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Congresso da UFBA: Contra a universidade operacional e a servidão voluntária
Marilema Chauí ao lado de João Carlos Salles: o Navio Negreiro como inspiração

Marilema Chauí ao lado de João Carlos Salles: o Navio Negreiro como inspiração

 

Integra da conferência de Marilena Chauí na abertura do Congresso da UFBA

Congresso da Universidade Federal da Bahia

14 de julho de 2016

Marilena Chaui

 

Abertura

Quando eu fiz 10 anos, minha mãe me deu este livro de presente, dizendo-me que era um livro para quem é feito de peroba e não se dobra aos ventos e tempestades. Deste livro, quero ler algumas estrofes de O navio negreiro.

Existe um povo que a bandeira empresta

P1ra cobrir tanta infâmia e cobardia!…

E deixa-a transformar-se nessa festa

Em manto impuro de bacante fria!…

Meu Deus! meu Deus! mas que bandeira é esta,

Que impudente na gávea tripudia?

 

Silêncio. Musa… chora, e chora tanto

Que o pavilhão se lave no teu pranto!…

Auriverde pendão de minha terra,

Que a brisa do Brasil beija e balança,

Estandarte que a luz do sol encerra

E as promessas divinas da esperança…

 

Tu que, da liberdade após a guerra,

Foste hasteado dos heróis na lança

Antes te houvessem roto na batalha,

Que servires a um povo de mortalha!…

 

Por que iniciar com os versos do patrono deste teatro?

Porque hoje é o dia 14 julho, dia da Queda da Bastilha, início da grande luta moderna pela liberdade, contra o arbítrio, a intolerância, a tortura, a violência e a servidão. Nessa prisão hedionda, inocentes, sem julgamento e sem provas, eram torturados e encarcerados até a morte, esquecidos de todos. Por isso, na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, lemos os seguintes artigos:

 

Art.7 Nenhum homem pode ser acusado, preso, nem detido senão nos casos determinados pela Lei e segundo as formas por ela prescritas. Os que solicitam, expedem, executam ou fazem executar ordens arbitrárias devem ser punidos…

Art. 9 Todo homem é considerado inocente até que seja provado culpado; caso se julgue indispensável prendê-lo, todo rigor que não seja necessário para a vigilância de sua pessoa, deve ser severamente reprimido pela Lei.

 

  1. Mudanças da universidade: do espaço público à privatização

Desde seu surgimento (no século XIII europeu), a universidade sempre foi uma instituição social, isto é, uma ação social, uma prática social fundada no reconhecimento público de sua legitimidade e de suas atribuições, num princípio de diferenciação, que lhe confere autonomia perante outras instituições sociais, e estruturada por ordenamentos, regras, normas e valores de reconhecimento e legitimidade internos a ela. A legitimidade da universidade moderna fundou-se na conquista da idéia de autonomia do saber em face da religião e do Estado, portanto, na idéia de um conhecimento guiado por sua própria lógica, por necessidades imanentes a ele, tanto do ponto de vista de sua invenção ou descoberta como de sua transmissão. Por isso mesmo, a universidade européia tornou-se inseparável das idéias de formação, reflexão, criação e crítica. Com as lutas sociais e políticas dos últimos séculos, com a conquista da educação e da cultura como direitos, a universidade tornou-se também uma instituição social inseparável da idéia de democracia e de democratização do saber: seja para realizar essa idéia, seja para opor-se a ela, a instituição universitária não pôde furtar-se à referência à democracia como idéia reguladora, nem pôde furtar-se a responder, afirmativa ou negativamente, ao ideal socialista.

Hoje, porém, a universidade passou a ser encarada como uma organização social[1]. Que significa, então, passar da condição de instituição social à de organização social? Antes de mais nada significa pensar uma instituição a partir da ideia e da prática da administração. Como mostrou a Teoria Crítica da Escola de Frankfurt, a idéia de administração é inseparável do modo de produção capitalista como produção de equivalentes para o mercado. O capitalismo estabeleceu uma mercadoria como equivalente universal que serve para avaliar o valor de todas as outras mercadorias, o dinheiro, generalizador da troca de equivalentes. A universalização dos equivalentes faz com que tudo seja equivalente a tudo ou que cada equivalente possa ser considerado homogêneo a qualquer outro. Essa homogeneização permite o aparecimento da ideia e da prática da administração como um conjunto de regras e princípios formais idênticos para todas as instituições sociais. Assim, não há diferença entre administrar uma montadora de veículos, um shopping center ou uma universidade. É a administração que transforma uma instituição social numa organização.

