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Cientistas começam a decifrar o código inca dos quipos
América pré-colombiana

por | 1 out 2018

Os quipos são conjuntos de cordas e fibras coloridas com diferentes nós utilizados pelos incas para registrar informações, números e provavelmente narrativas. Uma reportagem publicada na revista Newscientist na semana passada traz um panorama amplo a respeito dos estudos que buscam desvendar o sistema em que são baseados e as últimas e excitantes descobertas sobre o assunto.

A civilização inca tinha 10 milhões de habitantes e um sistema administrativo complexo. O poder central ficava em Cusco (no atual Peru) mas as diferentes províncias tinham um certo nível de autonomia. Para fazer o sistema funcionar, eram realizados censos, inventários e contabilidade de tributos, tudo guardado pelos khipumayuq, os guardiões dos quipos, casta especializada nesse trabalho, que sabia atar e ler as cordas.

Para além desse uso “burocrático”, no entanto, há razões para acreditar que os quipos guardam histórias. O poeta Garcilaso de la Vega, filho de um conquistador espanhol com uma princesa inca, em texto de 1609, afirma que era registrado nos nós “tudo que poderia ser contado, mencionando até batalhas e lutas, todas as embaixadas que visitaram os incas e todos os discursos e discussões proferidos”. Embora a fonte possa ser ambígua e contraditória, um terço dos quipos em coleção parecem mais complexos do que os demais, indicando que podem conter algum tipo diferente de informação, observa a reportagem.

Escriba com quipo

Nos anos 1920, prossegue o texto, o antropólogo Leland Locke identificou um sistema decimal nos nós, em que a altura e o tipo do nó indicavam se tratar de unidade, dezena ou centena. Nos anos 1990, no entanto, ainda não se sabia a quê esses números poderiam se referir. Foi nessa época que Gary Urton, antropólogo da Universidade Harvard, começou a fazer levantamento e digitalização dos quipos existentes em museus e coleções privadas, criando o Projeto Base de Dados Quipo (Khipu Database Project), que hoje traz detalhes de mais de 900 exemplares. A partir das variações entre os quipos – cores das cordas, estruturas dos nós, sentido da amarração, entre outros –, Urton supôs que diferenças binárias nesses fatores poderiam ter informação codificada. Por exemplo: se uma corda amarrada num sentido queria dizer “pago”, no sentido oposto poderia ser “não pago”.

Em 2012, ele propôs uma hipótese mais específica, em que o sentido do nó, as cores ou uma combinação de ambos poderiam corresponder ao status social da pessoa cujos tributos estavam sendo registrados e até mesmo ao nome dessa pessoa. Em 2016, ele encontrou um livro com um documento referente a um censo realizado pelos espanhóis nos anos 1670, tratando de seis clãs da vila de Recuay, no oeste peruano, mesma época e local de um conjunto de seis quipos de sua base de dados. Em teoria, portanto, ambos os documentos poderiam tratar da mesma coisa. Havia 132 pagadores de tributos no documento espanhol e 132 cordas no documento inca, além de outras coincidências. Um aluno da graduação de economia, Manny Medrano, falante nativo de espanhol e talentoso com planilhas conseguiu achar padrões entre os documentos, demonstrando que cada corda pendurada na corda principal representava um clã diferente.

Sabine Hyland, etnógrafa da Universidade Saint Andrews, na Inglaterra, passou a última década pesquisando comunidades dos Andes centrais em que ainda mantêm tradições de quipos, primeiro buscando menções aos artefatos em arquivos e depois visitando vilas em busca de peças remanescentes. A estratégia de procurar agulha em palheiro acabou compensando quando, em 2015, uma peruana entrou em contato, depois de ver um documentário sobre o trabalho de Hyland, e informou sobre a existência de quipos na vila de San Juan de Collata.

