dispositivo de conversão social ao público, já que a midiatização é hoje o processo central de visibilização e produção dos fatos sociais na esfera pública. Por isto, o enquadramento midiático é a operação principal pela qual se seleciona, enfatiza e apresenta (logo, se constrói) o acontecimento”2.

Sem sombra de dúvida, toda a dinâmica de conhecer fatos, elaborar um discurso pretensamente objetivo sobre eles, construir o acontecimento, e dotá-la de uma circularidade poderosa para modificar os fatos, não é operada apenas no interior do fazer jornalístico. “Os jornalistas são apenas uma das várias categorias de atores mobilizadas para a determinação dos fatos e sua posterior transformação em acontecimento midiático”3. Além deles há também um público, “em que indivíduos particularmente atentos ao que se torna visível na cena de um espaço público, tomam posição ou se comprometem com uma causa coletiva qualquer”.

Para finalizar essas digressões amparadas em Muniz Sodré, cito-o uma vez mais: “Embora o relato jornalístico seja realmente uma ‘construção’, feita por uma subjetividade a partir de outros relatos (provindos das fontes), existe uma presunção de imparcialidade, garantida pelo estatuto profissional do jornalista. Produz-se a notícia com a presunção de que o acontecimento adquira o estatuto pleno de fato, dando sentido ao que ocorreu e possibilidades de previsão quanto ao que ainda vai ocorrer. O poder do jornalismo, por mais frágil que possa parecer frente ao Estado e por menos que esconda a subjetividade do jornalista no embate hegemônico, consiste em sua exposição do fato social, ou seja, de uma unidade onde se entrecruzam outras táticas de poder típicas da sociedade civil em sua luta pela hegemonia das representações”.

Mas o que as narrativas do jornalismo hegemônico nesse momento de uma crise política de extensão e profundidade que, diria, nos pegou a todos de surpresa, têm a ver com tudo isso? Na segunda metade dos anos 1980, na pesquisa para a elaboração de minha dissertação de mestrado, “Informação em off: uma operação de poder”, examinando todo o jogo de informações e contrainformações que alimentavam o noticiário econômico imediatamente antes e na vigência do Plano Cruzado, nos anos 1986/1987, busquei identificar quais eram as forças que se digladiavam e que interesses defendiam por meio dos vazamentos sistemáticos de informações para a imprensa. E cheguei à conclusão naquele momento que a prática do off na imprensa brasileira ocupava o lugar da disputa abertamente político-partidária e de grupos econômicos em oposição que antes era explícita nos jornais brasileiros. E o era até bem adentrada a primeira metade do século XX, a despeito da autodeclarada objetividade enfeitar os discursos de parte da imprensa sobre si mesma.

Pois bem, é esse verniz da objetividade, da imparcialidade e da representação do interesse público como um todo que nos momentos de crise política aguda a imprensa e, já mais recentemente, a mídia hegemônica como um todo, parece rasgar ao lançar suas palavras bala e ao não conseguir disfarçar diante das câmeras as tempestades que literalmente assolam as subjetividades envolvidas na transmissão da informação jornalística e comprometidas mesmo com o modo de ver que balizou a informação que lê. O inconformismo, a indignação, o nojo, ou a alegria ante uma suposta vitória de “seu lado”, tudo isso vaza nos rostos expostos na tela. Em grande parte, o jogo se mostra bruto, as relações de classe ou, mais claramente, a luta de classes aparece. A origem dos offs, transformados em vazamentos seletivos e escandalosos de documentos, já nem precisa ser protegida.

Já não se trata, diz Maria Helena Capelatto em entrevista à Univesp TV a respeito da imprensa em 1964, de persuadir, de convencer, mas de “uma incitação à ação” para a defesa intransigente dos seus interesses – interesses conservadores, da direita liberal tanto quanto da direita patrimonialista.

Eram esses interesses que ela via ameaçados em 1953/1954, em 1955, em 1961 e, em 1964, quando, além de articular, teve efetivamente sucesso na realização do golpe que desviou o país de um caminho possível para uma longa noite ditatorial.