De fato, uma organização difere de uma instituição por definir-se por uma outra prática social, qual seja, a de sua instrumentalidade: está referida ao conjunto de meios particulares para obtenção de um objetivo particular. Não está referida a ações articuladas às idéias de reconhecimento externo e interno, de legitimidade interna e externa, mas a operações definidas como estratégias balizadas pelas idéias de eficácia e de sucesso no emprego de determinados meios para alcançar o objetivo particular que a define. É regida pelas idéias de gestão, planejamento, previsão, controle e êxito. Não lhe compete discutir ou questionar sua própria existência, sua função, seu lugar no interior da luta de classes, pois isso que para a instituição social universitária é crucial, é, para a organização, um dado de fato. Ela sabe (ou julga saber) por quê, para quê e onde existe.

A instituição social aspira à universalidade. A organização sabe que sua eficácia e seu sucesso dependem de sua particularidade. Isso significa que a instituição tem a sociedade como seu princípio e sua referência normativa e valorativa, enquanto a organização tem apenas a si mesma como referência, num processo de competição com outras que fixaram os mesmos objetivos particulares. Em outras palavras, a instituição se percebe inserida na divisão social e política e busca definir uma universalidade (ou imaginária ou desejável) que lhe permita responder às contradições impostas pela divisão. Ao contrário, a organização pretende gerir seu espaço e tempo particulares aceitando como dado bruto sua inserção num dos polos da divisão social, e seu alvo não é responder às contradições e sim vencer a competição com seus supostos iguais. Numa palavra, a instituição está orientada para o espaço público; a organização é determinada pela privatização dos conhecimentos.

Como foi possível passar da idéia da universidade como instituição social à sua definição como organização prestadora de serviços?

A forma atual do capitalismo se caracteriza pela fragmentação de todas as esferas da vida social, partindo da fragmentação da produção, da dispersão espacial e temporal do trabalho, da destruição dos referenciais que balizavam a identidade de classe e as formas da luta de classes. A sociedade aparece como uma rede móvel, instável, efêmera de organizações particulares definidas por estratégias particulares e programas particulares, competindo entre si. Sociedade e Natureza são reabsorvidas uma na outra e uma pela outra porque ambas deixaram de ser um princípio interno de estruturação e diferenciação das ações naturais e humanas para se tornarem, abstratamente, “meio ambiente”; e “meio ambiente” instável, fluido, permeado por um espaço e um tempo virtuais que nos afastam de qualquer densidade material; “meio ambiente” perigoso, ameaçador e ameaçado, que deve ser gerido, programado, planejado e controlado por estratégias de intervenção tecnológica e jogos de poder. Por isso mesmo, a permanência de uma organização depende muito pouco de sua estrutura interna e muito mais de sua capacidade de adaptar-se celeremente a mudanças rápidas da superfície do “meio ambiente”. Donde o interesse pela idéia de flexibilidade, que indica a capacidade adaptativa a mudanças contínuas e inesperadas. A organização pertence à ordem biológica da plasticidade do comportamento adaptativo.

No Brasil, a passagem da universidade da condição de instituição à de organização inseriu-se nessa mudança geral da sociedade, sob os efeitos do neoliberalismo, portanto, do encolhimento do espaço público dos direitos e o alargamento do espaço privado dos interesses de mercado. Essa mudança, iniciada sob a ditadura, foi consolidada no final dos anos 1990 com os governos de Fernando Henrique Cardoso. Embora os governos de Lula (2003-2011) e Dilma Roussef (2012-2016) tenham tentado recuperar o sentido da universidade pública como instituição social[2], entretanto o processo de sua transformação numa organização já havia sido consolidado pelos próprios dirigentes universitários, que o impuseram como se fosse o movimento natural e necessário da história e da sociedade.

Podemos dizer que a mudança da universidade pública brasileira ocorreu em três fases sucessivas, a primeira, anterior ao neoliberalismo, e as duas seguintes já sob o modelo neoliberal. Na primeira fase, durante a ditadura (1964-1980), tornou-se universidade funcional voltada para a formação rápida de profissionais requisitados como mão-de-obra altamente qualificada para o mercado de trabalho; adaptando-se às exigências do mercado, a universidade alterou seus currículos, programas e atividades para garantir a inserção profissional dos estudantes no mercado de trabalho, separando cada vez mais docência e pesquisa. Na segunda fase, durante a Nova República (1985-1994), tornou-se universidade de resultados, isto é, sem preocupação com a qualidade da docência e voltada para a pesquisa, em conformidade com as idéias de eficiência, produtividade e competitividade, ou seja, adotando o modelo do mercado para determinar a qualidade e quantidade das pesquisas. Finalmente, na terceira fase, (1994-2002), consolidou-se como universidade operacional, entendida como uma organização social e, portanto, voltada para si mesma enquanto estrutura de gestão e de arbitragem de contratos.