Depois de meses negociando com a comunidade, a pesquisadora foi convidada a ver dois quipos. Os moradores acreditam se tratar de epístolas criadas por chefes locais durante uma rebelião contra os espanhóis no fim do século XVIII, da qual há registros escritos porque na época a população falava também espanhol, explica a reportagem. Os quipos estavam em uma câmara suberrânea da igreja local, Hyland e seu marido foram os primeiros forasteiros a vê-los. Sob estrita supervisão do responsável por guardá-los, que teria que viajar em dois dias, ela fotografou e fez anotações no curto tempo de que dispunha. Cada quipo tinha centenas de cordas penduradas, mais coloridas e complexas do que qualquer um que ela tinha visto antes. Ficou claro que as várias fibras animais só poderiam ser identificadas por toque. Os moradores disseram a ela que os quipos era “a linguagem dos animais” e insistiam que cada fibra tinha um significado diferente.

A análise da pesquisadora revelou que as cordas penduradas tinham 95 combinações diferentes de cores, fibras e grossura, número semelhante ao de sistemas silábicos escritos, em que um conjunto de sinais se alinha para formar o som de uma palavra. A partir disso, ela criou a hipótese de que os quipos contêm uma combinação de símbolos fonéticos e ideográficos, em que um símbolo representa uma palavra completa.

Em 2018, ela conseguiu ler um pouco dos quipos. Um passo importante para decifrar qualquer coisa é perceber informações que podem se repetir em diferentes lugares. Como ela pensava que os quipos de Collata poderiam ser letras, deduziu que poderiam ter remetente e destinatário. Juntando a isso a informação local de que a corda principal continha tiras representando a insígnia de um dos dois líderes de clã, ela arriscou assumir que as tiras se referiam a uma pessoa chamada Alluka (pruncia-se ai-u-ca) e que o remetente assinaria no fim, portanto as últimas três cordas representariam as sílabas “ai”, “u” e “ca”. A partir disso, ela procurou cordas no segundo quipo que tivessem a mesma cor e o mesmo tipo de nó que avaliava ter identificado no primeiro. Das últimas três cordas, as duas primeiras formavam “A-ka”, restava uma. Era uma fibra marrom brilhante de vicunha, animal chamado “paru” na língua quéchua. Testando com outras sílabas e misturando um pouco, ela chegou a “Yakapar”, que era o nome do outro clã envolvido na revolta contra os espanhóis. “Sabemos por testemunho escrito que um dos quipos foi feito por um membro do clã Yakapar e enviado a Collata e achamos que é isso”, afirmou Hyland à Newscientist. Ela defende que os quipos de Collata demonstram que as cordas contêm narrativas.

Mensageiro inca tocando pututu (concha) e carregando quipo

Mesmo se ela estiver certa, pode ser que esses quipos tardios tenham sido influenciados pelo contato com os espanhóis. “Minha impressão é de que essa fonetização, se existir, é uma reinvenção dos quipos”, disse Urton na reportagem. Os quipos de Collata podem ainda ser variações regionais únicas. Hyland admite que desconhecemos o elo entre esses quipos e aqueles de antes da chegada dos espanhóis, o que não os torna menos interessantes. “Ainda que tenham sido influenciados pelo alfabeto, é perturbador que essas pessoas tenham inventado uma forma táctil de escrita”, disse ela à revista britânica. Ela passará os dois próximos anos no Peru, tentando decifrar os quipos de Collata e procurando similares.

Urton também está se voltando para quipos narrativos, embora tenha uma ideia diferente sobre como as informações eram codificadas. Ele acredita que seja um sistema semasiográfico, ou seja, que transmite informação sem estar associado a uma única língua, como os sinais de trânsito, o que faria sentido numa sociedade multiétnica e com vários idiomas, como o império inca.

Não há evidências de que algum espanhol aprendeu a fazer ou ler quipos, isso sugere que eram mais complicados do que a escrita tradicional ou que eram apenas muito diferentes conceitualmente. “É um sistema de escrita inerentemente tridimensional, tão dependente do toque como da vista”, disse Hyland à Newscient – o que nos apresenta um mistério extremamente emaranhado.

Além disso, se os incas usavam os quipos assim, é uma pista de como era a visão de mundo deles. Com um sistema de escrita dependente do toque, complementou Hyland, “deve-se ter uma forma diferente de ver o mundo”. Talvez em breve teremos acesso a essa visão de mundo e a uma história de um povo contada até hoje por quem o dizimou.

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