“A imprensa tornou-se peça-chave na conspiração contra Goulart em fins de 1963, segundo Marcos Napolitano, quando três dos principais jornais cariocas – O Jornal, dos Diários Associados, Jornal do Brasil, da família Nascimento Brito, e O Globo, da família Marinho – uniram vozes na chamada Rede da Democracia, um arranjo midiático a favor da destituição do governo de Goulart”, diz Rodrigo de Oliveira Andrade em reportagem na Pesquisa Fapesp4. Era uma resposta, evidentemente, à Rede da Legalidade que Brizola articulara três anos antes para garantir a posse de Jango após a renúncia de Janio Quadros, que as três armas militares queriam impedir.

Capelato acresce à lista o Correio da Manhã, com papel decisivo na trama, e os principais jornais de São Paulo, incluindo o Estadão que “apelou à intervenção militar,, aplaudiu a Marcha da Família com Deus pela Liberdade – série de manifestações civis promovidas entre março e junho de 1964, contra o comunismo, o governo e sua agenda reformista — e festejou o sucesso do golpe”. Irônica, ela lembra que nos anos finais da ditadura o Estadão participou da luta pela redemocratização do país e “até hoje se vangloria de ter lutado pela volta da democracia no Brasil”. A Folha também apoiou o golpe, ela observa. A televisão não tinha peso no momento do golpe, mas a Globo cresceria exponencialmente exatamente à sombra do golpe militar e de estreita colaboração com o regime.

Ora, são movimentos similares os que a mídia brasileira ao longo de 2015 e 2016 vem realizando e até palavras de ordem se repetem, como o “Basta” brandido há alguns dias pelo Estadão.

Há um clima de fim de mundo que, combinados, jornais, rádios das redes hegemônicas, televisão e, já agora, os veículos desses veículos na internet e nas redes sociais, constroem dia após dia, numa tentativa de captura incessante de corações e mentes desse público que se constitui, diz Muniz, “ainda que provisoriamente, como um sujeito coletivo e pode difratar-se ou diversificar-se em torno de experiências variadas”. Tentativa também de conquista de uma massa desorganizada e violenta que confusamente busca um líder autoritário que lhe dê direção, como tem insistido Marilena Chauí.

Uma diferença sensível

Entretanto, há gigantescas diferenças entre 1964 e 2016 para tristeza dos que desejavam ter o golpe encaminhado e resolvido sem grandes delongas.
Qual é o grande diferencial agora em relação a 1964, por exemplo, no que diz respeito aos resultados da investida da mídia contra a legalidade democrática? A internet, que possibilita uma outra ação comunicacional, com outros atores muito diversos? A presença do não ao golpe nas ruas? Os efeitos já do acesso de uma formidável quantidade de jovens das classes pobres à universidade? A inclusão social, por múltiplas formas, de milhões de brasileiros reconhecidos como cidadãos? Tudo isso junto?

Quero só destacar alguns dados para nossa reflexão:

E por último, observar que nesse trabalho de reorganização, reconfiguração, como quer que se chame, mas que teremos que fazer se de fato queremos fazer este nosso país avançar no sentido social, econômico e do aperfeiçoamento político, há duas questões essenciais no que diz respeito à mídia:

1) A regulação dos meios de comunicação, que existe em qualquer meio civilizado. Estamos falando de um mercado em que os investimentos de mídia alcançaram 60 bilhões de reais no primeiro semestre de 2015.

Fonte: Meio e Mensagem
Veículo Investimento Share
TV Aberta R$ 33,152 bilhões 55%
Jornais R$ 7,804 bilhões 13%
TV Paga R$ 6,175 bilhões 10%
Internet R$ 4,421 bilhões 7%
TV (Merchandising) R$ 3,049 bilhões 5%
Revista R$ 2,406 bilhões 4%
Rádio R$ 2,382 bilhões 4%
Rádio R$ 2,382 bilhões 4%
Cinema R$ 358 milhões 1%
Mobiliário Urbano R$ 314 milhões 1%
Outdoor R$ 57 milhões 0%

2) O financiamento à expansão da mídia alternativa, hoje principalmente na internet e nas redes sociais.

E a luta continua!



1 Muniz Sodré, A narração do fato, 2009, p. 31
2 Op. Cit. p. 38
3 Op. Cit. p. 40
4 Pesquisa Fapesp, edição 218, abril de 2014, p. 21

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