 

  1. A universidade operacional

Como opera a universidade operacional?

Regida por contratos de gestão, avaliada por índices de produtividade, calculada para ser flexível, a universidade operacional está estruturada por estratégias e programas de eficácia organizacional e, portanto, pela particularidade e instabilidade dos meios e dos objetivos. Definida e estruturada por normas e padrões administrativos inteiramente alheios ao conhecimento e à formação intelectual, está pulverizada em micro organizações que ininterruptamente ocupam seus docentes e curvam seus estudantes a exigências exteriores ao trabalho do conhecimento. A heteronímia da universidade é visível a olho nu: o aumento insano de horas-aula, a diminuição do tempo para mestrados e doutorados, a avaliação pela quantidade de publicações, colóquios e congressos, a multiplicação de comissões e relatórios, etc. Voltada para seu próprio umbigo, mas sem saber onde este se encontra, a universidade operacional opera e por isso mesmo não age. Não surpreende, então, que esse operar  co-opere para sua contínua desmoralização pública e degradação interna.

Que se entende por docência e pesquisa, na universidade operacional, produtiva e flexível?

A docência é entendida como transmissão rápida de conhecimentos, consignados em manuais de fácil leitura para os estudantes, de preferência, ricos em ilustrações e com duplicata em CDs ou diretamente virtuais, graças às tecnologias eletrônicas. O recrutamento de professores é feito sem levar em consideração se dominam ou não o campo de conhecimentos de sua disciplina e as relações entre ela e outras afins  — o professor é contratado ou por ser um pesquisador promissor que se dedica a algo muito especializado, ou porque, não tendo vocação para a pesquisa, aceita ser escorchado e arrochado por contratos de trabalho temporários e precários, ou melhor, “flexíveis”. A docência é pensada, em primeiro ligar, como habilitação rápida para graduados, que precisam entrar rapidamente num mercado de trabalho do qual serão expulsos em poucos anos, pois se tornam, em pouco tempo, jovens obsoletos e descartáveis; e, em segundo lugar, como correia de transmissão entre pesquisadores e o treinamento para novos de pesquisadores. A docência se reduz a transmissão e adestramento. Desapareceu, portanto, sua marca essencial: a formação.

A desvalorização da docência teria significado a valorização excessiva da pesquisa? Ora, o que é a pesquisa na universidade operacional?

À fragmentação econômica, social e política, imposta pela nova forma do capitalismo, corresponde uma ideologia autonomeada pós-moderna. Essa nomenclatura pretende marcar a ruptura com as idéias clássicas e ilustradas, que fizeram a modernidade. Para essa ideologia, a razão, a verdade e a história são mitos totalitários; o espaço e o tempo são sucessão efêmera e volátil de imagens velozes – o espaço se reduz à compressão dos lugares e o tempo, à compressão de instantes sem passado e sem futuro – ou seja, estamos imersos na irrealidade virtual, que apaga todo contacto com o espaço-tempo enquanto estrutura do mundo; a subjetividade não é a reflexão, mas a intimidade narcísica, e a objetividade não é o conhecimento do que é exterior e diverso do sujeito, e sim um conjunto de estratégias montadas sobre jogos de linguagem, que representam jogos de pensamento. A história do saber aparece como troca periódica de jogos de linguagem e de pensamento, isto é, como invenção e abandono de “paradigmas”, sem que o conhecimento jamais toque a própria realidade. O que pode ser a pesquisa numa universidade operacional sob a ideologia pós- moderna? O que há de ser a pesquisa quando razão, verdade, história são tidas por mitos, espaço e tempo se tornaram a superfície achatada de sucessão de imagens, pensamento e linguagem se tornaram jogos, constructos contingentes cujo valor é apenas estratégico?

