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EU SOU VOCÊ AMANHÃ

por | 24 out 2016

Tivesse tempo e dinheiro, passaria o ano viajando. Vai ver é por essa razão que adora a Literatura. Viajar sem do sofá de casa sair. Diverte-se à beça e dá boas gargalhadas escrevendo sobre as viagens que faz. Quando vem a saudade e bate a nostalgia, dureza ácida e cinzenta do cotidiano estressante a atormentar, corre para reler os relatos escritos e guardados com carinho e esmero. É uma de suas terapias preferidas. Novamente se deixa levemente transportar para as tantas peripécias e aventuras vividas. É como se voltassem a acontecer. Sensação de conforto, fragrância de tranquilidade quando o tempo parece correr mais rápido que os ponteiros dos relógios.

Dia desses, atarantado com o mundaréu de tarefas a cumprir, anotações feitas e ticadas na agenda, para não se perder, Cabralzinho resgatou do blog lembranças de uma viagem feita a Buenos Aires, reveillon de 2011 para 2012. Nove de Julho, Obelisco, Recoleta, La Bombonera, Casa Rosada. Tangos e empanadas. Sobre a visita ao zoológico da cidadezinha de Luján, registrou: “da área reservada aos macaquinhos subia um cheiro horroroso, ácido, a lembrar esgoto, lixão, talvez o Pinheiros ou o Tietê. O filho tapou o nariz. A esposa quase encostou na grade para fotografar um deles. Sorrateiro e dissimulado, fingindo não estar nem aí, o malandrão repentinamente meteu a mãozona para fora da jaula, tentando alcançar a câmera. Talvez fique irritado com os paparazzi que passam por lá todos os dias, a incomodar o sossego dele”. Ou será que queria apenas tirar uma selfie com tão ilustres visitantes? Ainda sobre os símios, cravou, encantado: “não se pode entrar no recanto dos chimpanzés. Mas parei para reverenciá-los. Um deles caminhava sobre os quatro membros. Alertou a filha: “era assim que a gente andava há alguns milhões de anos”. Pois um outro aceitou o desafio e começou a andar sobre duas pernas. Parou. Tentou alcançar uma bandeira rasgada que estava no alto da jaula. Abriu os braços. Parecia dizer: “tolinhos, também sei caminhar como vocês”. Quase aplaudi’. Cabralzinho sempre teve fascínio especial pelos parentes macacos. Na busca pelas origens, são como máquinas vivas que nos conduzem a páginas ancestrais de nossas histórias.

Estalo. E agora essa pesquisa sobre os macacos-prego do Piauí, na Serra da Capivara, que conseguem fabricar instrumentos com pedras lascadas que servem para quebrar coquinhos e tirar pequenos animais de suas tocas, exatamente como faziam os nossos parentes hominídeos, há uns dois milhões de anos! Saiu na ‘Nature’, tem até brasileiro na parada, fazendo parte da equipe. ‘E assim como o estudo sugere que a quebradeira de pedras pelos macacos é intuitiva, casual, é provável que tenha siso assim conosco também. Viraram lâminas e ferramentas depois, por conta de outras necessidades e pressões’, especulou. Cabralzinho tem o velho barbudo Darwin na sua galeria dos grandes da humanidade.

Para não perder a empolgação, interrompeu tudo o que estava fazendo – é urgente, mas pode esperar – e empenhou-se em preparar uma aula sobre o tema.  Leu e fichou o artigo original, a revelar mais detalhes sobre as lascas afiadas de pedras. Transportou as anotações mais importantes para um powerpoint (estava preocupado em trabalhar não apenas com convicções, mas principalmente com evidências). Separou trechos do filme ‘O planeta dos macacos’, o original, dos anos 1960, com Charlton Heston. Releu trechos que já tinha grifado do livro ‘Pegando fogo – Por que cozinhar nos tornou humanos’, escrito pelo antropólogo Richard Wrangham, que sugere que ‘somos os macacos que pensam… e cozinham’.  No canto superior direito de sua folha de resumo – uma bagunça de rabiscos, só ele entende – , Cabralzinho registrou com maiúsculas: ‘LEMBRAR OS ALUNOS QUE O GENOMA DO CHIMPANZÉ É 99% IDÊNTICO AO DOS HUMANOS’.

A aula foi muito boa, dúvidas e intensa participação dos alunos. Chegou aos minutos derradeiros, no entanto, sem que aquela questão tivesse sido feita. Estava feliz, satisfeito, mas ainda com uma pontinha de frustração. Caneta a postos, antes que pudesse começar a chamada, viu uma aluna aproximar-se de sua mesa. Tímida, olhava para o chão.

– Professor…

– Diga lá.

– Fiquei com vergonha, acho que é uma pergunta besta. Não quis falar alto, para a classe. Mas ficou martelando na minha cabeça a aula inteira. O senhor acha que algum dia os macacos vão alcançar o nosso atual estágio evolutivo?

Pensou em sair correndo pela classe, dar um pulo e um soco no ar, comemorando um gol como Pelé, para em seguida deslizar num peixinho que terminaria perto da lousa, num gesto eternizado pelo goleiro Marcos, do Palmeiras, depois de defender pênalti do Corinthians. A pergunta! Conteve-se, a muito custo. E pensou em absoluto silêncio, sem sequer esboçar sorriso. ‘Tomara. Tomara que cheguem. Quem sabe, quando alcançarem nosso estágio, nós já tenhamos retornado para as cavernas. Involução das espécies’.

– Talvez. Talvez seja possível. A pergunta é ótima. Quer especular um pouco mais sobre ela? O que acha de preparar um seminário para a semana que vem? Vamos à chamada. Alexandre…

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