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O conhecimento sobre a epidemia de microcefalia ainda é muito parco
Conhecimento

por | 15 jan 2016

Há alguma coisa que já se sabe e muita coisa que se desconhece sobre a epidemia de microcefalia em curso no Brasil associada a infecção pelo vírus zika. Até porque este é um evento novo — e grave — de saúde pública em dimensão global, completamente carente de conhecimento científico acumulado. Registre-se, a propósito, que até a terça feira, 11, estavam “em investigação 3.530 casos registrados em 724 municípios de 21 unidades da federação”, de acordo com os dados oficiais do Ministério da Saúde.

Na verdade, foi só o alerta partido do Brasil, já nos últimos meses de 2015, que levou autoridades mundiais de saúde a considerar pela primeira vez a conexão entre microcefalia em bebês e infecção de gestantes pelo zika, o vírus transmitido pelo mosquito Aedes aegypti — e talvez não apenas por esse mosquito, eis aí uma nova dúvida preocupante.

Apresentados em palestras dos pesquisadores pernambucanos Cecília Martelli e Ricardo Ximenes, esses e outros dados do panorama que até aqui se tem da epidemia de microcefalia no país foram objeto da aula inaugural do segundo semestre letivo de 2015 da Universidade Federal da Bahia (UFBA), proferida na última quarta feira, 13. É isso mesmo, não há erro na referência ao semestre, a greve do ano passado deslocou o tempo e criou um calendário particular para as universidades federais.

Figura 1 - Distribuição espacial dos municípios com casos de microcefalia

Velocidade de transmissão espantosa – Celina, pesquisadora da Fundação Oswaldo Cruz de Pernambuco, depois de mostrar figuras e gráficos altamente ilustrativos da evolução das doenças contagiosas nos Estados Unidos de 1988 até o presente (material do New England Journal of Medicine, por exemplo), observou que a década de 1980 claramente foi um marco do ponto de vista epidemiológico. Porque, se do pós-guerra até então, a noção generalizada era de que as epidemias tinham se tornado controláveis, o aparecimento de novas e grandes epidemias na área urbana nesse período jogou por terra essa visão otimista.

No âmbito das epidemias, ela lembrou, é o potencial de transmissão dos vírus, seja pessoa a pessoa ou por meio de vetores, que estabelece o tamanho da urgência em saúde pública. Assim, a dengue chegou no Brasil no final da década de 1980, já em 1996 registraram-se 600 mil casos da doença, uma década depois foram 1,4 milhão de casos notificados, com todas as cepas do vírus já presentes no país. E, em 2015, se atingiram 1,6 milhão.

“Não há controle do mosquito vetor, os programas de controle não foram bem sucedidos”, ela definiu.

Se a presença, a persistência e a expansão da dengue são inquietantes, a zika necessariamente aumenta o grau desse adjetivo para alarmante, tanto pelo potencial de transmissão do vírus quanto pela gravidade dessa condição patológica que é a microcefalia. Assim, não foi por exagero que, ao abrir a sessão da aula inaugural da UFBA, o reitor João Carlos Salles classificou a epidemia da zika no Brasil de tragédia.

A história, a epidemiologia, os aspectos clínicos e a prevenção da zika “são todos ainda conhecimento em construção”, disse Celina Martelli. Foi entre agosto e setembro do ano passado, ante o caso de três ou quatro crianças nascidas com microcefalia em Recife, que veio a indagação de por que essa frequência. A Secretaria de Saúde de Pernambuco começou em 26 de outubro a investigação e já em 11 de novembro era decretado o estado de emergência na saúde pública nacional pelo Ministério da Saúde.

O desconhecimento científico a respeito da relação entre zika e microcefalia era tamanho que a Nature, uma das mais prestigiosas revistas científicas do mundo, publicou em novembro passado um artigo sobre infecções que afetam o sistema nervoso central e não incluiu a zika, comentou Cecilia. Na verdade, se a dengue tem 5.491 artigos científicos completos a ela dedicados entre 2004 e 2015, segundo a Pubmed (banco de dados de pesquisa da área médica muito respeitado pela comunidade científica), o zika tem no mesmo período apenas 80, dos quais 75% apareceram só em 2014 e 2015. No final de 2015, outro respeitado periódico britânico da área médica, o Lancet, indagava se a zika seguiria o mesmo caminho da dengue e da febre chikugunya. Aliás, foi o Lancet que alertou que o vírus zika pode ser uma nova ameaça global neste ano.

“Quando os primeiros casos que demonstravam o aumento surpreendente da microcefalia surgiram, não se sabia o que a causava. Verificava-se a criança com o perímetro da cabeça muito reduzido (média próxima de 28 centímetros), com malformação importante no sistema nervoso, outras malformações, aparência entre elas semelhante (fenótipo), em geral filhos de mães que habitam áreas periurbanas (periferia)”, contou Cecilia Martelli.

O vírus foi isolado pela primeira vez do macaco rhesus na floresta de Zika, em Uganda (daí o seu nome). Era um arbovirus da família Flaviridae. Em 1960 registrara-se casos esporádicos de infecção na Ásia e na África. Em 2007 foi registrado o primeiro surto na Micronésia e em 2013/2014 o surto da Polinésia francesa, com a primeira evidência de consequência neurológica da infecção, na forma da síndrome de Guillan-Barré. Entretanto, ao rever abortos por malformação, depois do alerta brasileiro, a ligação entre zika e microcefalia fez sentido. Observe-se que o aborto é permitido na Polinésia francesa.

”O sistema de vigilância de saúde europeu comeu bola durante dois anos, e só depois do alerta do Brasil fez uma revisão do surto da Polinésia”, comentou a pesquisadora.

Depois de destacar o que será preciso para um plano nacional de enfrentamento da microcefalia e que o Nordeste registra mais de 2.700 casos do total dos casos no país, Ccilia Marteli deixou perguntas, em vez de conclusões para a plateia, a respeito da epidemiologia, do período de transmissão, da taxa de reprodutibilidade, da definição clínica e espectro dos casos, da patogenicidade e da competência vetorial.

“Que competência vertiginosa é essa que em apenas 6 meses difunde tanto um vírus”?, ela perguntou, o que remete a uma afirmação de seu colega Ricardo Ximenes, sobre cuja palestra o Ciência na rua tratará em breve. “É possível que haja outros mosquitos envolvidos na transmissão do zika”, disse esse professor da Universidade Federal de Pernambuco (UFP).

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