Numa organização, uma “pesquisa” é uma estratégia de intervenção e de controle de meios ou instrumentos para a consecução de um objetivo delimitado. Em outras palavras, uma “pesquisa” é um survey de problemas, dificuldades e obstáculos para a realização do objetivo, e um cálculo de meios para soluções parciais e locais para problemas e obstáculos locais. Pesquisa, ali, não é conhecimento de alguma coisa, mas posse de instrumentos para intervir e controlar alguma coisa. Por isso mesmo, numa organização não há tempo para a reflexão, a crítica, o exame de conhecimentos instituídos, sua mudança ou sua superação. Numa organização, a atividade cognitiva não tem como nem por que realizar-se. Em contrapartida, no jogo estratégico da competição no mercado, a organização se mantém e se firma se for capaz de propor áreas de problemas, dificuldades, obstáculos sempre novos, o que é feito pela fragmentação de antigos problemas em novíssimos micro-problemas, sobre os quais o controle parece ser cada vez maior. A fragmentação, condição de sobrevida da organização, torna-se real e propõe a especialização como estratégia principal e entende por “pesquisa” a delimitação estratégica de um campo de intervenção e controle. É evidente que a avaliação desse trabalho só pode ser feita em termos compreensíveis para uma organização, isto é, em termos de custo-benefício, pautada pela idéia de produtividade, que avalia em quanto tempo, com que custo e quanto foi produzido.  Eis a “pesquisa” na universidade operacional.

Em suma, se por pesquisa entendermos a investigação de algo que nos lança na interrogação, que nos pede reflexão, crítica, enfrentamento com o instituído, descoberta, invenção e criação; se por pesquisa entendermos o trabalho do pensamento e da linguagem para pensar e dizer o que ainda não foi pensado nem dito; se por pesquisa entendermos uma visão compreensiva de totalidades e sínteses abertas que suscitam a interrogação e a busca; se por pesquisa entendermos uma ação civilizatória contra a barbárie social e política, então, é evidente que não pode haver pesquisa na universidade operacional.

O paradoxo consiste em que a universidade – lugar onde todas as coisas se transformam em objetos de conhecimento – não consegue colocar-se a si mesma como objeto de conhecimento e inventar os procedimentos para a pesquisa de si mesma. Diante da universidade, os cientistas e pesquisadores parecem tomados pela ignorância e pela perplexidade, como se estivessem diante de um fenômeno opaco e incompreensível. Como conseqüência, a universidade não parece capaz de criar os seus próprios indicadores e passa a usar um indicador que tem sentido nas empresas, mas não se sabe qual seria o seu sentido na docência e na pesquisa: a chamada “produtividade”, própria das organizações. Como conseqüência, os resultados da avaliação universitária têm sido:

  1. Com relação ao autoconhecimento da universidade: quase nada é conseguido, na medida em que, em lugar de uma interpretação de dados qualitativos e quantitativos propostos pela universidade, a avaliação oferece um catálogo ao qual é acrescentado um conjunto de conceitos abstratos: Bom, Sofrível, Regular, Mau, como se um catálogo de atividades oferecesse as informações necessárias para a interpretação e permitisse que esta última fizesse autoavaliação universitária. Os relatórios obtidos não se distinguem de listas telefônicas e com menos utilidade do que estas.
  2. Com relação à especificidade da ação universitária: Qual é a especificidade e o bem mais precioso da universidade? Ser uma instituição social constituída por diferenças internas que correspondem às diferenças dos seus objetos de trabalho, cada qual com uma lógica própria de docência e de pesquisa, ao contrário das empresas que, por força da lógica do mercado, operam como entidades homogêneas para as quais os mesmos padrões de avaliação podem ser empregados em toda a parte: custo/benefício, quantidade e qualidade, velocidade da produção, velocidade da informação, eficiência na distribuição de tarefas, organização da planta industrial, modernização dos recursos de informação e conexão com o sistema mundial de comunicação etc. No caso da universidade, além de os critérios não poderem ser os mesmos da produção industrial e da prestação de serviços pós-industrial, a peculiaridade e a riqueza da instituição estão justamente na ausência de homogeneidade, pois os seus objetos de trabalho são diferentes e regidos por lógicas, práticas e finalidades diferentes. As avaliações em curso abandonam essa especificidade e, em lugar de valorizar a diferença e a heterogeneidade, as avaliações as consideram um obstáculo e se propõem a produzir, de qualquer maneira, a homogeneidade.

 

  1. Contra a universidade operacional

A luta contra a universidade operacional significa recuperar a docência como trabalho de formação e crítica, de maneira que podemos considerar elementos indispensáveis da excelência do trabalho docente como aquele que: 1. inicia os estudante aos clássicos, aos problemas e às inovações da área; 2 varia e atualiza cursos, bibliografia, aproveitando os trabalhos de pesquisa que o professor está realizando (para uma tese, um livro ou um artigo); 3. inicia ao estilo e às técnicas de trabalho próprios da área; 4. informa e forma novos professores ou profissionais não-acadêmicos da área; 5. incentiva os diferentes talentos, sugerindo trabalhos que, posteriormente, auxiliarão o estudante a optar por uma área de trabalho acadêmico, ou uma área de pesquisa ou um aspecto da profissão escolhida e que será exercida logo após a graduação – em suma, a docência forma novos docentes, incentiva novos pesquisadores e prepara profissionalmente para atividades não-acadêmicas.

A luta contra a universidade operacional proõe novos critérios para a excelência na pesquisa1. a inovação: seja pelo tema, seja pela metodologia, seja pela descoberta de dificuldades novas, seja por levar a uma reformulação do saber anterior sobre a questão; 2. a durabilidade: a pesquisa não é servil a modismos e seu sentido não termina quando a moda acadêmica acabar porque não nasceu de uma moda; 3. a obra: a pesquisa não é um fragmento isolado de idéias que não terão seqüência, mas cria passos para trabalhos seguintes, do próprio pesquisador ou de outros, sejam seus orientandos, sejam os participantes de mesmo grupo ou setor de pesquisa; existe obra quando há continuidade de preocupações e investigações, quando há retomada do trabalho de alguém por um outro, e quando se forma uma tradição de pensamento na área; 4. dar a pensar: a pesquisa faz que novas questões conexas, paralelas ou do mesmo campo possam ser pensadas, mesmo que não tenham sido trabalhadas pelo próprio pesquisador; ou que questões já existentes, conexas, paralelas ou do mesmo campo possam ser percebidas de maneira diferente, suscitando um novo trabalho de pensamento por parte de outros pesquisadores; 5. significado social, político ou econômico: a pesquisa alcança receptores extra-acadêmicos para os quais o trabalho passa a ser referência de ação, seja porque leva à idéia de pesquisa aplicada, a ser feita por outros agentes, seja porque seus resultados são percebidos como direta ou indiretamente aplicáveis em diferentes tipos de ação; 6. autonomia: a pesquisa suscita efeitos para além do que pensara ou previra o pesquisador, mas o essencial é que tenha nascido, de exigências próprias e internas ao pesquisador e ao seu campo de atividades, da necessidade intelectual e científica de pensar sobre um determinado problema, e não por determinação externa ao pesquisador (ainda que tenham sido outros sujeitos acadêmicos, sociais, políticos ou econômicos que possam ter despertado no pesquisador a necessidade e o interesse da pesquisa, esta só consegue tornar-se excelente, se nascida de uma exigência interna ao pensamento e à ação do próprio pesquisador); 7. articulação de duas lógicas diferentes, a lógica acadêmica e a lógica histórica (social, econômica, política): a pesquisa inovadora, duradoura, autônoma, que produz uma obra e uma tradição de pensamento e que suscita efeitos na ação de outros sujeitos é aquela que busca responder às questões colocadas pela experiência histórica e para as quais a experiência, como experiência, não possui respostas; em outras palavras, a qualidade de uma pesquisa se mede pela capacidade de enfrentar os problemas científicos, humanísticos e filosóficos postos pelas dificuldades da experiência de seu próprio tempo; quanto mais uma pesquisa é reflexão, investigação e resposta ao seu tempo, menos perecível e mais significativa ela é; 8. articulação entre o universal e o particular: a pesquisa excelente é aquela que, tratando de algo particular, o faz de tal maneira que seu alcance, seu sentido e seus efeitos tendam a ser universalizáveis; quanto menos genérica e quanto mais particular, maior possibilidade de possuir aspectos ou dimensões universais (por isso, e não para contagem de pontos, é que poderá vir a ser publicada e conhecida internacionalmente, quando o tempo dessa publicação surgir).

Se a luta contra a universidade operacional visa a recuperá-la como instituição social e a recusá-la como organização social administrada, isto significa que a universidade não pode ser uma extensão dos interesses privados de uma parte da sociedade nem uma ilha mantendo uma relação de exterioridade com o social. Em outras palavras, trata-se de compreendermos a articulação entre a dimensão acadêmica e a dimensão sócio-política da universidade, indagando sobre a compatibilidade e a incompatibilidade entre ambas.

A articulação dessas duas dimensões da universidade, quando feita a partir dela mesma e por iniciativa dela, tende a nos oferecer a compatibilidade das duas dimensões, pois a universidade assume explícita e publicamente tal articulação como algo que a define internamente. Essa compatibilidade das duas dimensões aparece sob duas formas: pelos serviços – isto é, a extensão – que a universidade presta à sociedade sob a orientação do poder político ou em cooperação com ele, e pela cessão de quadros universitários para funções no interior da administração pública. Na medida, porém, em que essas formas de absorção dos quadros científicos e serviços universitários se realizam por iniciativa do Estado, e não por um projeto interno à própria universidade, isto é, não por uma decisão que a universidade tome explicitamente, a percepção da relação entre as duas dimensões tende a diluir-se, aparecendo ou como ação fortuita do Estado ou como carreira individual e pessoal de alguns quadros universitários.

A compatibilidade também aparece internamente à universidade. De fato, por mais seletiva e excludente que seja a universidade, ainda assim, em seu interior, reaparecem as divisões sociais, diferenças políticas e projetos culturais distintos, ou seja, a universidade é uma instituição social e, nessa qualidade, ela exprime em seu interior a realidade social das divisões, das diferenças e dos conflitos. O que é angustiante é a universidade querer sempre esconder isso e deixar que essas coisas aflorem só em momentos específicos – por exemplo, na eleição de um reitor, na discussão de um estatuto ou numa greve. Por esse motivo, a universidade nunca trabalha os seus próprios conflitos internos. Ela periodicamente opera com eles, mas ela se recusa, em nome da sua suposta vocação científica, a aceitar aquilo que é a marca do Ocidente: a impossibilidade de separar conhecimento e poder.

Passemos à incompatibilidade entre as duas dimensões.

A incompatibilidade é insuperável quando a articulação das duas dimensões da universidade é feita sob o prisma da reprodução sócio-política e da formação de um grupo social específico – o que chamo de intelectuais orgânicos da classe dominante. Neste caso, a articulação das duas dimensões tende a ser secreta e, freqüentemente, determinada por uma via indireta, isto é, pelo modo de subvenção e financiamento das pesquisas.

Para além das formas de compatibilidade e de incompatibilidade entre as duas dimensões da universidade, é preciso lembrar, na luta contra a universidade operacional, a existência de tensões reais e verdadeiras entre elas, duas outras formas de incompatibilidade entre as duas dimensões da universidade. A primeira surge quando levamos em conta a diferença da temporalidade que rege a docência e a pesquisa e a que rege a política. A segunda, quando levamos em consideração a alternância de governos, própria da democracia.

Examinemos a primeira tensão. O tempo da política é o aqui e o agora. O planejamento político, mesmo quando distingue o curto, o médio e o longo prazos, é feito com um calendário completamente diferente do planejamento científico, pois o tempo da ação e o tempo do pensamento são completamente diferentes. Além disso, a ação política se realiza como tomada de posição e decisão acerca de conflitos, demandas, interesses, privilégios e direitos, devendo realizar-se como resposta à pluralidade de exigências sociais e econômicas simultâneas. A ação política democrática é, ao mesmo tempo, heterônoma e autônoma. Heterônoma, pois a origem da ação encontra-se fora dela, nos grupos e classes sociais que definem suas carências, necessidades, interesses, direitos e opções. Autônoma, pois a origem da decisão política encontra-se nos grupos que detêm o poder e que avaliam, segundo seus próprios critérios, a deliberação e a decisão. De todo modo, porém, a velocidade, a presteza da resposta política e o seu impacto simbólico são fundamentais, e o seu sentido só aparecerá muito tempo depois da ação realizada. Ao contrário, o tempo da docência e da pesquisa segue um outro padrão e uma outra lógica. Os anos de ensino e formação para a transmissão dos conhecimentos, a invenção de novas práticas de ensino, as alterações curriculares exigidas pelas conseqüências e inovações das pesquisas da área que está sendo ensinada e aprendida, as condições materiais de trabalho, bibliotecas e laboratórios exigem que o tempo da docência se constitua segundo sua lógica e sua necessidade internas específicas. Do lado da pesquisa, a preparação dos pesquisadores, a coleta de dados, as decisões metodológicas, as experiências e verificações, os ensaios e erros, a necessidade de refazer percursos já realizados, o retorno ao ponto zero, a recuperação de pesquisas anteriores nas novas, a mudança de paradigmas de pensamento, a descoberta de novos conceitos feitos em outros campos do saber (não diretamente vinculados ao campo pesquisado, mas com conseqüências diretas ou indiretas sobre o andamento e as conclusões de pesquisa), a exigência lógica de interrupções periódicas, a necessidade de discutir os passos efetuados e controlá-los, enfim, tudo aquilo que caracteriza a pesquisa científica – sem falarmos aqui nas condições materiais de sua possibilidade, como a inexistência de recursos para prosseguir numa linha que deverá ser abandonada por outra para a qual existam recursos materiais e humanos além de saber acumulado – faz que o tempo científico e o tempo político sigam lógicas diferentes e padrões de ação diferentes. Assim como seria suicídio político pretender agir somente mediante idéias claras, distintas e absolutamente precisas, rigorosas e logicamente verdadeiras, também seria suicídio teórico pretender submeter o tempo da pesquisa ao da velocidade e do imediatismo da ação política. A política parece não ter tempo para adiantar-se aos resultados do seu próprio trabalho. É por isso, aliás, que a política não é uma ciência, embora exista uma ciência política que não é política propriamente dita (é uma ciência sobre a política e não da política). Essa diferença das temporalidades leva a supor que a dimensão política da universidade precisa subordinar-se à sua dimensão acadêmica, ou seja, a ação política só pode apropriar-se da pesquisa científica depois que esta estiver consolidada e não pode impor a ela outro ritmo que não o do pensamento. Isso leva a duas conseqüências. Em primeiro lugar, a de que os objetivos de uma política podem auxiliar materialmente o tempo da pesquisa, tornando-o mais rápido, graças a condições materiais da sua realização; em segundo, que a pesquisa científica pode orientar projetos políticos, na medida em que pode oferecer elementos de elucidação da própria ação política.

A segunda tensão entre as duas dimensões decorre, como  dissemos, da natureza da política democrática, fundada na alternância periódica dos ocupantes dos governos. Essa alternância, essencial à democracia, significa que, periodicamente, a sociedade pode decidir seja pela continuidade seja pela descontinuidade das políticas, isto é, de um projeto político ou de um conjunto de políticas públicas. A dimensão humanística e científica da universidade, porém, só pode realizar-se se houver continuidade dos projetos e programas de formação e pesquisa. A tensão entre as duas dimensões pode ser superada na medida em que a universidade se engaje em políticas de longo prazo que não estejam submetidas ao tempo descontínuo da política estatal.

 

  1. Contra a servidão voluntária

Para compreendermos por que falar em servidão voluntária precisamos nos referir, ainda que brevemente, à condição social e ideológica que assegura a existência e conservação da universidade operacional no Brasil. Trata-se da estrutura violenta e autoritária de nossa sociedade.

A sociedade brasileira é uma sociedade autoritária, oligárquica, hierárquica e vertical, tecida por desigualdades profundas e gera um sistema institucionalizado de exclusões sociais, políticas e culturais. Isso faz com que dimensão acadêmica tenda a reforçar a exclusão social. E essa exclusão pode ainda ser aumentada se a dimensão política da universidade se mantiver na mesma direção excludente que a sociedade impõe às classes sociais, isto é, favorecendo privilégios oligárquicos e os interesses privados que definem o mercado. No entanto, a verdadeira dimensão política da universidade, se comprometida com a democracia, exige que ela entre em choque com o autoritarismo social, e ela o fará se a dimensão política se propuser a diminuir o sistema de exclusões e, portanto, contestar o caráter excludente atribuído à dimensão humanística e  científica. Todavia, como sabemos, a ampliação social da universidade pode não corresponder às condições exigidas para o trabalho de formação e da pesquisa científica. Isso parece nos colocar diante de uma equação perversa, ou seja, que a boa realização da dimensão acadêmica é incompatível com a dimensão democrática da universidade e reforça a ideologia de conservação de desigualdades culturais, fundada nas desigualdades sociais e econômicas.

Esse reforço ideológico vem sobretudo da classe média, que vê na universidade simplesmente o diploma para a ascensão social individual. Por não ocupar um lugar definido na divisão social das classes que definem o núcleo do capitalismo, a classe média se vê excluída do poder político (ela não tem o poder de Estado) e do poder social (ela não tem a força dos movimentos sociais e populares organizados).. Ela procura compensar essa falta de lugar exercendo um poder muito preciso: o poder ideológico. Como sabemos, a classe média tem um sonho e um pesadelo: sonha em se tornar burguesia e tem medo pânico de se proletarizar. Por isso, atualmente, ela se torna o suporte social e político da ideologia neoliberal, individualista e competitiva, que produz o encolhimento do espaço público dos direitos e o alargamento do espaço privado dos interesses. A adoção e defesa dessa ideologia leva a classe média a afirmar que se deve deixar por conta do mercado a definição das prioridades de formação acadêmica e pesquisa. Essa posição anti-democrática significa a defesa da universidade operacional e da privatização do saber, que entra em choque com uma política de abertura e expansão da universidade como um espaço social de criação e afirmação de direitos e de inclusão.

Eis porque acredito que nossa ação universitária como ação do saber e da política deve ser o combate em todas as frentes contra a universidade operacional e a ideologia conservadora que a sustenta. Esse combate é o que chamo de luta contra a servidão voluntária.

Um jovem de 18 anos, chamado Etienne de La Boétie, escreveu no século XVI um ensaio conhecido como Discurso sobre a servidão voluntária. A servidão voluntária, escreve La Boétie, é um enigma, pois submeter-se é algo que não pode realizar por um ato voluntário de liberdade. Como seres livres podem voluntariamente desejar servir? Por que nos submetemos voluntariamente à tirania?

Responde La Boétie: consentimos em servir porque esperamos ser servidos. Servimos aos tiranos porque somos tiranetes: cada um serve ao poder tirânico porque deseja ser servido pelos demais que lhe estão abaixo; cada um dá os bens e a vida pelo poder tirânico porque deseja apossar-se dos bens e das vidas dos que lhe estão abaixo. A servidão é voluntária porque há desejo de servir, há desejo de servir porque há desejo de poder e há desejo de poder porque a tirania habita cada um de nós e institui uma sociedade tirânica. Haver tirano significa que há sociedade tirânica. Nada mais verdadeiro do que a adesão ideológica da classe dominante e da classe média à universidade operacional.

No entanto, La Boétie prossegue e indaga, onde, afinal, se encontra a força do tirano? E responde: a força do tirano não está onde imaginamos encontrá-la: não está nas fortalezas que o cercam nem nas armas que o protegem. Pelo contrário, se precisa de fortalezas e armas, se teme a rua e o palácio, é porque se sente ameaçado e precisa exibir signos de força que ocultem os signos verdadeiros do poder. Fisicamente, um tirano é um homem como outro qualquer – tem dois olhos, duas mãos, uma boca, dois pés, dois ouvidos; moralmente, é um covarde, prova disso estando na exibição dos signos de força. Se assim é, de onde vem seu poder, tão grande que ninguém pensa em dar fim à tirania? Seu poder vem da ampliação colossal de seu corpo físico por seu corpo político, provido de mil olhos e mil ouvidos para espionar, mil mãos para espoliar e esganar, mil pés para esmagar e pisotear. O corpo físico não é ampliado apenas pelo corpo político como corpo de um colosso, também sua alma ou sua moral são ampliadas pelo corpo político, que lhe dá as leis com as quais distribui favores e privilégios, seduz os incautos para que vivam à sua volta para satisfazê-lo a todo instante e a qualquer custo. A pergunta que nos cabe fazer é: quem lhe dá esse corpo político gigantesco, ubíquo, sedutor e malévolo? A resposta é imediata: somos nós quem lhe damos nossas mãos, nossos pés, nossos ouvidos, nossas bocas, nossos bens e nossos filhos, nossas almas, nossa honra, nosso sangue e nossas vidas para alimentá-lo, para aumentar-lhe o poder com que nos destrói.

Indaga La Boétie: se, por algum infortúnio, um tirano galgou o poder e ali se mantém, como derrubá-lo e reconquistar a liberdade? E responde: não lhe dando o que nos pede. Se não lhe dermos nossos corpos e nossas almas, ele cairá. Basta não querer servi-lo, e ele tombará.

Por isso, neste 14 de julho, em nossa luta contra a servidão voluntária à tirania da universidade operacional quero concluir com os versos de Castro de Alves:

Por isso na impaciência

Desta sede de saber,

Como as aves do deserto

As almas buscam beber…

Oh! Bendito o que semeia

Livros… livros à mão cheia

E manda o povo pensar!

O livro caindo n’alma

É germe – que faz a palma

É chuva – que faz o mar.

 

 

[1] A oposição entre instituição social e organização social como definição da universidade é proposta por Michel Freitag, que acompanha várias das idéias da Teoria Crítica da Escola de Frankfurt, em Le naufage de l’université. Aqui trabalharemos a partir dessa oposição feita por esse autor.

[2] Nesses dois governos, foi ampliada a rede universidades públicas federais (programa REUNI), foi criado o programa de bolsas de estudo universitário para jovens de famílias de baixa renda (PROUNI), e o programas de cotas universitárias para estudantes negros e aqueles vindos das escolas públicas do ensino secundário (ENEM), mudando a composição de classe social das universidades.

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